segunda-feira, 24 de junho de 2024

É tão bom uma amizade assim, Sérgio Godinho

 


               É TÃO BOM

 

Vale a pena ver

 

castelos no mar alto

 

Vale a pena dar o salto

 

p’ra dentro do barco

5

rumo à maravilha

 

e pé ante pé desembarcar na ilha

 

Pássaros com cores que nunca vi

 

que o arco-íris queria para si

 

eu vi o que quis ver afinal

 

 

10

É tão bom uma amizade assim

 

Ai, faz tão bem saber com quem contar

 

Eu quero ir ver quem me quer assim

 

É bom para mim e é bom p’ra quem tão bem me quer

 

 

 

Vale a pena ver

15

o mundo aqui do alto

 

vale a pena dar o salto

 

Daqui vê-se tudo

 

às mil maravilhas

 

na terra as montanhas e no mar as ilhas

20

Queremos ir à lua mas voltar

 

convém dar a curva

 

sem se derrapar

 

na avenida do luar

 

 

 

É tão bom uma amizade assim

25

Ai, faz tão bem saber com quem contar

 

Eu quero ir ver quem me quer assim

 

É bom para mim e é bom p’ra quem tão bem me quer

“É tão bom”, letra de Sérgio Godinho, do álbum Sérgio Godinho canta com os amigos do Gaspar, 1988

 

De acordo com a leitura da letra da canção “É tão bom”, de Sérgio Godinho, classifica cada afirmação que se segue como verdadeira ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas.

1. A primeira estrofe usa comparações como "castelos no mar alto" e "dar o salto p’ra dentro do barco".

2. A expressão “dar o salto p’ra dentro do barco” sugere a hesitação e a procura de segurança no interior da embarcação.

3. A expressão "castelos no mar alto" simboliza algo grandioso e distante, representando a coragem e o desejo de explorar e se aventurar no desconhecido.

4. O refrão da canção celebra a importância das amizades e o apoio mútuo.

5. A ilha mencionada na letra da canção representa um lugar de maravilhas e novas experiências.

6. A expressão "eu vi o que quis ver afinal" (verso 9) sugere uma sensação de deceção com as descobertas feitas.

7. A terceira estrofe (versos 14 a 23) sugere que é importante tomar cuidado ao buscar novas experiências para evitar problemas.

8. A menção à lua e à “avenida do luar” (verso 23) adiciona um toque de realismo à música.

 

Respostas:

1. Falso. A primeira estrofe usa metáforas como "castelos no mar alto" e "dar o salto p’ra dentro do barco".

2. Falso. A expressão “dar o salto p’ra dentro do barco” simboliza a coragem de embarcar em novas jornadas e explorar o desconhecido. Ela não sugere hesitação, mas sim disposição para se aventurar.

3. Verdadeiro.

4. Verdadeiro.

5. Verdadeiro.

6. Falso. A expressão "eu vi o que quis ver afinal" sugere uma satisfação pessoal com as descobertas feitas, e não uma sensação de deceção. O sujeito poético encontrou o que procurava e está satisfeito com as suas descobertas.

7. Verdadeiro

8. Falso. As menções à lua e à "avenida do luar" adicionam um toque de fantasia e sonho à música, e não realismo. Elas servem para enriquecer a letra com uma qualidade poética e imaginativa, reforçando os temas de exploração e maravilha de maneira encantada e idealizada. A música utiliza esses elementos para criar um ambiente que é mais sobre aspiração e encantamento do que sobre a realidade prática e quotidiana.

 

domingo, 16 de junho de 2024

Depus a máscara e vi-me ao espelho, Álvaro de Campos


 

Depus a máscara e vi-me ao espelho...
Era a criança de há quantos anos...
Não tinha mudado nada...

É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que fica,
A criança.

Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor.
Assim sou a máscara.

E volto à normalidade como a um términus de linha.

 

Álvaro de Campos, Poesia, edição de Teresa Rita Lopes,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p. 514.

 

QUESTIONÁRIO

1. Explique a importância da máscara na construção da dualidade do sujeito poético, tal como é apresentada ao longo do poema.

2. Depois de tirar a máscara, o sujeito poético opta por tornar a pô-la.

Justifique essa opção, com base em dois aspetos significativos.

