Suspiros inflamados, que cantais
a tristeza com que eu vivi tão ledo!
Eu mouro e não vos levo, porque hei medo
que, ao passar do Lete, vos percais.
Escritos para sempre já ficais,
onde vos mostrarão todos co dedo,
como exemplo de males; que eu concedo
que para aviso de outros estejais.
Em quem, pois, virdes falsas esperanças
de Amor e da Fortuna, cujos danos
alguns terão por bem-aventuranças,
dizei-lhe que os servistes muitos anos;
e que em Fortuna tudo são mudanças,
e que em Amor não há senão enganos.
Luís
de Camões, Lírica completa - II [Sonetos], org., pref. e notas de Maria
de Lurdes Saraiva, 2.ª ed., revista, Lisboa: INCN, 1994, p. 105

Azulejo, Marinha Grande, Portugal
O SONETO COMO PREÂMBULO
CONFIDENCIAL NA POESIA CAMONIANA
[…]
Na última composição
qualificada como de carácter prologal, “Sospiros inflamados, que cantais”, é
exequível apreciar com clareza o propósito de se apresentarem aos leitores as
criações próprias como experto aviso acautelado. Trata-se de uma nova palinódia
poemática com alguns traços pertencentes ao subgénero soneto-prologo em que o amante, como
manifesto responsável da escrita dos textos na qualidade de autor implicado, se arrepende dos seus
antigos erros passionais e solicita que o resto das peças sejam compreendidas
de uma perspectiva exemplar e instrutiva102. Numa altura em que a
morte já não está longe como remédio da doença amorosa, neste caso o emissor lírico
dirige-se aos seus versos com a apóstrofe sospiros inflamados, dizendo-lhes que o seu
destino há-de ser ficar neste mundo como ilustração perante outros dos males
que a vivência o amor origina. Desta maneira, lendo uns escritos em que se
patenteiam os prejuízos que causa um sentimento falso, eles conhecerão as
manobras traiçoeiras do Amor e da Fortuna sofridas por uma experiência alheia103:
“Sospiros inflamados, que cantais
a tristeza com que vivi tão ledo!
Eu mo[u]ro e não vos levo, porque hei medo
que, ao passar d[o] Lete, vos percais.
Escritos p[e]ra sempre já ficais,
onde vos mostrarão todos com o
dedo,
como exemplo de males; que eu concedo
que, pera aviso(s) de outros, estejais.
E em quem virdes falsas [e]speranças
do Amor e da Fortuna, cujos danos
alguns terão por bem-aventuranças,
deze[i]-lhe que os servistes muitos
anos,
e que em Fortuna tudo são mudanças,
e que em Amor não há senão
enganos.”104
A primeira quadra abre-se
já com uma apóstrofe enfática referida aos próprios versos, «Sospiros
inflamados, que cantais / a tristeza com que vivi tao ledo!», em que através de uma
expressão paradoxal de natureza conceituosa é revelado o tempo pretérito, quando
o emissor lírico vivia feliz no meio das mágoas. A ponto de morrer, indica-lhes
que não o irão acompanhar na viagem que está prestes a fazer, porque tem medo
de que desapareçam no transe de passarem o rio Lete105. A oportuna
alusão mitológica lembra, efectivamente, o perigo ameaçador das águas de tal
rio para a memória, capaz de fazer perder todas as lembranças. Porém a intenção
do emissor lírico é precisamente que não se esqueça o passado, de tal jeito que
o seu testemunho poetizado possa ficar para sempre como mostra desesperada
diante dos leitores106. É na segunda quadra que se exprime essa
vontade de dar às criações próprias a oportunidade de não partir deste mundo,
pois assim terão fama servindo de magnífica lição da desilusão e da dor
amorosa.
Nos dois tercetos,
interligados sem nenhuma pausa, surge o convite do amante aos suspiros acesos
que nascem dos seus males, isto é, aos versos que brotam da sua pena, a fim de
ensinarem aos que moram ainda no engano, cuidando ingenuamente que as desgraças
são boas venturas, que o Amor e a Fortuna só consentem esperanças incertas. Em
suma, cumpre que declarem com firmeza, a partir do exemplo que procede do submisso
trato individual do emissor lírico com o Amor e a Fortuna durante muito tempo,
as falsidades e as mudanças que estes fornecem107. […]
Xosé Manuel
Dasilva, “O soneto como preâmbulo confidencial na poesia camoniana”, Actas da
VI reunião internacional de camonistas. Imprensa da Universidade de Coimbra,
2012, pp.173-216. Disponível em: http://hdl.handle.net/10316.2/11944,
DOI: 10.14195/978-989-26-0569-2_15
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Notas:
102 Não obstante isso, Wilhelm Storck julgou
que, em vez de prólogo, o soneto poderia ser melhor contemplado como um epílogo
poético, composto de caso pensado para fechar a colecção de peças amorosas criadas
por Camões. Cfr. Storck, ed., Camões, Sammtliche..., t. II, p.
