quinta-feira, 6 de abril de 2023

O olfato é uma vista estranha, Bernardo Soares

https://picsart.com/ (03-04-2023)

 

O olfato é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente. Tenho sentido isto muitas vezes. Passo numa rua. Não vejo nada, ou antes, olhando tudo, vejo como toda a gente vê. Sei que vou por uma rua e não sei que ela existe com lados feitos de casas diferentes e construídas por gente humana. Passo numa rua. De uma padaria sai um cheiro a pão que nauseia por doce no cheiro dele: e a minha infância ergue-se de determinado bairro distante, e outra padaria me surge daquele reino das fadas que é tudo que se nos morreu. Passo numa rua. Cheira de repente às frutas do tabuleiro inclinado da loja estreita; e a minha breve vida de campo, não sei já quando nem onde, tem árvores ao fim e sossego no meu coração, indiscutivelmente menino. Passo uma rua. Transtorna-me, sem que eu espere, um cheiro aos caixotes do caixoteiro: ó meu Cesário, apareces-me e eu sou enfim feliz porque regressei, pela recordação, à única verdade, que é a literatura.

Bernardo Soares, Livro do desassossego. Edição de Teresa Sobral Cunha disponível em: https://ldod.uc.pt/reading/fragment/Fr151/inter/Fr151_WIT_ED_CRIT_SC

 

***

Quando Bernardo Soares passa por uma rua, ele sente cheiros que evocam memórias da sua infância e de outras experiências passadas, levando a um "desenhar súbito do subconsciente".

O olfato é o único sentido que está diretamente conectado ao sistema límbico, a parte do cérebro responsável pelas emoções e memórias. Isso significa que os cheiros podem desencadear uma resposta emocional intensa e evocar lembranças antigas de forma vívida e realista.

Bernardo Soares utiliza a palavra "vista" de forma figurada para descrever o poder do olfato em evocar paisagens sentimentais de forma instantânea, como se a pessoa estivesse "vendo" essas paisagens na mente. Essa figura de linguagem também sugere a importância do olfato na perceção e na experiência sensorial do autor.

A referência feita por Bernardo Soares ao poeta Cesário Verde no excerto do Livro do Desassossego pode ser interpretada como uma homenagem à sua poesia visualista e realista. O autor menciona o poeta ao descrever a evocação de memórias pela fragrância dos caixotes do caixoteiro, sugerindo que a obra de Cesário Verde tem um poder semelhante de evocação e de conexão com a realidade sensorial. Aliás, Bernardo Soares, num dos fragmentos do Livro do Desassossego, sentiu-se a viver no tempo de Cesário e tendo em si «não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele».

Bernardo Soares termina o seu texto afirmando que a literatura é a única verdade na sua vida e é capaz de evocar sentimentos e emoções mais verdadeiros do que a própria realidade. O olfato, por sua vez, é mencionado como um gatilho para essas emoções e memórias, que são capturadas pela literatura. Portanto, a literatura é vista como uma forma de registar e preservar as experiências sensoriais, incluindo o olfato.

 

Intertextualidade: Crónica de José Tolentino Mendonça

«O olfato é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente. Tenho sentido isto muitas vezes», confessava Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego. Um odor é, de facto, suficiente para desfolhar as páginas de uma história íntima. Ele mobiliza a nossa subjetividade e a nossa memória. Tem uma longuíssima duração. Por vezes, tocados pela sugestão de um odor, os olhos alargam-se num perfeito sorriso ou alagam-se numa brusca emoção. Os odores permitem-nos viajar no tempo e dentro de nós. São um instrumento interno de rememoração. E a nossa memória é uma paleta de odores.

A dificuldade de narrar um odor (é impossível fazê-lo com precisão, apenas com o recurso a metáforas e comparações lá chegamos) está bem expressa no diálogo perfumado de ironia das Investigações Filosóficas, quando Wittgenstein1 pergunta: «Procuraste já descrever o aroma do café sem conseguir?»