3. Considere as afirmações seguintes sobre o poema.

I. O ato de se ver ao espelho sugere o desejo de autoconhecimento por parte do sujeito poético.

II. O sujeito poético anseia voltar a viver o seu tempo de infância.

III. A coexistência de versos longos e de versos curtos contribui para o ritmo do poema.

IV. O recurso às reticências, no verso 3, indicia a frustração sentida pelo sujeito poético.

V. No texto, evidenciam-se características da linguagem poética de Álvaro de Campos, como a liberdade formal e o uso de anáforas.

Identifique as três afirmações verdadeiras.

 

CRITÉRIOS DE CORREÇÃO

1. Explica a importância da máscara na construção da dualidade do sujeito poético, abordando, adequadamente, os dois tópicos de resposta.

- a máscara esconde o Eu associado à infância, num jogo entre ser e parecer/passado e presente, no qual a permanência do Eu passado surge quando a máscara é retirada;

- a duplicidade permite que o sujeito poético mantenha o seu ser autêntico e, simultaneamente, que desempenhe o papel social associado à máscara (optando pela identidade adquirida pela máscara).

 

2. Justifica a opção do sujeito poético por tornar a pôr a máscara, abordando, adequadamente, dois dos tópicos de resposta.

 

- a criança que a máscara oculta representa a vulnerabilidade do sujeito poético associada à infância;

- o Eu sente-se mais confortável quando coloca a máscara, na medida em que a imagem que dá a ver aos outros é a de alguém normal («E volto à normalidade» v. 11);

- a normalidade (o «términus de linha» v. 11) é construída através do recurso à máscara na viagem de autoconhecimento que o sujeito poético realiza, o que implica viver o presente, aceitando as convenções sociais.

 

3. I, III e V.


Fonte: Exame Final Nacional de Português | Prova 639 | 1.ª Fase | Ensino Secundário - 12.º Ano de Escolaridade | República Portuguesa – Educação, Ciência e Inovação / Instituto de Avaliação Educativa, I. P. (IAVE), 2024 (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho; Decreto-Lei n.º 62/2023, de 25 de julho) – VERSÃO 1


 ***


A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL AO SERVIÇO DA EDUCAÇÃO: explicação sistematizada do poema de Álvaro de Campos que saiu no exame 12.º ano.

1. **Tirar a máscara**

- O autor tira a máscara.

- Olha-se ao espelho.

- Vê-se como era em criança.

- A essência dele não mudou.

2. **Vantagem de tirar a máscara**

- Ao tirar a máscara, redescobre-se a criança interior.

- A verdadeira identidade, pura e intocada, permanece.

3. **Voltar a pôr a máscara**

- O autor decide voltar a pôr a máscara.

- Sente-se mais confortável e seguro assim.

- A máscara torna-se a sua personalidade.

4. **Aceitação**

- Aceita que vai continuar a usar a máscara.

- É assim que consegue viver e funcionar na sociedade.

 

Partilhado por Lúcia Vaz Pedro, in Pulsações Escritas - Facebook, 22/06/2024

segunda-feira, 10 de junho de 2024

A língua que falas e escreves


 

A língua que falas e escreves
é uma árvore de sons
que tem nos ramos as letras,
nas folhas os acentos
e nos frutos o sentido
de cada coisa que dizes.

É uma língua tão antiga
como isto de ser português.
Teve o latim por avô,
que primeiro foi romano,
depois bárbaro,
mais tarde monge medieval
ou copista do Renascimento.

A língua cresceu com o país,
que se alongou até ao sul
e depois chegou às ilhas,
vencendo os tormentos do mar.
O país ganhou a forma
de uma língua de terra
capaz de usar palavras
como “lonjura” e “saudade”.

Foi a língua da viagem,
do assombro e da aventura,
usada para relatar
descobertas e naufrágios,
triunfos e derrotas
nas mais remotas paragens,
enquanto os porões se enchiam
com as raras especiarias
que tanta fortuna fizeram.

É uma língua que se veste
de baiana no brasil,
ganhando feitiços de som
em Angola e Moçambique
e novos significados
lá para as bandas de Timor.
É uma língua que ajudou
a fazer o comércio e a guerra
mas que hoje prefere
usar os verbos da paz.

Esta é a língua dos escritores,
de Eça e de Camilo,
e de muitos outros mais,
dos semeadores de sons,
dos povoadores de versos
de todos os que dizem a quem começa:
Tratem bem a nossa língua,
pois se a tratam mal
nem imaginam o mal que fazem
a este Portugal.

Esta é a língua dos meninos
que brincam com as palavras
e fazem delas brinquedos
para alegrarem o recreio
das histórias mais bonitas
que alguém pode contar.

