terça-feira, 10 de junho de 2025

Suspiros inflamados, que cantais, Camões


 

Suspiros inflamados, que cantais
a tristeza com que eu vivi tão ledo!
Eu mouro e não vos levo, porque hei medo
que, ao passar do Lete, vos percais.

Escritos para sempre já ficais,
onde vos mostrarão todos co dedo,
como exemplo de males; que eu concedo
que para aviso de outros estejais.

Em quem, pois, virdes falsas esperanças
de Amor e da Fortuna, cujos danos
alguns terão por bem-aventuranças,

dizei-lhe que os servistes muitos anos;
e que em Fortuna tudo são mudanças,
e que em Amor não há senão enganos.

 

Luís de Camões, Lírica completa - II [Sonetos], org., pref. e notas de Maria de Lurdes Saraiva, 2.ª ed., revista, Lisboa: INCN, 1994, p. 105

 

Azulejo, Marinha Grande, Portugal



O SONETO COMO PREÂMBULO CONFIDENCIAL NA POESIA CAMONIANA

[…]

Na última composição qualificada como de carácter prologal, “Sospiros inflamados, que cantais”, é exequível apreciar com clareza o propósito de se apresentarem aos leitores as criações próprias como experto aviso acautelado. Trata-se de uma nova palinódia poemática com alguns traços pertencentes ao subgénero soneto-prologo em que o amante, como manifesto responsável da escrita dos textos na qualidade de autor implicado, se arrepende dos seus antigos erros passionais e solicita que o resto das peças sejam compreendidas de uma perspectiva exemplar e instrutiva102. Numa altura em que a morte já não está longe como remédio da doença amorosa, neste caso o emissor lírico dirige-se aos seus versos com a apóstrofe sospiros inflamados, dizendo-lhes que o seu destino há-de ser ficar neste mundo como ilustração perante outros dos males que a vivência o amor origina. Desta maneira, lendo uns escritos em que se patenteiam os prejuízos que causa um sentimento falso, eles conhecerão as manobras traiçoeiras do Amor e da Fortuna sofridas por uma experiência alheia103:

“Sospiros inflamados, que cantais
a tristeza com que vivi tão ledo!
Eu mo[u]ro e não vos levo, porque hei medo
que, ao passar d[o] Lete, vos percais.
Escritos p[e]ra sempre já ficais,
onde vos mostrarão todos com o
dedo,
como exemplo de males; que eu concedo
que, pera aviso(s) de outros, estejais.
E em quem virdes falsas [e]speranças
do Amor e da Fortuna, cujos danos
alguns terão por bem-aventuranças,
deze[i]-lhe que os servistes muitos
anos,
e que em Fortuna tudo são mudanças,
e que em Amor não há senão
enganos.”104

 

A primeira quadra abre-se já com uma apóstrofe enfática referida aos próprios versos, «Sospiros inflamados, que cantais / a tristeza com que vivi tao ledo!», em que através de uma expressão paradoxal de natureza conceituosa é revelado o tempo pretérito, quando o emissor lírico vivia feliz no meio das mágoas. A ponto de morrer, indica-lhes que não o irão acompanhar na viagem que está prestes a fazer, porque tem medo de que desapareçam no transe de passarem o rio Lete105. A oportuna alusão mitológica lembra, efectivamente, o perigo ameaçador das águas de tal rio para a memória, capaz de fazer perder todas as lembranças. Porém a intenção do emissor lírico é precisamente que não se esqueça o passado, de tal jeito que o seu testemunho poetizado possa ficar para sempre como mostra desesperada diante dos leitores106. É na segunda quadra que se exprime essa vontade de dar às criações próprias a oportunidade de não partir deste mundo, pois assim terão fama servindo de magnífica lição da desilusão e da dor amorosa.

