E VOLTO A ULISSES
E volto contigo a Ulisses, a maior
palavra, depois de amor, que deste.
Mortal, não Deus, eis a astúcia.
O seu, o corpo de Penélope preferia.
A jangada de viver uma só vez.
e ficar, deitado, em Ítaca.
António Osório, A luz
fraterna: poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim., 2009, p. 112.
A
SUA MÃE
...e
eu quis abraçar a alma da minha
falecida mãe. Três vezes me lancei para ela,
pois o coração impelia-me a abraçá-la, e
outras três se evolou entre os meus braços
como uma sombra ou um sonho.
Odisseia 11.204-8
A
sua Mãe o sangue negro
deu a beber Ulisses. De reses
sacrificadas no inferno,
sobre um fosso, que cobrira
de mel, vinho, água,
farinha de cevada: assim
implorou a cabeça dos mortos.
Tudo conseguiu Ulisses,
menos iludir a sua dor.
Mais engenhosa a morte
e seus cavalos de Troia.
António Osório, A luz
fraterna: poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim., 2009, p. 112.
Leia o
excerto de uma entrevista realizada por Carlos Vaz Marques ao poeta António
Osório, na sequência da publicação do seu livro O Concerto Interior.
O
que é que o levou a decidir contar a sua vida?
Toda
a minha poesia é, em certo sentido, uma biografia. O João Gaspar Simões1,
quando saiu o meu primeiro livro – e com toda a razão –, interrogou-se: «Mas
quem é este poeta António Osório que ninguém conhece?» Depois observou: «Este
homem, ao contrário da poesia de hoje, só escreve sobre sentimentos vividos.» E
é um facto. Eu nunca escrevi nada sobre este mundo todo que não fosse isso: a
cadela que eu amei, os pássaros, o Sol, a Lua.
Em
certo sentido, é um poeta nos antípodas de Fernando Pessoa.
Eu
não quero estabelecer comparações dessas. Mas há pessoas que já viram isso: que
eu estou num outro lado.
Do
lado do vivido mais do que do intelectualizado?
Exatamente.
Isso, sim.
Estas
suas memórias podem ser lidas como uma espécie de livro de instruções para os leitores
da sua poesia?
O
livro [O Concerto Interior]
também é isso. Ajuda. Se as pessoas não perceberam, por exemplo, o poema «Volto
contigo a Ulisses», eu explico o poema todo. Eu estava doente, a minha mãe
tinha pavor de que eu morresse tuberculoso e lia-me o Ulisses.
Isso
confirma que este livro é a chave para a sua poesia.
Em
certo sentido, é a revelação dos recessos2 da minha poesia, de um
certo número de segredos. Todos temos segredos e eu revelo alguns, importantes,
que ajudam o leitor a perceber que aquele sujeito que lia o Dante ou o Camões
era um indivíduo que podia morrer.
A
sua poesia ainda tem segredos para si?
A
minha poesia é uma luta contra a morte. Contra esse erro que é a morte.
Mas
tem zonas obscuras ou tudo nela é cristalino para si?
A
vida é cristalina, a morte é repelente. Nunca percebi como, no mistério da criação,
pode existir a morte. Nisso sou do contra. E procuro o quê? Procuro exaltar
tudo o que a vida tem de bom.
Daí
ter um livro que se chama A
Ignorância da Morte; procura bani-la do seu
horizonte poético?
Exatamente.
E na vida prática.
Paradoxalmente
– e até com um certo grau de ironia –, parece ter sido a doença a permitir-lhe
orientar-se na direção da poesia.
Exatamente.
Que me orientasse, não; que fosse orientado pela minha mãe. A minha mãe, naquela
minha idade – tinha oito anos quando adoeci –, podia ter-me lido o Borda
d’Água3 ou
outra coisa, mas só me lia poetas italianos e gregos: o Homero, o Dante.
Pode
dizer-se que se lhe aplica a máxima de que há males que vêm por bem?
A
mãe tentou compensar-me, tentou lutar contra a minha morte dando-me poesia.
Tenho de agradecer a dádiva da poesia.
Escreve
até que foi «salvo ao mesmo tempo pelo médico, pelo amor dos pais e pela dádiva
da poesia».
É
verdade. A poesia deu-me uma alma enorme. Eu estava na cama, queria ir para a
praia, mas a mãe, lendo-me aquelas aventuras do Pátroclo e do Heitor4,
a maravilha da Odisseia, despertou-me
um outro entusiasmo. Tinha aquilo todos os dias e queria.
