No livro Manual de prestidigitação, Mário Cesariny
iniciou sua busca pela “definição de uma Arte poética”
(1986, p. 306), conforme anotou
Maria de Fátima
Marinho Saraiva. Como anuncia
o título da publicação, Cesariny
produz um “manual”
de ilusionismo, um instrumento que permitiria ao leitor acessar e reproduzir
o processo de criação poética,
o qual depende do trabalho
manual, de digitação, comparado à ilusão,
ao engano e ao fascínio. Nesse livro,
encontram-se diversos poemas
que fazem referência direta ao universo
teatral e que revelam a relação entre poesia e espetáculo na obra do surrealista. Em diversas composições, como “cena para final de um terceiro acto”,
“o prestidigitador organiza
um espetáculo”, ou “coro
dos maus oficiais
de serviço na corte de epaminondas, imperador”, somos conduzidos por pequenos
fragmentos de um espetáculo de ilusionismo no qual as palavras enunciadas adquirem um poder performático e genesíaco.
No “manual” que nos é apresentado, concedendo ao leitor o acesso a seus “truques”,
algo que jamais é revelado
por um prestidigitador, o autor vê-se desabrigado de sua posição de
proprietário da obra, detentor
de sentido e verdade plenos. No poema “tal como catedrais”, com o “deitar
a língua de fora, no grande manguito
aos Autores”, constata-se que “uma obra está completa”. A afirmação é válida tanto como uma referência à sua própria poesia quanto como uma declaração de que ele também “deita a língua de fora” a outros autores. Assim, o
desejo do “Autor” de reencontrar sua Obra no mundo mostra-se
uma “esperança cínica e conservadora”, uma vez que “outros obreiros”
dela se apropriarão para construírem suas próprias obras.
tal como catedrais
Consumada a Obra fica o esqueleto
da mesma
e as inerentes avarias
centrais
entre céu e terra à espera
do descanso
Consumada a Obra ficamos tu e eu
pensando frases
como: como é possível?
o que foi que fizemos?
ou esta, mais voraz que todas as anteriores:
Onde está a camisola?
Sim realmente
onde está a camisola? Ola
palavra espanhola
que quer dizer-nos: Onda
coitadas das palavras sempre a atravessar fronteiras há tantos anos
não há aí quem possa dar descanso a estas senhoras?
O rato roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia
— frase entre todas triste, a atentar na significação
Sim consumada a Obra sobram rimas
pois ela é independente do obreiro
no deitar
a língua de fora, no grande manguito
aos Autores
é que se vê se uma obra está completa
Fiquemos tristes abraça-me nós
fizemos tão pouco
e ela aí vai pelo mar fora cavando a sua avaria!
(O mundo é redondo
talvez a reencontremos...
— Esperança
cínica e conservadora...)
TU MEU ÚNICO AMOR MEU AMOR
MEU MÚLTIPLO AMOR MEU!
Sim, sim, de facto
Efectivamente
mas o dia arrefece
e pálidos
pálidos estamos
(CESARINY, 2008, pp. 150-151).
Começo por um poema que retrata
uma cena final, localizada num momento posterior à “consumação” de uma “Obra”. Exaurido
e “pálido”, o poeta, arquiteto
ou engenheiro dessa empreitada foi abandonado por sua criação,
ser “independente do obreiro”. Lançando
sobre a atividade já terminada
um olhar retroativo, o sujeito do poema interroga um “tu” com o qual teria “consumado
a obra”: “o que foi que fizemos?”. O encontro de “tu e eu” como ponto de partida para a criação da Obra mostra
que esse processo
não se dá de forma solitária, pelo contrário. Equivale a um encontro erótico
que se confirma também amoroso
na penúltima estrofe. Logo, a consumação da Obra é a de um matrimônio, encontro fértil e criativo entre “tu e eu”: amado e amador, mas também o lido e o escrito, leitor e escritor.
O momento dessa conjunção é a cena
que não vemos no poema. O sujeito tampouco parece saber
como se deu o ato, como percebemos na interrogação “como é possível?”, ou ainda na constatação de que
“fizemos tão pouco”.