Nos dois tercetos, interligados sem nenhuma pausa, surge o convite do amante aos suspiros acesos que nascem dos seus males, isto é, aos versos que brotam da sua pena, a fim de ensinarem aos que moram ainda no engano, cuidando ingenuamente que as desgraças são boas venturas, que o Amor e a Fortuna só consentem esperanças incertas. Em suma, cumpre que declarem com firmeza, a partir do exemplo que procede do submisso trato individual do emissor lírico com o Amor e a Fortuna durante muito tempo, as falsidades e as mudanças que estes fornecem107. […]

 

Xosé Manuel Dasilva, “O soneto como preâmbulo confidencial na poesia camoniana”, Actas da VI reunião internacional de camonistas. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, pp.173-216. Disponível em: http://hdl.handle.net/10316.2/11944, DOI: 10.14195/978-989-26-0569-2_15

___________________

Notas:

102 Não obstante isso, Wilhelm Storck julgou que, em vez de prólogo, o soneto poderia ser melhor contemplado como um epílogo poético, composto de caso pensado para fechar a colecção de peças amorosas criadas por Camões. Cfr. Storck, ed., Camões, Sammtliche..., t. II, p. 383. Em certa forma, é possível ligar essa consideração do erudito alemão com o seguinte juízo de M.ª Vitalina Leal de Matos em volta do texto: «Soneto “testamentario”, por assim dizer, ja que, perante a situacao de morte iminente, se dirige a obra em conjunto, impondo-lhe um sentido ultimo, e, para alem deste sentido, a encarrega de uma mensagem» (Leal de Matos, O canto na poesia..., p. 501).

103 Nas anotações que Faria e Sousa dedica a este poema, pode-se ler um surpreendente trecho em que o editor seiscentista e escritor desvenda a sã inveja com que examina em muitas ocasiões o alcance estético da obra camoniana. Assim, em clara lisonja à categoria literária do Poeta, Faria e Sousa confessa, a propósito de “Sospiros inflamados, que cantais”, que se trata de um texto que o obriga a aceitar as suas próprias carências artísticas como criador literário: «Yo siempre estoy confessando que si a caso se alguna cosa, lo devo a este Monstro de ingenio, de estudio, y de juizio; pero a toda verdad el me lo descuenta bien, porque por otra parte me esta siempre martirizando; porque si el no ubiera nacido, o, ya que naciesse, no obrara tanto, yo no estubiera siempre rabiando de embidia; y este Soneto me la haze de modo que me como las manos. Pero si el divino Apolo assi lo quiso, no ay sino tener paciencia: mas no se yo que la pudiesse tener sino con no aspirar a ser Poeta» (Faria e Sousa, em Camões, Rimas..., pp. 147-148).

104 Azevedo Filho, Lirica de Camoes. 2.Sonetos, t. II, p. 913.

105 «Tal coza como esta nadie penso dezirla jamas. Yo, suspiros mios (dize) me estoy muriendo; y no quiero llevaros conmigo al otro mundo, porque tengo miedo de que os perdays al passar el rio del Olvido, en cuyo passaje perecen todas las memorias; y quiero que las aya siempre de vosotros; por tanto quedaos aca, para que siempre, como immortales seays oidos. Quiere dezir que si bien el ha de morirse, no se moriran jamas sus Poemas, y singularmente estos de sus amorosas tristezas» (Faria e Sousa, em Camões, Rimas..., p. 148).

106 O desejo de alcançar fama póstuma através da poesia, um motivo temático que, embora esteja também sugerido na imagem mitológica do esquecimento que provoca o rio Lete, aparece presente nesta composição principalmente nos vv. 5-6, constitui um tópico de proveniência horaciana com ampla influência na literatura dos séculos XVI e XVII. O modelo primigénio bem pode ser a Ode IV-3 do autor latino, em que agradece muito satisfeito à Musa o favor de lhe ter outorgado a fama como poeta (Manuel Fernández-Galiano; Vicente Cristóbal, eds., Horacio, Odas y Epodos, Madrid, Cátedra, 1990, p. 328):

“Quem tu, Melpomene, semel
nascentem placido lumine videris,
illum non labor Isthmius
clarabit pugilem, non equus impiger
curru ducet Achaico
victorem, neque res bellica Deliis
ornatum foliis ducem,
quod regum tumidas contuderit minas,
ostendet Capitolio:
sed quae Tibur aquae fertile praefluunt
et spissae nemorum comae
fingent Aeolio carmine nobilem.
Romae principis urbium
dignatur suboles inter amabilis
vatum ponere me choros,
et iam dente minus mordeor invido.
O, testudinis aureae
dulcem quae strepitum, Pieri, temperas,
o mutis quoque piscibus
donatura cycni, si libeat, sonum,
totum muneris hoc tui est,
quod monstror digito praetereuntium
Romanae fidicem lyrae;
quod spiro et placeo, si placeo, tuum est.”