Ler, n.º 117, outubro de 2012 (adaptado)
______________
1 João Gaspar Simões (linha
2) – escritor e ensaísta português.
2 recessos (linha
18) – lugares mais recônditos ou escondidos, íntimos.
3 Borda d’Água (linha 33) – publicação anual que contém informações sobre
marés, feriados e as culturas próprias de cada mês.
4 Pátroclo e Heitor (linha 41) –
personagens de Ilíada de Homero.
Questionário sobre o excerto da entrevista a António Osório
1. Para responder
a cada um dos itens de 1.1. a
1.7., selecione a única opção que permite obter uma afirmação
correta.
Escreva, na folha de respostas, o número de cada
item e a letra que identifica a opção escolhida.
1.1. De acordo com
o conteúdo da entrevista, a poesia de António Osório distingue-se da dos seus contemporâneos
pelo seu carácter
(A) fantasista.
(B) metafísico.
(C) autobiográfico.
(D) intelectualizado.
1.2. Relativamente
à obra poética de António Osório, O Concerto
Interior constitui uma
(A) explicação.
(B) contradição.
(C) fatalidade.
(D) incoerência.
1.3. Relativamente
à morte, o poeta tem uma atitude de
(A) resignação.
(B) insurreição.
(C) apatia.
(D) indiferença.
1.4. O despertar de
António Osório para a poesia resulta
(A) da
observação da natureza.
(B) de
vivências da infância.
(C) de
leituras da obra pessoana.
(D) da
consciência da eternidade.
1.5. A questão
iniciada por «Mas» (linha 23), relativamente à questão colocada na linha 21,
corresponde
(A) à
introdução de uma ideia nova, oposta à anterior.
(B) a
uma síntese da opinião do entrevistado.
(C) a
uma leitura alternativa da obra do poeta.
(D) à
clarificação daquilo que se pretende perguntar.
1.6. No contexto em
que ocorre, a expressão «Tenho de agradecer» (linhas 36 e 37) transmite um
valor de
(A) possibilidade.
(B) obrigatoriedade.
(C) permissão.
(D) concessão.
1.7. Na frase «A
mãe tentou compensar-me, tentou lutar contra a minha morte dando-me poesia.» (linha
36), os pronomes pessoais desempenham, respetivamente, as funções sintáticas de
(A) predicativo
do sujeito e complemento direto.
(B) complemento
indireto e complemento direto.
(C) complemento
direto e complemento indireto.
(D) predicativo
do sujeito e complemento indireto.
2. Responda de
forma correta aos itens apresentados.
2.1. Transcreva a
oração subordinada adverbial presente no excerto seguinte.
«Se as pessoas não
perceberam, por exemplo, o poema “Volto contigo a Ulisses”, eu explico o poema
todo.» (linhas 14 e 15).
2.2. Classifique o
ato ilocutório presente em «A sua poesia ainda tem segredos para si?» (linha
21).
2.3. Indique o
valor da oração subordinada adjetiva relativa presente em «Daí ter um livro que
se chama A Ignorância da Morte»
(linha 27).
Chave
de correção:
1.1. (C); 1.2.
(A); 1.3. (B); 1.4. (B); 1.5. (D).
2.1. «Se as pessoas não perceberam, por exemplo, o poema
“Volto contigo a Ulisses”».
2.2. (Ato ilocutório) diretivo.
2.3. (Valor) restritivo.
Fonte: Exame
Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho).
Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2013, 2.ª Fase
Recensão
crítica a O Concerto Interior. Evocações de Um Poeta, de António Osório
Autor de uma obra vasta e original, repartida em
poesia e prosa, António Osório ocupa, nas letras portuguesas dos séculos XX e
XXI, o raro lugar de poeta dos afetos. A singularidade da sua obra resulta,
entre outros aspetos, da presença de um conjunto de figuras íntimas,
provenientes da esfera familiar, que acabam por transformar-se em imagens
poéticas autónomas com uma vida e uma expressão que lhes são conferidas pelo
sujeito.
A presença daquelas figuras, na obra do autor de
Décima Aurora, é tão ou mais importante quanto daí advêm consequências quer
para a indiferenciação genológica de alguns dos seus textos, quer para uma
certa amálgama discursiva que parece abranger a sua obra. Talvez o melhor
exemplo do que se acaba de referir seja o facto de encontrarmos, na poesia de
Osório, um coloquialismo mais próprio da prosa e, nesta, pelo contrário, um
sentido mais poético.