Num ensaio sobre a antropologia do olfato, David Le Breton2 escreve que as sociedades ocidentais deixaram de valorizar os odores. E dá dois exemplos: na época de Dürer3, existiam na língua alemã mais de cento e cinquenta e oito palavras para designar cheiros diferentes. Dessas, apenas trinta e duas hoje subsistem, e frequentemente como formas dialetais muito localizadas. Pelo contrário, no mundo árabe-muçulmano, que mantém mais viva a sabedoria dos odores, há cerca de duzentos e cinquenta termos a ela relativos. E os odores fornecem metáforas para todos os domínios da vida, desde as imagens mais triviais às mais sofisticadas. Para lá, claro, de encherem habitualmente as casas e transbordarem agilmente pelas ruas.

Freud4 associa o recuo cultural dos odores ao progresso civilizacional das nossas sociedades. E diz que o olfato perdeu importância em favor da visão. O odor está demasiado próximo dos estádios primitivos, expõe excessivamente a individualidade, lembra que há uma corporeidade que não passa despercebida, como seria conveniente.

Passou-se a viver numa insegurança em relação às emanações do próprio corpo. A narrativa publicitária agudiza essa incerteza em nome da necessidade de vender desodorizantes e perfumes. Esforçamo-nos por esconder os odores naturais e levamos a cabo verdadeiras operações de recomposição das paisagens olfativas onde nos movemos. Cresce todo um comércio ligado ao olfato ambiental, com aromas para as várias divisões da casa e para o automóvel, líquidos que imitam o odor do pinheiro ou da lavanda, mesmo se os nossos estilos de vida nos distanciam cada vez mais da natureza. O nosso olfato capturado pelas diretivas do comércio torna-se mais controlado, mas também mais artificial.

José Tolentino Mendonça, Expresso, «Revista», 27-09-2014

(adaptado pelo IAVE– Instituto de Avaliação Educativa in Exame Final Nacional do Ensino Secundário n.º 639 - Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho. Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade, 2015, 1.ª Fase. Disponível em: https://iave.pt/wp-content/uploads/2020/04/EX-Port639-F1-2014-V1.pdf)

______________
1 Wittgenstein – filósofo (n. 1889 – f. 1951).
2 David Le Breton – antropólogo e sociólogo (n. 1953 –).
3 Dürer – artista plástico (n. 1471 – f. 1528).
4 Freud – médico neurologista, fundador da Psicanálise (n. 1856 – f. 1939).

 


CARREIRO, José. “O olfato é uma vista estranha, Bernardo Soares”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 06-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/o-olfato-e-uma-vista-estranha-bernardo.html


quarta-feira, 5 de abril de 2023

O Concerto Interior, António Osório

  

E VOLTO A ULISSES

E volto contigo a Ulisses, a maior
palavra, depois de amor, que deste.
Mortal, não Deus, eis a astúcia.
O seu, o corpo de Penélope preferia.
A jangada de viver uma só vez.
e ficar, deitado, em Ítaca.

 

António Osório, A luz fraterna: poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim., 2009, p. 112.

 

A SUA MÃE

...e eu quis abraçar a alma da minha
falecida mãe. Três vezes me lancei para ela,
pois o coração impelia-me a abraçá-la, e
outras três se evolou entre os meus braços
como uma sombra ou um sonho.

Odisseia 11.204-8

A sua Mãe o sangue negro
deu a beber Ulisses. De reses
sacrificadas no inferno,
sobre um fosso, que cobrira
de mel, vinho, água,
farinha de cevada: assim
implorou a cabeça dos mortos.
Tudo conseguiu Ulisses,
menos iludir a sua dor.
Mais engenhosa a morte
e seus cavalos de Troia.

 

António Osório, A luz fraterna: poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim., 2009, p. 112.

 


Leia o excerto de uma entrevista realizada por Carlos Vaz Marques ao poeta António Osório, na sequência da publicação do seu livro O Concerto Interior.

 

O que é que o levou a decidir contar a sua vida?