107 Como um exemplo apropriado das tentativas que com diversos critérios pretenderam fixar a cronologia dos poemas camonianos, é conveniente registar que “Sospiros inflamados, que cantais” foi considerado por Maria de Lurdes Saraiva, do ponto de vista temático, um soneto de composição tardia em função do tom pessimista e dramático que revela. Vid. Saraiva, ed., Camões, Lirica..., vol. II, pp. 87-88. Contrariamente, Azevedo Filho julga que a data do texto, de acordo com fundamentos métricos, teria de ser em princípio menos tardia, porquanto nele são ainda perceptíveis encontros vocálicos da natureza arcaizante: «Tal hipótese [Maria de Lurdes Saraiva] e provavel, mas encontra uma dificuldade metrica na ocorrencia de encontros vocálicos arcaizantes, ao contrario do que se ve nos sonetos do ciclo de Dinamene, sonetos de plena maturidade poetica, onde o regime dos encontros vocalicos, normalmente, obedece ao uso moderno. Por isso, se o soneto pode ser um dos ultimos, tambem pode ser um dos primeiros, pois e sabido que os poetas jovens tambem cantam desenganos amorosos e pensam na morte, prematuramente, deixando a sua obra e a sua experiencia para meditacao postuma» (Azevedo Filho, Lirica de Camoes. 2.Sonetos, t. II, p. 930).

 


segunda-feira, 2 de junho de 2025

Opiário, Álvaro de Campos


 

OPIÁRIO

 

                        Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro

 

É antes do ópio que a minh’alma é doente.

Sentir a vida convalesce e estiola

E eu vou buscar ao ópio que consola

Um Oriente ao oriente do Oriente.

 

Esta vida de bordo há-de matar-me.

São dias só de febre na cabeça

E, por mais que procure até que adoeça,

Já não encontro a mola pra adaptar-me.

 

Em paradoxo e incompetência astral

Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,

Onda onde o pundonor é uma descida

E os próprios gozos gânglios do meu mal.

 

É por um mecanismo de desastres,

Uma engrenagem com volantes falsos,

Que passo entre visões de cadafalsos

Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

 

Vou cambaleando através do lavor

Duma vida-interior de renda e laca.

Tenho a impressão de ter em casa a faca

Com que foi degolado o Precursor.

 

Ando expiando um crime numa mala,

Que um avô meu cometeu por requinte.

Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,

E caí no ópio como numa vala.

 

Ao toque adormecido da morfina

Perco-me em transparências latejantes

E numa noite cheia de brilhantes

Ergue-se a lua como a minha Sina.

 

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora

Não faço mais que ver o navio ir

Pelo canal de Suez a conduzir

A minha vida, cânfora na aurora.

 

Perdi os dias que já aproveitara.

Trabalhei para ter só o cansaço

Que é hoje em mim uma espécie de braço

Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

 

E fui criança como toda a gente.

Nasci numa província portuguesa

E tenho conhecido gente inglesa

Que diz que eu sei inglês perfeitamente.

 

Gostava de ter poemas e novelas

Publicados por Plon e no Mercure,

Mas é impossível que esta vida dure,

Se nesta viagem nem houve procelas!

 

A vida a bordo é uma coisa triste,

Embora a gente se divirta às vezes.

Falo com alemães, suecos e ingleses

E a minha mágoa de viver persiste.

 

Eu acho que não vale a pena ter

Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.

A terra é semelhante e pequenina

E há só uma maneira de viver.

 

Por isso eu tomo ópio. É um remédio.

Sou um convalescente do Momento.

Moro no rés-do-chão do pensamento

E ver passar a Vida faz-me tédio.


Monsanto, Lisboa, 01-06-2025


 

Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,

Muito a leste não fosse o oeste já!

Pra que fui visitar a Índia que há

Se não há Índia senão a alma em mim?

 

Sou desgraçado por meu morgadio.

Os ciganos roubaram minha Sorte.

Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte

Um lugar que me abrigue do meu frio.

 

Eu fingi que estudei engenharia.

Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.

Meu coração é uma avozinha que anda

Pedindo esmola às portas da Alegria.

 

Não chegues a Port-Said, navio de ferro!

Volta à direita, nem eu sei para onde.

Passo os dias no smoking-room com o conde —

Um escroc francês, conde de fim de enterro.

 

Volto à Europa descontente, e em sortes

De vir a ser um poeta sonambólico.