Tal afirmação reforça a
ideia exposta de forma simplória na abertura do poema de que “[c]onsumada a Obra fica o esqueleto
da mesma / e as inerentes avarias centrais”. Apoiando-nos na comparação arquitetónica expressa pelo título, podemos pensar como essa afirmação
inicial vai na contramão do que se espera de uma obra concluída: paredes,
janelas, teto, telhados e portas bem traçados e executados – não o esqueleto da obra ou uma declaração do obreiro a respeito
das “inerentes avarias
centrais” da construção. No entanto, a obra de Cesariny aceita sua condição de terminada,
não de concluída. Ao admitir que o que fica desta é “o esqueleto da mesma”, reconhece que o
único traço de autoria que resta é o projeto inicial sobre o qual se ergue.
Da mesma forma, confessar a existência de “inerentes avarias centrais” é aceitar a iminência da ruína daquilo
que propõe, entregando a obra à própria sorte.
A separação entre obreiro e Obra se reflete
no isolamento dos construtores “tu e eu” frente a ela, algo que se realiza visualmente no poema, percebido pelo deslocamento das referências aos dois à direita nos quarto, quinto e sexto versos da primeira estrofe
do poema:
Consumada a Obra ficamos tu e eu
pensando frases como:
como é possível?
o que foi que fizemos?
(CESARINY, 2008, p. 150).
A partir do oitavo
verso – “Onde está a camisola?” –, há uma mudança no alinhamento dos versos do poema, com um recuo progressivo à esquerda, indicando
a introdução da reflexão antes
reservada a um espaço circunscrito ao “tu e eu” como um caminho de desenvolvimento do poema como um todo,
algo que é reforçado, ainda,
pela repetição da mesma interrogação, porém já realocada
à posição convencional do verso:
ou esta, mais voraz que todas as anteriores:
Onde está a camisola?
Sim realmente
Onde está a camisola? Ola
(CESARINY, 2008, p. 150).
Como é possível perceber, o poema evoca diferentes vozes seja pela inserção de pequenos fragmentos discursivos que rompem
a progressão temática
no interior de cada estrofe, seja pelos ecos de citações provenientes da cultura portuguesa, como veremos adiante. Tal multiplicidade de discursos com a qual o poema é tecido reflete a própria discussão
nele desenvolvida a respeito da condição das palavras, atravessando “fronteiras há tantos anos”, revelando uma consciência acerca de seu tempo histórico
e da historicidade do discurso poético.
As citações são retiradas tanto de seu cânone literário
– como é o caso do
poema de Fernando Pessoa “Tenho dó das estrelas” –, quanto da tradição popular –
representada pelo trava-línguas “o rato roeu a rolha da garrafa
do Rei da Rússia” ou, ainda,
pelo apelo ao imaginário marítimo português, percebido
na referência ao lugar de deriva das obras
(“e ela aí vai pelo mar fora cavando sua avaria”) e na comparação das obras com navios. Como observaremos ao longo deste trabalho, a metáfora da obra, ou do poema, como
navio ou jangada no mar é recorrente no trabalho de Mário Cesariny,
encontrando-se nos poemas “O navio de espelhos”, de A cidade queimada
(1965), “Pena capital”, de Pena capital (1957), poema
que analisaremos no terceiro capítulo, e no poema
II do Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano (1952). Da mesma forma, podemos observar a curiosa
escolha de palavras
de Cesariny para se referir
à sua adesão ao surrealismo: “[é]ramos umas pessoas zangadas no meio do mar alto e havia um naufrágio – nós escolhemos a mesma jangada”
(CESARINY apud SARAIVA,
1986, p. 66).