Toda a minha poesia é, em certo sentido, uma biografia. O João Gaspar Simões1, quando saiu o meu primeiro livro – e com toda a razão –, interrogou-se: «Mas quem é este poeta António Osório que ninguém conhece?» Depois observou: «Este homem, ao contrário da poesia de hoje, só escreve sobre sentimentos vividos.» E é um facto. Eu nunca escrevi nada sobre este mundo todo que não fosse isso: a cadela que eu amei, os pássaros, o Sol, a Lua.

Em certo sentido, é um poeta nos antípodas de Fernando Pessoa.

Eu não quero estabelecer comparações dessas. Mas há pessoas que já viram isso: que eu estou num outro lado.

Do lado do vivido mais do que do intelectualizado?

Exatamente. Isso, sim.

Estas suas memórias podem ser lidas como uma espécie de livro de instruções para os leitores da sua poesia?

O livro [O Concerto Interior] também é isso. Ajuda. Se as pessoas não perceberam, por exemplo, o poema «Volto contigo a Ulisses», eu explico o poema todo. Eu estava doente, a minha mãe tinha pavor de que eu morresse tuberculoso e lia-me o Ulisses.

Isso confirma que este livro é a chave para a sua poesia.

Em certo sentido, é a revelação dos recessos2 da minha poesia, de um certo número de segredos. Todos temos segredos e eu revelo alguns, importantes, que ajudam o leitor a perceber que aquele sujeito que lia o Dante ou o Camões era um indivíduo que podia morrer.

A sua poesia ainda tem segredos para si?

A minha poesia é uma luta contra a morte. Contra esse erro que é a morte.

Mas tem zonas obscuras ou tudo nela é cristalino para si?

A vida é cristalina, a morte é repelente. Nunca percebi como, no mistério da criação, pode existir a morte. Nisso sou do contra. E procuro o quê? Procuro exaltar tudo o que a vida tem de bom.

Daí ter um livro que se chama A Ignorância da Morte; procura bani-la do seu horizonte poético?

Exatamente. E na vida prática.

Paradoxalmente – e até com um certo grau de ironia –, parece ter sido a doença a permitir-lhe orientar-se na direção da poesia.

Exatamente. Que me orientasse, não; que fosse orientado pela minha mãe. A minha mãe, naquela minha idade – tinha oito anos quando adoeci –, podia ter-me lido o Borda d’Água3 ou outra coisa, mas só me lia poetas italianos e gregos: o Homero, o Dante.

Pode dizer-se que se lhe aplica a máxima de que há males que vêm por bem?

A mãe tentou compensar-me, tentou lutar contra a minha morte dando-me poesia. Tenho de agradecer a dádiva da poesia.

Escreve até que foi «salvo ao mesmo tempo pelo médico, pelo amor dos pais e pela dádiva da poesia».

É verdade. A poesia deu-me uma alma enorme. Eu estava na cama, queria ir para a praia, mas a mãe, lendo-me aquelas aventuras do Pátroclo e do Heitor4, a maravilha da Odisseia, despertou-me um outro entusiasmo. Tinha aquilo todos os dias e queria.

Ler, n.º 117, outubro de 2012 (adaptado)

______________
1 João Gaspar Simões (linha 2) – escritor e ensaísta português.
2
recessos (linha 18) – lugares mais recônditos ou escondidos, íntimos.
3 Borda d’Água (linha 33) – publicação anual que contém informações sobre marés, feriados e as culturas próprias de cada mês.
4 Pátroclo e Heitor (linha 41) – personagens de Ilíada de Homero.

 

 

Questionário sobre o excerto da entrevista a António Osório

1. Para responder a cada um dos itens de 1.1. a 1.7., selecione a única opção que permite obter uma afirmação correta.

Escreva, na folha de respostas, o número de cada item e a letra que identifica a opção escolhida.

1.1. De acordo com o conteúdo da entrevista, a poesia de António Osório distingue-se da dos seus contemporâneos pelo seu carácter

(A) fantasista.

(B) metafísico.

(C) autobiográfico.