E o orgulho que temos
nesta língua portuguesa
irá do berço para a escola
e da escola para a rua,
pondo em cada palavra
uma pepita de ouro
e uma centelha de lua,
pois afinal esta língua
será sempre minha e tua.

 

José Jorge Letria, Esta Língua Portuguesa, Porto, Ambar, 2007

 

De acordo com a leitura do poema “A língua que falas e escreves”, de José Jorge Letria, classifica cada afirmação que se segue como verdadeira ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas.

1. No poema utiliza-se a metáfora da árvore para descrever a estrutura e a complexidade da língua portuguesa, associando letras, acentos e sentidos a diferentes partes da árvore.

2. A língua portuguesa é descrita como uma língua moderna e recente.

3. A língua portuguesa tem uma história não muito influente fora de Portugal.

4. A língua portuguesa é apresentada no poema como um meio de comunicação associado exclusivamente a aspetos negativos, como guerras e conflitos.

5. A alusão a figuras centrais na tradição literária de Portugal reforça a ideia de que a língua é um património valioso que deve ser cuidado e valorizado.

6. O poema faz um apelo para que a língua portuguesa seja preservada e tratada com cuidado, ligando sua importância à identidade cultural portuguesa.

7. No poema sugere-se que a língua portuguesa é apenas um objeto de estudo e não tem relação com a infância ou o quotidiano.

8. No final do poema, a língua portuguesa é descrita como algo que carrega uma pepita de ouro e uma centelha de lua, simbolizando seu valor e beleza.

 

Respostas:

1. Verdadeiro.

2. Falso. O sujeito poético afirma que a língua portuguesa é tão antiga quanto ser português e que teve o latim como ancestral, o que sugere uma longa história e evolução.

3. Falso. A língua portuguesa tem uma longa história, estando espalhada por diversas regiões do mundo, incluindo as ex-colónias portuguesas.

4. Falso. O poema menciona que a língua portuguesa ajudou no comércio e na guerra, mas hoje prefere usar "verbos da paz", indicando uma valorização da comunicação pacífica.

5. Verdadeiro.

6. Verdadeiro.

7. Falso. N poema refere-se a língua portuguesa como sendo a língua dos meninos que brincam com as palavras e das histórias que alegram o recreio, mostrando a sua presença no quotidiano e na infância.

8. Verdadeiro.

 

sábado, 8 de junho de 2024

Escrita criativa | O que é a poesia?

O que é a poesia?

(…) a poesia, apesar de se fazer com palavras, está muito para além delas. É aquilo que essas palavras conseguem levar e depositar no nosso coração. E para que isso aconteça, não é preciso que sejam palavras complicadas, frases elaboradas, rimas perfeitas. (…) É outra coisa. Que não se consegue nomear, mas que se sente. (…)

E não há uma maneira única de escrever poesia. Há quem, através da poesia, conte uma história; há quem recorde um pequeno pormenor que lhe chamou a atenção; há quem evoque cenas familiares; há quem escreva sobre um cheiro ou um olhar; há quem, muito simplesmente, brinque com as palavras e os seus sons.

Há poemas sobre animais, sobre pessoas, sobre sentimentos, sobre a natureza. Há poemas sobre fadas, sobre pastores, sobre crianças e velhos. Há poemas sobre uma rua, sobre uma casa, sobre uma pedra que de repente se encontra a meio do caminho. Há poemas sobre a tristeza e sobre a alegria. E podemos rir e chorar com eles. Pode-se escrever um poema a propósito de tudo. Não há temas melhores ou temas piores: há a arte de saber escrever a seu respeito de uma maneira criativa, ou seja, de uma maneira que seja só nossa.

Alice Vieira, O meu primeiro álbum de poesia. Lisboa, Edições Dom Quixote, 2007



 


Escrita criativa

No vídeo que se segue, a escritora Alice Vieira dá alguns conselhos sobre a forma de escrever textos criativos, como por exemplo: escolham assuntos concretos para as vossas histórias; escrevam muito; não tenham pressa; reformulem o que escreveram, mudando palavras, encurtando frases; não vale a pena usar os adjetivos se eles não forem rigorosos.

O videograma foi criado para o Grande C - Concurso de criatividade para escolas, promovido pela Associação para a Gestão de Cópia Privada (AGECOP), em 2009.



Videograma GC Alice Vieira Escrita Criativa,
p
artilhado por Paulo Pinheiro, em 16/11/2009

 

Composição de um texto por imitação criativa

Escreve um poema composto por inspiração, a partir de uma das propostas que se seguem.