Em ABC of Reading, Ezra Pound desenvolve a ideia de que a poesia seria
“a mais concentrada
forma de expressão
verbal” (POUND, 1991, p. 36, tradução
minha)7, querendo
com isto dizer
que as palavras dos poemas
estão em um estado limite
de saturação de significados. Nesse sentido, afirma
que
O bom escritor escolhe suas palavras por seu ‘significado’, mas esse significado não é algo tão predeterminado e limitado como os movimentos do rei ou do peão sobre um tabuleiro de xadrez. O significado surge com raízes,
com associações, com o como e quando a palavra
é comumente utilizada, ou onde foi utilizada brilhante
ou memoravelmente (POUND, 1991, p. 36, grifo meu)8.
Podemos perceber
como o poema de Cesariny
acima parece dialogar
com o conceito de Pound a respeito
da saturação da linguagem de diversas formas,
tanto no tocante
à temática do poema
quanto em sua própria estrutura. Retomando os conceitos
de “esqueleto” e de “inerentes
avarias”, podemos nos aproximar da tese de Pound pelo viés do leitor, alguém que deve ser capaz de construir, sobre esse esqueleto, um acabamento, bem como remendar
e reparar as “avarias centrais”. Enquanto leitores de sua obra, cabe a nós um esforço
interpretativo e construtivo sobre o esqueleto
da Obra sobre a qual fala o poeta. Como afirma
Pound, certas palavras “provavelmente lançarão
sobre a tela mental do leitor a imagem de uma década
passada” (POUND, 1991,
p. 37)9 e, continua, “são infinitas as qualidades que algumas pessoas conseguem associar a uma dada palavra
ou tipo de palavra, e a maioria
delas varia de indivíduo
para indivíduo” (POUND, 1991, p. 37)10. Cesariny faz o mesmo enquanto herdeiro
de uma tradição que se inscreve também na sua língua. Nesse sentido, falar é citar, uma vez que as palavras, coitadas, estão “a atravessar fronteiras há tantos
anos”.
No entanto, é inerente
ao trabalho poético
a escolha das palavras, como bem lembra Pound. Assim, podemos perceber
como algumas referências marcantes convocadas em “tal como catedrais” emergem como um trabalho de citação, que deve ser pensado enquanto tal,
ou seja, enquanto processo e ato, como o pensou,
também, Antoine Compagnon. Em O trabalho da citação (1996), Compagnon aborda o conceito de “working paper”, ou “trabalho em processo”, afirmando que é preciso distinguir o sentido da citação do ato da citação. O crítico afirma que “o sentido vem por acréscimo,
ele é o suplemento do trabalho; [é] preciso
distingui-lo do ato e da produção para não ignorar estes últimos,
para não confundir
o sentido da citação (de enunciado) com o ato de citar (a enunciação)” (COMPAGNON, 1996, p. 46).
No poema de Cesariny, podemos
perceber como o esforço de apagamento e rasura das vozes
que emergem no dizer do sujeito poético transformam-se na própria “Obra”, uma vez que, ao mesmo
tempo que causam o apagamento daquela que se diz consumada
no início do poema,
criam uma nova cena, a de um momento posterior
à escrita, fazendo
com que a “Obra” sobre a qual se fala simultaneamente seja e não seja a obra que nos fala.
Se, para Compagnon, “[o] texto, o fenômeno ou o trabalho
de citação, é o produto
da força pelo deslocamento” (1996, p. 48), torna-se necessário pensarmos as citações
do poema de Cesariny a partir dos processos de deslocamento e desapropriação, a começar pelo jogo
com o
poema de Fernando Pessoa “Tenho dó das estrelas”. Nesse sentido, podemos perceber
como esses
processos
sobre
os
discursos
canônicos
se
dão
através
da
construção
do
argumento defendido por Cesariny a respeito do cansaço das palavras a partir da transformação de versos do poema de Pessoa, reproduzido abaixo11, nos versos cesarinyanos “coitadas das palavras sempre a atravessar fronteiras há tanto ano / não há aí quem possa dar descanso a estas senhoras?”.
Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.
Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas
ou de um braço?
Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar
ou sorrir...
Não haverá, enfim,
Para as coisas que são.
Não a morte,
mas sim
Uma outra espécie
de fim,
Ou uma grande razão
–
Qualquer coisa
assim
Como um perdão?
(PESSOA, 1985, pp. 148-149).