(D) intelectualizado.

1.2. Relativamente à obra poética de António Osório, O Concerto Interior constitui uma

(A) explicação.

(B) contradição.

(C) fatalidade.

(D) incoerência.

1.3. Relativamente à morte, o poeta tem uma atitude de

(A) resignação.

(B) insurreição.

(C) apatia.

(D) indiferença.

1.4. O despertar de António Osório para a poesia resulta

(A) da observação da natureza.

(B) de vivências da infância.

(C) de leituras da obra pessoana.

(D) da consciência da eternidade.

1.5. A questão iniciada por «Mas» (linha 23), relativamente à questão colocada na linha 21, corresponde

(A) à introdução de uma ideia nova, oposta à anterior.

(B) a uma síntese da opinião do entrevistado.

(C) a uma leitura alternativa da obra do poeta.

(D) à clarificação daquilo que se pretende perguntar.

1.6. No contexto em que ocorre, a expressão «Tenho de agradecer» (linhas 36 e 37) transmite um valor de

(A) possibilidade.

(B) obrigatoriedade.

(C) permissão.

(D) concessão.

1.7. Na frase «A mãe tentou compensar-me, tentou lutar contra a minha morte dando-me poesia.» (linha 36), os pronomes pessoais desempenham, respetivamente, as funções sintáticas de

(A) predicativo do sujeito e complemento direto.

(B) complemento indireto e complemento direto.

(C) complemento direto e complemento indireto.

(D) predicativo do sujeito e complemento indireto.

2. Responda de forma correta aos itens apresentados.

2.1. Transcreva a oração subordinada adverbial presente no excerto seguinte.

«Se as pessoas não perceberam, por exemplo, o poema “Volto contigo a Ulisses”, eu explico o poema todo.» (linhas 14 e 15).

2.2. Classifique o ato ilocutório presente em «A sua poesia ainda tem segredos para si?» (linha 21).

2.3. Indique o valor da oração subordinada adjetiva relativa presente em «Daí ter um livro que se chama A Ignorância da Morte» (linha 27).

 

Chave de correção:

1.1. (C); 1.2. (A); 1.3. (B); 1.4. (B); 1.5. (D).

2.1. «Se as pessoas não perceberam, por exemplo, o poema “Volto contigo a Ulisses”».

2.2. (Ato ilocutório) diretivo.

2.3. (Valor) restritivo.

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2013, 2.ª Fase



 

Recensão crítica a O Concerto Interior. Evocações de Um Poeta, de António Osório

Autor de uma obra vasta e original, repartida em poesia e prosa, António Osório ocupa, nas letras portuguesas dos séculos XX e XXI, o raro lugar de poeta dos afetos. A singularidade da sua obra resulta, entre outros aspetos, da presença de um conjunto de figuras íntimas, provenientes da esfera familiar, que acabam por transformar-se em imagens poéticas autónomas com uma vida e uma expressão que lhes são conferidas pelo sujeito.

A presença daquelas figuras, na obra do autor de Décima Aurora, é tão ou mais importante quanto daí advêm consequências quer para a indiferenciação genológica de alguns dos seus textos, quer para uma certa amálgama discursiva que parece abranger a sua obra. Talvez o melhor exemplo do que se acaba de referir seja o facto de encontrarmos, na poesia de Osório, um coloquialismo mais próprio da prosa e, nesta, pelo contrário, um sentido mais poético.

Será, porventura, nesta mistura entre o poético e o coloquial, que encontramos a linguagem do «cuore» (coração), que António Osório cultiva através do uso de uma sintaxe que recusa excessos vocabulares, e que já Eduardo Lourenço notava no prefácio de uma antologia que organizou sobre a poesia do primeiro, onde, aliás, também não deixou de sublinhar esse incomum deslumbramento pela vida tão próprio da escrita deste poeta.