I - Poema sobre uma flor

Escreve um poema sobre uma flor, partindo do seguinte poema sobre o girassol: 

O GIRASSOL

Passa a vida a olhar pró sol!
Segue o sol para todo o lado!
Tivesse olhos o girassol
ou usava óculos de sol
ou já teria cegado.

Jorge Sousa Braga, Herbário, Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 10

 


Escola Virtual

 

II – Poema sobre um animal

Lê com atenção o seguinte poema que tem um animal como tema:

A ÍBIS

A íbis, a ave do Egito,
Pousa sempre sobre um pé
O que é
Esquisito.
É uma ave sossegada,
Porque assim não anda nada.

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.  - 24. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/4481

 

Inspira-te no mundo da bicharada e escreve um poema sobre outros animais.

https://fullbloomclub.net/14-funny-animals-drawing-dive-into-comedic-styles/



III – A casa como metáfora

O que é um livro, para ti? Para que serve?

Faz uma lista de alguns elementos que constituem uma casa (por exemplo portas, janelas, paredes, chaminé).

Inicia cada verso por “Um livro é” seguido de um dos elementos da tua lista.

Exemplo: “Um livro é uma porta que se abre para o mundo.”

Escreve cerca de quinze versos.

Relê esses versos e escolhe os doze melhores, copiando-os para a folha na ordem que consideres mais adequada.

 

Nota: podes substituir a palavra “livro” por outras, como por exemplo: 

  • “Um amigo é…”
  • “A amizade é…”
  • “O amor é…”
  • “A família é…”
  • "Um irmão é..."
  • “A vida é…”
  • “A felicidade é…”
  • “A sabedoria é…”
  • “A natureza é…”
  • “A música é…”
  • “A arte é…”
  • “A paz é…”
  • “A liberdade é…”
  • “A esperança é…”
  • “O sonho é…”
  • “O futuro é…”
  • "Uma ilha é...".


IV – Outros poemas que podem servir de mote ou modelo de inspiração

URGENTEMENTE

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor,
é urgente permanecer.

Eugénio de Andrade, Até Amanhã, 1956

 

AS PALAVRAS

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade, Coração do dia, 1958

 

AS MÃOS

Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

 

Manuel Alegre, O Canto e as Armas, 1967


AMIGO

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra “amigo”.

“Amigo” é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

“Amigo” (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
“Amigo” é o contrário de inimigo!

“Amigo” é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

“Amigo” é a solidão derrotada!

“Amigo” é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
“Amigo” vai ser, é já uma grande festa!

 

Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca, 1958

 

O SONHO

Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo Sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma dêmos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

– Partimos. Vamos. Somos.

Sebastião da Gama, Pelo sonho é que vamos, 1953

 

E POR VEZES

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

 

David Mourão Ferreira, Matura idade, 1973

 

ESPARSA

sua ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais m’espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
Assi que, só para mim
anda o mundo concertado

Luís Vaz de Camões (c. 1524-1580)

 

AMOR É UM FOGO QUE ARDE SEM SE VER

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís Vaz de Camões (c. 1524-1580)

 

[AUTORRETRATO]

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,

Eis Bocage em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento

Bocage (1765-1805)

 

PORQUE

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo, 1958

 

TRÍPTICO

II

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
(…)

Herberto Helder, A colher na boca, 1961

 


 Nota: na página Folha de Poesia há mais propostas de escrita criativa.


quinta-feira, 6 de junho de 2024

Noite, Manuel da Fonseca

  


Noite

Milhões de barcos perdidos no mar!
Perdidos na noite!
As velas rasgadas de todos os ventos
Os lemes sem tino
vogando ao acaso
roçando no fundo
subindo a vaga
tocando as rochas!
E quantos e quantos naufragando...

Quem vem acender faróis na costa do mar bravo?!
Quem?!

 

Manuel da Fonseca, Obra Poética. Lisboa, Editorial Caminho, 1984, p. 61

 

O texto seguinte apresenta uma breve análise de alguns dos recursos mobilizados no poema de Manuel da Fonseca.

Completa-o, selecionando a palavra correta em cada espaço.

O poema inicia-se com a referência a «Milhões de barcos perdidos no mar!/ Perdidos na noite!», que não podem recorrer nem às «velas» nem aos «lemes».