Será, porventura, nesta mistura entre o poético e o
coloquial, que encontramos a linguagem do «cuore» (coração), que António Osório
cultiva através do uso de uma sintaxe que recusa excessos vocabulares, e que já
Eduardo Lourenço notava no prefácio de uma antologia que organizou sobre a
poesia do primeiro, onde, aliás, também não deixou de sublinhar esse incomum
deslumbramento pela vida tão próprio da escrita deste poeta.
É, pois, desse encantamento perante a beleza da vida,
dos homens, dos animais, das plantas ou das coisas que nasce uma linguagem do
coração, onde a compreensão da realidade não se faz sem recurso ao afeto e
onde, em última instância, nada existe sem estar ligado a essa «raiz afetuosa».
Neste sentido, tanto a poesia como a prosa do autor de A Teia Dupla parecem
fazer parte de um belo e luminoso tecido brocado, onde cada memória surge
emoldurada pela ternura e calma próprias de um espírito que procura a harmonia
das coisas simples e naturais, aceitando a vida com a sabedoria e a passividade
que, porventura, absorve nos clássicos gregos e latinos.
Se a poesia de António Osório se constrói em torno de
uma constelação de figuras provenientes do seio familiar, o que, entre outras
coisas, lhe define uma feição autobiográfica - como aliás já foi referido por
outros ensaístas neste mesmo lugar -, tal não é menos verdadeiro para a prosa
seja em títulos como Vozes Íntimas ou O Concerto Interior, de que agora nos
ocupamos.
Não sendo nosso objetivo discutir se se trata de uma
autobiografia ou de um conjunto de memórias, o que nos levaria longas e
demoradas páginas, gostaríamos, ainda assim, de referir que O Concerto Interior
é talvez um curioso livro de memórias, onde o lado da procura (de si mesmo) que
compete ao sujeito – traço característico do discurso autobiográfico – está
sobretudo presente nos poemas, neles imprimindo a emoção que destapa o interior
daquele que escreve: «Não te ouvirei mais ruminar,/tua forma de prece,
olhando-me, grata,/distante, aquecendo-me no Inverno,/fazendo-me sonhar em
minha mãe,/como um camponês sua fortuna, temendo que morresses.» (p.22)
Porém, no universo da escrita do eu não há, em
regra, géneros rigorosamente definidos, por isso cada texto tende a procurar
uma forma própria, onde apenas a substância se mostra indicadora da sua
natureza. Assim, há muitos textos, que mesmo contendo traços autobiográficos
não são autobiografias e é, neste sentido, que queremos justificar O Concerto
Interior mais como um interessante conjunto de memórias do que propriamente uma
autobiografia. Apesar da existência de um sujeito de primeira pessoa, que elege
a sua vida como matéria central da obra, a quem não falta até o desejo da confissão,
como se pode ler no prefácio (p. 11), a verdade é que, ao longo da maior parte
do texto, o eu prefere projetar-se nos outros mais do que encerrar-se no seu eu
– vejam-se as páginas dedicadas às tias e à explicação das relações familiares.
Sabemos, claro, que essa projeção é, no fim de contas, uma outra maneira de
falar de si, porquanto o gesto que fazemos na direção do outro implica que
procuremos também completar algo em nós – note-se, a título de exemplo, o caso
de Memórias, de Raul Brandão. Contudo, e como se faz notar no mesmo prefácio,
há, por parte do sujeito, um deambular de memória em memória – que, aliás, o
subtítulo - evocações de um poeta - parece de algum modo corroborar - que se
liga mais ao ato de recordar do que ao ato de se procurar. A busca da
identidade, que subjaz à autobiografia, é substituída por uma soma de factos
passados, ordenados em secções, a cada uma pertencendo um título, que, sem
dúvida, esboçam o percurso de uma vida, mas onde os «outros» merecem um
destaque superior ao do eu.
Voltando à relação entre a prosa e a poesia, de que se
falava atrás, as duas conjugam-se para urdir a tessitura autobiográfica que
vemos completar-se no tear da memória e que tem na obra de que nos ocupamos, a
invulgar capacidade de estabelecer esse diálogo direto e assumido com o
discurso poético: «As recordações são aqui acompanhadas de poemas. Não se trata
de uma antologia – a poesia procurou sempre tornar mais clara a minha vida, e a
prosa revela a verdade dos versos e das pessoas invocadas.»