É, pois, desse encantamento perante a beleza da vida, dos homens, dos animais, das plantas ou das coisas que nasce uma linguagem do coração, onde a compreensão da realidade não se faz sem recurso ao afeto e onde, em última instância, nada existe sem estar ligado a essa «raiz afetuosa». Neste sentido, tanto a poesia como a prosa do autor de A Teia Dupla parecem fazer parte de um belo e luminoso tecido brocado, onde cada memória surge emoldurada pela ternura e calma próprias de um espírito que procura a harmonia das coisas simples e naturais, aceitando a vida com a sabedoria e a passividade que, porventura, absorve nos clássicos gregos e latinos.

Se a poesia de António Osório se constrói em torno de uma constelação de figuras provenientes do seio familiar, o que, entre outras coisas, lhe define uma feição autobiográfica - como aliás já foi referido por outros ensaístas neste mesmo lugar -, tal não é menos verdadeiro para a prosa seja em títulos como Vozes Íntimas ou O Concerto Interior, de que agora nos ocupamos.

Não sendo nosso objetivo discutir se se trata de uma autobiografia ou de um conjunto de memórias, o que nos levaria longas e demoradas páginas, gostaríamos, ainda assim, de referir que O Concerto Interior é talvez um curioso livro de memórias, onde o lado da procura (de si mesmo) que compete ao sujeito – traço característico do discurso autobiográfico – está sobretudo presente nos poemas, neles imprimindo a emoção que destapa o interior daquele que escreve: «Não te ouvirei mais ruminar,/tua forma de prece, olhando-me, grata,/distante, aquecendo-me no Inverno,/fazendo-me sonhar em minha mãe,/como um camponês sua fortuna, temendo que morresses.» (p.22)

Porém, no universo da escrita do eu não há, em regra, géneros rigorosamente definidos, por isso cada texto tende a procurar uma forma própria, onde apenas a substância se mostra indicadora da sua natureza. Assim, há muitos textos, que mesmo contendo traços autobiográficos não são autobiografias e é, neste sentido, que queremos justificar O Concerto Interior mais como um interessante conjunto de memórias do que propriamente uma autobiografia. Apesar da existência de um sujeito de primeira pessoa, que elege a sua vida como matéria central da obra, a quem não falta até o desejo da confissão, como se pode ler no prefácio (p. 11), a verdade é que, ao longo da maior parte do texto, o eu prefere projetar-se nos outros mais do que encerrar-se no seu eu – vejam-se as páginas dedicadas às tias e à explicação das relações familiares. Sabemos, claro, que essa projeção é, no fim de contas, uma outra maneira de falar de si, porquanto o gesto que fazemos na direção do outro implica que procuremos também completar algo em nós – note-se, a título de exemplo, o caso de Memórias, de Raul Brandão. Contudo, e como se faz notar no mesmo prefácio, há, por parte do sujeito, um deambular de memória em memória – que, aliás, o subtítulo - evocações de um poeta - parece de algum modo corroborar - que se liga mais ao ato de recordar do que ao ato de se procurar. A busca da identidade, que subjaz à autobiografia, é substituída por uma soma de factos passados, ordenados em secções, a cada uma pertencendo um título, que, sem dúvida, esboçam o percurso de uma vida, mas onde os «outros» merecem um destaque superior ao do eu.

Voltando à relação entre a prosa e a poesia, de que se falava atrás, as duas conjugam-se para urdir a tessitura autobiográfica que vemos completar-se no tear da memória e que tem na obra de que nos ocupamos, a invulgar capacidade de estabelecer esse diálogo direto e assumido com o discurso poético: «As recordações são aqui acompanhadas de poemas. Não se trata de uma antologia – a poesia procurou sempre tornar mais clara a minha vida, e a prosa revela a verdade dos versos e das pessoas invocadas.»