Os versos 5 a 8, que têm, cada um, cinco sílabas métricas, atribuem um ritmo rápido / lento / inconstante à descrição da situação enfrentada por esses barcos. O verso 9 indica o destino inesperado / frequente / raro desses barcos, nomeadamente, através da repetição «E quantos e quantos». Por sua vez, os versos 10 e 11 apresentam o pronome interrogativo «Quem» destacado através da comparação / anáfora / enumeração. As perguntas aí colocadas ficam sem resposta, o que acentua a ideia de perdição que percorre o poema.


Resposta:

Os versos 5 a 8, que têm, cada um, cinco sílabas métricas, atribuem um ritmo rápido à descrição da situação enfrentada por esses barcos. O verso 9 indica o destino frequente desses barcos, nomeadamente, através da repetição «E quantos e quantos». Por sua vez, os versos 10 e 11 apresentam o pronome interrogativo «Quem» destacado através da anáfora. As perguntas aí colocadas ficam sem resposta, o que acentua a ideia de perdição que percorre o poema.

Prova de Aferição de Português. Prova 85 | 8.º Ano de Escolaridade | República Portuguesa – Educação, Ciência e Inovação / Instituto de Avaliação Educativa, I. P. (IAVE), 03/06/2024 (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho). 

 

Texto de apoio

O poema “Noite” de Manuel da Fonseca retrata uma cena de naufrágio e perdição no mar.

O poema começa com a imagem de “Milhões de barcos perdidos no mar!” Essa imagem evoca a vastidão do oceano e a vulnerabilidade dos barcos.

A repetição da palavra “Perdidos na noite!” enfatiza a escuridão e a falta de orientação. Os barcos estão à deriva, sem rumo, com “velas rasgadas de todos os ventos” e “lemes sem tino”.

O verso 9 (“E quantos e quantos naufragando…”) sugere que muitos barcos enfrentam o mesmo destino trágico. A repetição do pronome interrogativo “Quem” nos versos 10 e 11 destaca a impotência diante dessa situação. A ausência de respostas sugere que a perdição é inevitável, o que reforça a sensação de desamparo e fatalidade.


terça-feira, 28 de maio de 2024

A minha história com Camões, Frederico Lourenço



Da infância em Inglaterra, da impenetrabilidade de ler Camões em português ainda menino regressado de Oxford, passando pela licenciatura em Estudos Clássicos - onde finalmente se fez luz nos meus estudos camonianos - até aos dias de hoje, com o lançamento de «Camões. Uma antologia», com comentários meus a diversos momentos da sua obra.

A minha intenção com «Camões. Uma antologia» é ajudar a perceber mais e melhor a obra do nosso maior Poeta. E na condição de alguém que conheceu muito bem a dificuldade de ler Camões, este livro é também um convite, a quem nunca o leu, para ingressar no fascinante mundo que é a sua obra, de mão dada comigo.

 

A minha história com Camões”, Frederico Lourenço, Coimbra, 28-05-2024

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domingo, 5 de maio de 2024

Camões e a verdade poética, Frederico Lourenço


 

Em três poemas das suas «Rimas», Camões chama às situações sentimentais descritas na sua poesia lírica «verdades puras». Esta declaração do poeta incentivou desde o século XVII a leitura da poesia de Camões como confissão autobiográfica, como diário sentimental. A meu ver, essa interpretação é um equívoco: foi isso que procurei demonstrar na aula de abertura do FeLiCidade Festival 2024, ontem, 04.05.24, no CCB.

O «Eu» da poesia lírica de Camões não é o homem real Luís Vaz de Camões (que se declara, nas cartas aos amigos, frequentador de prostitutas), mas sim uma personagem que, ao declarar-se platonicamente apaixonado por uma Dama, está a encenar as biografias reais ou inventadas de poetas anteriores, admirados por Camões.

Horácio, Ovídio, Petrarca e Garcilaso são os modelos nos quais Camões baseia a sua «persona» lírica. Quanto ao termo «verdade», é usado segundo o código da poesia greco-latina, em que «verdade poética» equivale a «qualidade poética». O que se exige da verdade poética é que se pareça com a verdade factual, tal como Horácio afirma no v. 338 da sua «Arte Poética», ao recomendar que «coisas fingidas por causa do deleite sejam próximas das verdadeiras». A minha argumentação segue várias etapas, até chegar a três passagens de «Os Lusíadas», que nos ajudam a perceber melhor o enigma daquilo que Camões entende por «verdade». 

 

Camões e a verdade poética | Camões: 500 anos”, Frederico Lourenço, Coimbra, 05-05-2024

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Frederico Lourenço, Lisboa (CCB), 4/5/2024