O poema acima, tal qual o de Mário
Cesariny, parece relacionar aquilo que é dado
como eterno e imutável ao cansaço e à fadiga consequentes da travessia temporal,
ao mesmo tempo que apresenta como alternativa à existência “para as coisas que são” uma espécie de redenção.
Nesse sentido, constitui uma crítica a respeito da longevidade e eternidade das estrelas quando comparadas à sua própria condição mortal, percebida pelo “dó” que sente dos astros. O sentimento de pena só o podemos
sentir através da constatação da diferença da nossa própria condição quando comparada à do outro: só podemos
“ter dó” na medida em que nos distanciamos e diferenciamos do outro. Encontramos, nos poemas apresentados, a “crítica à eternidade em que consiste
essencialmente a modernidade” (2013, p. 35), como resume Octavio Paz, uma vez que afirmam sua permanência e sobrevivência através da transformação, como percebemos principalmente no poema de Mário Cesariny.
Parece haver,
assim, uma manifestação da consciência histórica dos poetas,
representada pelo desejo de pôr “uma outra espécie de fim”, percebido
não como uma morte,
mas como uma atribuição de nova finalidade às estrelas que brilham desde tempos
imemoriais. Ao apropriar-se do poema de Fernando
Pessoa, Cesariny mostra que o brilhar das estrelas não é por ele percebido
como estático, apesar de apontar
a permanência dos astros,
agora “palavras”. Tal como catedrais
e obras, as palavras e as estrelas,
apesar de longevas
e perenes, estão expostas aos efeitos do tempo, ao desgaste físico
e a sucessivas transformações.
Cabe àqueles “bons poetas” sobre os quais fala Pound escolher conscientemente as palavras que foram usadas “brilhante ou memoravelmente”, cujos significados surgem “com raízes, com associações”. Por esse motivo, Cesariny
opera a troca entre “estrelas” e “palavras”,
apropriando-se do poema de Pessoa
e transformando a metáfora já por demais
“carregada” pela fala daquele poeta. É como se o surrealista percebesse que o brilho que emana das
estrelas atravessa distâncias temporais e espaciais, ou que elas “vão pelo mar fora cavando
sua avaria”, e, mesmo após a sua morte, continua
a chegar até o nosso tempo e olhar. Assim, deslocar o discurso pessoano
equivale a apontar para as próprias estrelas um espelho de circo, que distorcesse a luz que delas mesmas emana. A partir dessa nova luz, poderíamos perceber as estrelas de outra forma.
Assim, “tal como catedrais” desfaz a metáfora
da longevidade das estrelas e toca direta e literalmente no problema da saturação da linguagem, transformando “estrelas” em “palavras”.
Ao citar Fernando Pessoa para abordar sua travessia temporal,
Cesariny reforça a ideia da transitoriedade já inscrita em “Tenho dó das estrelas”. A transformação de “estrelas”
em “palavras”, bem como a substituição do “dó” sentido
pelo eu-lírico pessoano
pela expressão “coitadas
das palavras”, a qual ecoa o irônico “Coitado do Álvaro de Campos”12, provocam certo efeito humorístico no poema de Cesariny para além da aparente melancolia
evocada pelo poema pessoano. O deslocamento da poética de Pessoa e a apropriação radical dos elementos
de sua (ou de qualquer
outra) poética ressoam,
ainda, na afirmação de que a obra “é independente do obreiro”.
O poeta que consuma
a obra, em “tal como catedrais”, reconhece
como “esperança cínica e conservadora” a pretensão de reencontrá-la no mundo, uma vez que é na independência daquilo
que constrói que se verifica
sua completude. O reencontro com a Obra é impossível, pois as únicas coisas que dela restam após consumada
seriam o esqueleto,
ou o projeto inicial
proposto pelo criador,
e as “inerentes avarias centrais”. A partir daí, será tomada por
outros “obreiros” que deitam “a língua de fora, no grande manguito aos Autores”, da mesma forma que Cesariny o fez frente
à tradição que o constituiu, confirmando que a Obra mesmo
quando consumada não está concluída – fez-se
“tão pouco”.