Assim, memória e poesia orquestram este concerto interior, onde a partir desta noção de complementaridade entre os dois discursos, o sujeito tende a construir a sua identidade: a evocação dos entes queridos faz-se acompanhar dos poemas que, porventura, albergam o que de mais íntimo existe nesta escrita. É nos poemas que podemos ler as emoções que, adivinhamos, dificilmente se podem dizer de outro modo, como estes versos que se referem à figura materna: «E volto contigo a Ulisses, a maior/palavra, depois de amor, que deste.» (p.26). Ou os versos que recordam o pai: «Lia-me Camões meu Pai./A tristeza de ambos/se juntava, em mim crescia.» (p.29)

Como vimos anteriormente, a poesia torna mais «clara» a vida do sujeito, servindo a prosa, ao que parece, para, de algum modo, comprovar a existência das figuras que surgem nos versos. De facto, é interessante reparar como certas figuras da poesia de António Osório, quer em títulos como A Raiz Afetuosa ou A Ignorância da Morte são aqui como que descodificadas. À prosa cumpre explicar desenvolvidamente aquilo que a poesia só consegue, porventura, transmitir em matéria de emoção como no excerto em que se esclarece a identidade da Srª Conceição para, em seguida, se transcrever o poema «Louvor da Srª Conceição» (pp.18-19).

Por outro lado, se tomarmos como subjacentes ao discurso do eu – aqui entendido em sentido lato - os atos de recolha e construção de figura percebemos, desde logo, que o próprio título (O Concerto Interior) isso reflete: concerto é sinónimo de consonância, harmonia; e essas encontramo-las ao longo das várias páginas em que o sujeito parece percorrer um álbum de recordações, coligindo memórias, desde a infância à idade adulta, na procura de uma edificação de si e dos outros que não passa propriamente nem por um ajuste de contas com o passado nem com um deitar contas à vida, mas talvez mais com o ato de mostrar o que se viveu e com quem se viveu - a tal ato não falta, apesar da atitude parcimoniosa do sujeito expressa no prefácio, um certo narcisismo difícil de evitar para quem se aventura pelos terrenos do intimismo e da autobiografia.

O sujeito que encontramos aqui busca de si e dos outros, mas sobretudo destes, a face mais brilhante, mais luminosa, expressando com frequência um sentimento de gratidão para com aqueles que o ajudaram a progredir como indivíduo. Por isso, concerto tem talvez ainda uma outra aceção – para além da relação com a música clássica, à qual acrescem as referências a Vivaldi, por exemplo -, porventura mais bíblica, porquanto significa também pacto ou aliança: não propriamente com Deus, mas com a vida que, na obra de Osório, parece muitas vezes atingir uma dimensão sagrada.

Concluindo: não será sempre para aquele que se procura, mesmo através dos outros – sobretudo dos que mais amou -, o pacto com o passado algo essencial? O pacto com um passado que é o seu e o dos seus, qual farol iluminando a vida adiantada de alguém que encontra nas lembranças afetivas um território seguro? Em O Concerto Interior, é com o passado, espaço anterior e interior, que o sujeito estabelece a aliança com uma visão sobre a vida e a arte que se deseja luminosa, brilhante e limpa, onde o sofrimento, apesar de presente, serve principalmente como degrau para um patamar espiritual mais elevado, pontuado pela beleza das coisas naturais, dos bichos e dos gestos fraternos, estando tudo isso envolto numa poesia que é quase música. Assim, confundem-se perspectivas textuais, onde tão depressa vimos o homem atrás do poeta como, em seguida, é este que se revela, convertendo a presente obra num belo exemplar de escrita do eu, território onde o estilo do autor é, segundo alguns críticos, aquilo que maior propriedade confere a textos que são, na maioria das vezes, entre outras, uma mescla de autobiografia e memória. No caso de António Osório vemos, ainda, juntar-se ao que há de autobiográfico e memorialístico uma inegável nota poética.

 

Filipa Barata, "[Recensão crítica a 'O Concerto Interior. Evocações de Um Poeta', de António Osório]", Colóquio/Letras, n.º 183, maio 2013, p. 236-238. Disponível em https://xdata.bookmarc.pt/gulbenkian/cl/pdfs/183/PT.FCG.RCL.9569.pdf

 

 


CARREIRO, José. “O Concerto Interior, António Osório”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 05-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/o-concerto-interior-antonio-osorio.html