Assim, memória e poesia orquestram este concerto
interior, onde a partir desta noção de complementaridade entre os dois
discursos, o sujeito tende a construir a sua identidade: a evocação dos entes
queridos faz-se acompanhar dos poemas que, porventura, albergam o que de mais
íntimo existe nesta escrita. É nos poemas que podemos ler as emoções que,
adivinhamos, dificilmente se podem dizer de outro modo, como estes versos que
se referem à figura materna: «E volto contigo a Ulisses, a maior/palavra, depois
de amor, que deste.» (p.26). Ou os versos que recordam o pai: «Lia-me Camões
meu Pai./A tristeza de ambos/se juntava, em mim crescia.» (p.29)
Como vimos anteriormente, a poesia torna mais «clara»
a vida do sujeito, servindo a prosa, ao que parece, para, de algum modo,
comprovar a existência das figuras que surgem nos versos. De facto, é
interessante reparar como certas figuras da poesia de António Osório, quer em
títulos como A Raiz Afetuosa ou A Ignorância da Morte são aqui como que
descodificadas. À prosa cumpre explicar desenvolvidamente aquilo que a poesia
só consegue, porventura, transmitir em matéria de emoção como no excerto em que
se esclarece a identidade da Srª Conceição para, em seguida, se transcrever o
poema «Louvor da Srª Conceição» (pp.18-19).
Por outro lado, se tomarmos como subjacentes ao
discurso do eu – aqui entendido em sentido lato - os atos de recolha e
construção de figura percebemos, desde logo, que o próprio título (O Concerto
Interior) isso reflete: concerto é sinónimo de consonância, harmonia; e essas
encontramo-las ao longo das várias páginas em que o sujeito parece percorrer um
álbum de recordações, coligindo memórias, desde a infância à idade adulta, na
procura de uma edificação de si e dos outros que não passa propriamente nem por
um ajuste de contas com o passado nem com um deitar contas à vida, mas talvez
mais com o ato de mostrar o que se viveu e com quem se viveu - a tal ato não
falta, apesar da atitude parcimoniosa do sujeito expressa no prefácio, um certo
narcisismo difícil de evitar para quem se aventura pelos terrenos do intimismo
e da autobiografia.
O sujeito que encontramos aqui busca de si e dos
outros, mas sobretudo destes, a face mais brilhante, mais luminosa, expressando
com frequência um sentimento de gratidão para com aqueles que o ajudaram a
progredir como indivíduo. Por isso, concerto tem talvez ainda uma outra aceção
– para além da relação com a música clássica, à qual acrescem as referências a
Vivaldi, por exemplo -, porventura mais bíblica, porquanto significa também
pacto ou aliança: não propriamente com Deus, mas com a vida que, na obra de
Osório, parece muitas vezes atingir uma dimensão sagrada.
Concluindo: não será sempre para aquele que se
procura, mesmo através dos outros – sobretudo dos que mais amou -, o pacto com
o passado algo essencial? O pacto com um passado que é o seu e o dos seus, qual
farol iluminando a vida adiantada de alguém que encontra nas lembranças afetivas
um território seguro? Em O Concerto Interior, é com o passado, espaço anterior
e interior, que o sujeito estabelece a aliança com uma visão sobre a vida e a
arte que se deseja luminosa, brilhante e limpa, onde o sofrimento, apesar de
presente, serve principalmente como degrau para um patamar espiritual mais
elevado, pontuado pela beleza das coisas naturais, dos bichos e dos gestos
fraternos, estando tudo isso envolto numa poesia que é quase música. Assim,
confundem-se perspectivas textuais, onde tão depressa vimos o homem atrás do
poeta como, em seguida, é este que se revela, convertendo a presente obra num
belo exemplar de escrita do eu, território onde o estilo do autor é, segundo
alguns críticos, aquilo que maior propriedade confere a textos que são, na
maioria das vezes, entre outras, uma mescla de autobiografia e memória. No caso
de António Osório vemos, ainda, juntar-se ao que há de autobiográfico e
memorialístico uma inegável nota poética.
Filipa Barata, "[Recensão crítica a
'O Concerto Interior. Evocações de Um Poeta', de António Osório]", Colóquio/Letras,
n.º 183, maio 2013, p. 236-238. Disponível em https://xdata.bookmarc.pt/gulbenkian/cl/pdfs/183/PT.FCG.RCL.9569.pdf
CARREIRO, José. “O Concerto Interior, António Osório”. Portugal,
Folha
de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 05-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/o-concerto-interior-antonio-osorio.html