A censura de Cesariny
sobre o poema de Pessoa implica um movimento complexo.
Ao negar o metafórico “estrelas”, Cesariny atua sobre ele – agora percebido de outra maneira pelos leitores
de um e de outro – e, além de introduzir em “tal como catedrais” a ideia de cansaço do que é eterno, como também se vê em “Tenho dó das estrelas”, indica o
reconhecimento da transitoriedade de seu momento
presente, já que é uma “esperança cínica
e conservadora” querer
reencontrar a “sua” Obra no mundo, pois esta pode ser, como aconteceu
com o poema de Pessoa,
transformada por outro “obreiro”. Dessa forma, a experiência do presente não é consequência de uma cronologia linear que liga passado, presente
e futuro, mas está
fundamentalmente ligada a uma concepção moderna de transmissão da cultura. Como afirma Luciano Gatti,
[s]endo uma tarefa do presente
constituir uma relação produtiva
com o passado, a experiência não é assim um tempo pleno que se desenrola
do passado ao futuro, formando uma continuidade. Ela é, isso sim, uma descontinuidade, uma atividade que tem que ser reiterada a cada momento, uma retomada
que não ocorre automaticamente. Tal contato
está sempre sujeito ao perigo e ao risco envolvidos no processo
de transmissão da cultura (GATTI, 2009, p. 173).
Em Os filhos do barro (2013), Octavio Paz afirma que a modernidade é uma tradição,
desenvolvendo a ideia de que a “ruptura”, marca da modernidade, tornou-se uma constante. Haveria, assim, um movimento
recorrente de interrupção da tradição na modernidade e, por
esse interminável movimento
de ruptura, a modernidade ela mesma torna-se
uma tradição – permanente negação de uma tradição que precede a ruptura que é. Nas palavras de Paz,
desde o princípio do século XIX fala-se
da modernidade como uma tradição
e se pensa que a ruptura é a forma privilegiada da mudança [...]. A modernidade é uma tradição
polémica que desaloja
a tradição imperante, seja ela qual for; mas só a desaloja para, no instante
seguinte, ceder o lugar a outra tradição, que, por sua vez, é mais uma manifestação momentânea da atualidade (PAZ, 2013, p. 15).
O poema de Cesariny
que se encontra acima traz ainda outros discursos tradicionais da cultura portuguesa e lusófona, como é o caso da alusão ao imaginário marítimo,
introduzido na segunda estrofe. Feita
de forma jocosa, a partir do
destaque do significante “ola” dentro
da palavra “camisola”, Cesariny mostra o
quanto as palavras estão saturadas de significados, que surgem das mais inesperadas maneiras.
A referência ao mar introduz
no poema a reflexão
crítica a respeito da historicidade do discurso poético,
a qual conduzirá o desenvolvimento do tema do caminho
inesperado seguido pela obra poética
no mundo, independente do destino que lhe dá seu autor, ao seguir à deriva, “pelo mar fora cavando a sua avaria”.
Ao abordá-lo de forma
tão surpreendente e quase despropositada, Cesariny opera uma ruptura na relação
que se tem com um dos pilares
fundamentais da cultura
portuguesa, inúmeras vezes
revisitado e reelaborado por outros poetas e artistas do país. No texto “Adeus às armas” (2002), Jorge Fernandes
da Silveira, refletindo acerca da impregnação em mais alto grau do imaginário
marítimo, afirma que
[a] saturação
que, ao longo dos séculos,
foi-se inscrevendo na linguagem da Literatura Portuguesa voltada para o mar implica,
hoje, a necessidade de uma viagem de reconquista da terra como paisagem
e, portanto, como desejo
de uma ficção que, enfrentando o “nó” do passado feito na água,
movimente em novas empresas o imaginário português (SILVEIRA,
2002, p. 39).