383. Em certa forma, é possível ligar essa consideração do erudito alemão com o
seguinte juízo de M.ª Vitalina Leal de Matos em volta do texto: «Soneto
“testamentario”, por assim dizer, ja que, perante a situacao de morte iminente,
se dirige a obra em conjunto, impondo-lhe um sentido ultimo, e, para alem deste
sentido, a encarrega de uma mensagem» (Leal de Matos, O
canto na poesia..., p. 501).
103 Nas anotações que Faria e Sousa dedica a
este poema, pode-se ler um surpreendente trecho em que o editor seiscentista e
escritor desvenda a sã inveja com que examina em muitas ocasiões o alcance estético
da obra camoniana. Assim, em clara lisonja à categoria literária do Poeta,
Faria e Sousa confessa, a propósito de “Sospiros inflamados, que cantais”, que
se trata de um texto que o obriga a aceitar as suas próprias carências
artísticas como criador literário: «Yo siempre estoy confessando que si a
caso se alguna cosa, lo devo a este Monstro de ingenio, de estudio, y de
juizio; pero a toda verdad el me lo descuenta bien, porque por otra parte me
esta siempre martirizando; porque si el no ubiera nacido, o, ya que naciesse,
no obrara tanto, yo no estubiera siempre rabiando de embidia; y este Soneto me
la haze de modo que me como las manos. Pero si el divino Apolo assi lo quiso,
no ay sino tener paciencia: mas no se yo que la pudiesse tener sino con no
aspirar a ser Poeta» (Faria e Sousa, em Camões, Rimas..., pp.
147-148).
104 Azevedo Filho, Lirica
de Camoes. 2.Sonetos, t. II, p. 913.
105 «Tal coza como esta nadie penso
dezirla jamas. Yo, suspiros mios (dize) me estoy muriendo; y no quiero llevaros
conmigo al otro mundo, porque tengo miedo de que os perdays al passar el rio
del Olvido, en cuyo passaje perecen todas las memorias; y quiero que las aya
siempre de vosotros; por tanto quedaos aca, para que siempre, como immortales
seays oidos. Quiere dezir que si bien el ha de morirse, no se moriran jamas sus
Poemas, y singularmente estos de sus amorosas tristezas» (Faria e
Sousa, em Camões, Rimas..., p. 148).
106 O desejo de alcançar fama póstuma através
da poesia, um motivo temático que, embora esteja também sugerido na imagem
mitológica do esquecimento que provoca o rio Lete, aparece presente nesta composição
principalmente nos vv. 5-6, constitui um tópico de proveniência horaciana com
ampla influência na literatura dos séculos XVI e XVII. O modelo primigénio bem
pode ser a Ode IV-3 do autor latino, em que agradece muito satisfeito à Musa o
favor de lhe ter outorgado a fama como poeta (Manuel Fernández-Galiano; Vicente
Cristóbal, eds., Horacio, Odas y Epodos, Madrid,
Cátedra, 1990, p. 328):
“Quem tu,
Melpomene, semel
nascentem placido lumine videris,
illum non labor Isthmius
clarabit pugilem, non equus impiger
curru ducet Achaico
victorem, neque res bellica Deliis
ornatum foliis ducem,
quod regum tumidas contuderit minas,
ostendet Capitolio:
sed quae Tibur aquae fertile praefluunt
et spissae nemorum comae
fingent Aeolio carmine nobilem.
Romae principis urbium
dignatur suboles inter amabilis
vatum ponere me choros,
et iam dente minus mordeor invido.
O, testudinis aureae
dulcem quae strepitum, Pieri, temperas,
o mutis quoque piscibus
donatura cycni, si libeat, sonum,
totum muneris hoc tui est,
quod monstror digito praetereuntium
Romanae fidicem lyrae;
quod spiro et placeo, si placeo, tuum est.”
107 Como um exemplo apropriado das tentativas
que com diversos critérios pretenderam fixar a cronologia dos poemas
camonianos, é conveniente registar que “Sospiros inflamados, que cantais” foi
considerado por Maria de Lurdes Saraiva, do ponto de vista temático, um soneto
de composição tardia em função do tom pessimista e dramático que revela. Vid.
Saraiva,
ed., Camões, Lirica..., vol. II,
pp. 87-88. Contrariamente, Azevedo Filho julga que a data do texto, de acordo
com fundamentos métricos, teria de ser em princípio menos tardia, porquanto
nele são ainda perceptíveis encontros vocálicos da natureza arcaizante: «Tal hipótese
[Maria de Lurdes Saraiva] e provavel, mas encontra uma dificuldade metrica na
ocorrencia de encontros vocálicos arcaizantes, ao contrario do que se ve nos
sonetos do ciclo de Dinamene, sonetos de plena maturidade poetica, onde o
regime dos encontros vocalicos, normalmente, obedece ao uso moderno. Por isso,
se o soneto pode ser um dos ultimos, tambem pode ser um dos primeiros, pois e
sabido que os poetas jovens tambem cantam desenganos amorosos e pensam na
morte, prematuramente, deixando a sua obra e a sua experiencia para meditacao
postuma» (Azevedo
Filho, Lirica
de Camoes. 2.Sonetos, t. II, p. 930).