Assim, a referência à tradição parece apontar o reconhecimento desse caráter “concentrado” de suas imagens
e palavras-chave. A eleição do espaço marítimo
como lugar da deriva das Obras é oportuna, ainda, ao trazer em si a metáfora
da tradição ao mesmo tempo que aponta seu desgaste. Mar cultural, símbolo
da tradição literária
portuguesa aqui transfigurado em espaço por onde seguem as palavras,
fatigadas, as “senhoras”
a quem é preciso “dar descanso”.
Outro traço da tradição
pode ser percebido pela inserção igualmente inesperada do
trava-línguas “o rato roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia”, deslocado e transformado pelo discurso poético cesarinyano: “frase entre todas triste, a atentar na significação”. Ao apontar
para a “significação” da frase, “entre todas triste”, o poeta põe em questão
um caráter quase sempre ignorado
dos trava-línguas, o sentido, uma vez que são expressões marcadas pelo caráter sonoro e performático, características materiais que se encontram
fora do campo dos significados. Porém, ao ser efetivamente escrito no poema, deixa de ser percebido
como uma frase cujo valor é puramente
sonoro e humorístico, para ganhar o valor de significação, algo que podemos perceber
como um traço profundamente irônico – e essencialmente crítico – da poesia de Cesariny. Nesse movimento de deslocamento do discurso que pertence quase exclusivamente ao campo material
(sonoro e performático) para o abstrato
(o dos significados), podemos
perceber uma crítica a um lirismo exacerbado
e a uma solenidade da poesia. Ao mesmo tempo, cria um novo trava-línguas para o leitor, através das repetições da consoante [t] e dos encontros consonantais [tr] ou [fr], o que produz dois efeitos: por um lado reforça a mistura entre os planos material – aquele dos sons, da execução, ou da performance sonora – e abstrato – aquele dos significados –, por outro,
ativa a memória
de outro trava- línguas, ou seja, a memória cultural
associada a “três pratos de trigo para três tigres tristes”,
uma vez que se utiliza
das mesmas consoantes e encontros consonantais dessa expressão, além de repetir o vocábulo “triste”
em seu novo trava-línguas.
“tal como catedrais” explora,
portanto, o deslocamento e a desapropriação dos discursos, algo
que não é dado apenas no nível do
“tema” do poema e de seu marcante
caráter metapoético, mas se dá em sua própria estrutura, uma vez que Cesariny demonstra
a partir do que escreve o processo de pilhagem da tradição
empreendido também por ele. Na tentativa de definição de uma Arte poética, na escrita de um manual de prestidigitação, o autor instaura um “protocolo de leitura” (SCHOLES,
1991) com o qual pressupõe
um trabalho por parte de seu interlocutor, reforçado ainda pelas expressões injuntivas “fiquemos tristes” e “abraça-me”. Nesse sentido, o “tu” interpelado pelo sujeito poético
seríamos nós leitores,
afetados por seu discurso. Se, para Paz, “o poema é mediação
entre uma experiência original e um conjunto de atos e experiências posteriores” (1986, p. 227), o mesmo parece se verificar no projeto
de definição de uma arte poética cesarinyana. Nela, os leitores surgimos como personagens fundamentais, convocados pelo sujeito poético a sermos seu “ÚNICO AMOR” e passarmos a “MÚLTIPLO AMOR”, o qual, na concepção surrealista, “assume um
carácter de gnose” (CORREIA,
1973, p. 62).
No poema a ser analisado na próxima seção, veremos como a busca desse sujeito por
um diálogo amoroso com o outro emerge
como uma alternativa aos discursos dominantes, dado o contexto do Estado Novo e a cena literária neorrealista. Os últimos,
frontalmente criticados por Cesariny, ao falar “‘em nome’ do povo e ‘para o povo’, nem do povo eram lidos nem curavam
(ou podiam) (ou saberiam) dar-lhe
textos capazes de ilustrar a palavra de ordem de Lénine: ‘Nada é bom demais para os operários.’” (CESARINY, 1985, p. 266). O poema a seguir não deixa de contemplar e movimentar certa gramática neorrealista, representada pelas imagens da “noite”, da “escuridão”, do “emparedamento” e das
“muralhas”, conhecidas metáforas para designar o Estado Novo e o fascismo. Da mesma forma, veremos como Cesariny recorre
à voz plural de um “nós” comumente utilizado por poetas neorrealistas como forma de cantar “em nome do povo e para o povo”. No entanto, o emparedamento em questão no poema de Cesariny parece tocar diretamente na necessidade do empreendimento de um trabalho
poético de transformação da linguagem como forma de diálogo com o outro para resistência no mundo ou re-existência do mundo. No ensaio
“Resistência da poesia
– resistência na poesia” (2012),
Rosa Maria Martelo,
a respeito do progressivo apagamento do pronome
“nós” na poesia
de Carlos de Oliveira, referindo-se também a um movimento perceptível nos trabalhos de outros poetas – entre eles, Cesariny – , aponta
que há uma passagem da
noção (neo-realista) de escrever ‘no lugar de’, dando voz aos que não a têm, para a noção (modernista) de escrever ‘na intenção de’ [...]. Escrever ‘na intenção de’ era partir do princípio
de a poesia ser, em si mesma,
um acto de violência e de resistência; era valorizar a condição ontológica
propriamente textual e material da escrita
e a correlativa emergência de uma subjetivação mais livre (MARTELO, 2012, pp. 39-40).
Nesse sentido,
creio ser possível
perceber, no poema que se segue, como a retomada
do “‘nós’ coral neo-realista” (MARTELO, 2012, p. 39) é feita de maneira a criticar aqueles
que acreditam, ainda, na possibilidade de se cantar em nome de, ou no lugar de, um povo, uma vez que aponta repetidamente a própria busca
pelo diálogo com o outro,
o “nosso dever falar”, para a fundação
do canto de liberdade.
____________________
(7) “the most concentrated form of verbal expression” (POUND, 1991, p. 36). Todas as citações de Pound em inglês foram traduzidas por mim
[Maria Silva Prado Lessa].
Opto, aqui, pela citação
de Pound no original, uma vez que a tradução para o português
que tenho em mãos percebe “concentrated” enquanto sinônimo de “condensado”. Observando que antecede a essa passagem
a citação “Dichten = condensare”, e que Pound
escolhe utilizar “concentrated” em lugar da tradução “mais fiel” (e também mais óbvia e imediata) ao significante latino,
“condensed”, acredito que é relevante
mantermos a distinção perceptível no original. Descartando, por ultrapassar os limites deste trabalho, a discussão metafísica que poderia ser suscitada
por essa distinção, sugiro uma metáfora química que subjazeria
às ideias de “condensação” e “concentração”: a condensação é um processo de transformação, como é o caso da transformação de vapor em líquido; a concentração está
relacionada ao excesso de determinada substância em um meio – ideia certamente mais próxima à tese defendida
por Pound a respeito do “excesso” e da “saturação” de significados convocados por determinadas palavras.
(8) “the
good writer chooses his
words for their “meaning”, but that meaning is not a set, cut-off thing like
the move of knight or pawn on a chess-board. It comes up with roots, with
associations, with how and where the word is familiarly used, or where it has
been used brilliantly or memorably” (POUND, 1991, p. 36)
(9) “will
probably throw the image of a past decade upon the reader’s mental screen”
(POUND, 1991, p. 37).
(10) “there
is no end to the number of qualities which some people can associate with a
given word or kind of word, and most of these vary with the individual” (POUND,
1991, p. 37).
(11) Este
poema de Pessoa foi citado mais de uma vez por Mário Cesariny, conforme
verificamos na seção V do poema “Discurso”, publicado em Discurso
sobre a reabilitação do real quotidiano, de 1952.
O primeiro verso do poema é já uma citação de “Tenho dó das estrelas”: “Falta
por aqui uma grande razão” (CESARINY, 2007, p. 25).
(12) PESSOA,
Fernando. Obra poética: em um volume.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 413-415.
Poderá gostar de ler algumas cenas da
escrita de Mário Cesariny:
CARREIRO, José. “tal
como catedrais, Cesariny”.
Portugal, Folha de Poesia, 02-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/tal-como-catedrais-cesariny.html