Eu sou monárquico mas não católico

E gostava de ser as coisas fortes.

 

Gostava de ter crenças e dinheiro,

Ser vária gente insípida que vi.

Hoje, afinal, não sou senão, aqui,

Num navio qualquer um passageiro.

 

Não tenho personalidade alguma.

É mais notado que eu esse criado

De bordo que tem um belo modo alçado

De laird escocês há dias em jejum.

 

Não posso estar em parte alguma. A minha

Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.

O comissário de bordo é velhaco.

Viu-me co’a sueca... e o resto ele adivinha.

 

Um dia faço escândalo cá a bordo,

Só para dar que falar de mim aos mais.

Não posso com a vida, e acho fatais

As iras com que às vezes me debordo.

 

Levo o dia a fumar, a beber coisas,

Drogas americanas que entontecem,

E eu já tão bêbado sem nada! Dessem

Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.

 

Escrevo estas linhas. Parece impossível

Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!

O facto é que esta vida é uma quinta

Onde se aborrece uma alma sensível.

 

Os ingleses são feitos pra existir.

Não há gente como esta pra estar feita

Com a Tranquilidade. A gente deita

Um vintém e sai um deles a sorrir.

 

Pertenço a um género de portugueses

Que depois de estar a Índia descoberta

Ficaram sem trabalho. A morte é certa.

Tenho pensado nisto muitas vezes.

 

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!

Nem leio o livro à minha cabeceira.

Enoja-me o Oriente. É uma esteira

Que a gente enrola e deixa de ser bela.

 

Caio no ópio por força. Lá querer

Que eu leve a limpo uma vida destas

Não se pode exigir. Almas honestas

Com horas pra dormir e pra comer,

 

Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.

Porque estes nervos são a minha morte.

Não haver um navio que me transporte

Para onde eu nada queira que o não veja!

 

Ora! Eu cansava-me do mesmo modo.

Queria outro ópio mais forte pra ir de ali

Para sonhos que dessem cabo de mim

E pregassem comigo nalgum lodo.

 

Febre! Se isto que tenho não é febre,

Não sei como é que se tem febre e sente.

O facto essencial é que estou doente.

Está corrida, amigos, esta lebre.

 

Veio a noite. Tocou já a primeira

Corneta, pra vestir para o jantar.

Vida social por cima! Isso! E marchar

Até que a gente saia pla coleira!

 

Porque isto acaba mal e há-de haver

(Olá!) sangue e um revólver lá prò fim

Deste desassossego que há em mim

E não há forma de se resolver.

 

E quem me olhar, há-de-me achar banal,

A mim e à minha vida... Ora! um rapaz...

O meu próprio monóculo me faz

Pertencer a um tipo universal.

 

Ah quanta alma haverá, que ande metida

Assim como eu na Linha, e como eu mística!

Quantos sob a casaca característica

Não terão como eu o horror à vida?

 

Se ao menos eu por fora fosse tão

Interessante como sou por dentro!

Vou no Maelstrom, cada vez mais prò centro.

Não fazer nada é a minha perdição.

 

Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!

Pudesse a gente desprezar os outros

E, ainda que co’os cotovelos rotos,

Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!

 

Tenho vontade de levar as mãos

À boca e morder nelas fundo e a mal.

Era uma ocupação original

E distraía os outros, os tais sãos.

 

O absurdo, como uma flor da tal Índia

Que não vim encontrar na Índia, nasce

No meu cérebro farto de cansar-se.

A minha vida mude-a Deus ou finde-a...

 

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,

Até virem meter-me no caixão.

Nasci pra mandarim de condição,

Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

 

Ah que bom que era ir daqui de caída

Prà cova por um alçapão de estouro!

A vida sabe-me a tabaco louro.

Nunca fiz mais do que fumar a vida.

 

E afinal o que quero é fé, é calma,

E não ter estas sensações confusas.

Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —

E basta de comédias na minh’alma!

 

                        No Canal de Suez, a bordo.

3-1914

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

 - 135.

1ª publ. in Orpheu, nº1. Lisboa: Jan.-Mar. 1915. Lapso corrigido segundo o original.


Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2456 




Opiário, poema escrito à maneira decadente, algures entre António Nobre e Mário de Sá-Carneiro, precede no Orpheu 1 a Ode Triunfal, poema diretamente inspirado pela Vanguarda futurista. Estas «duas composições de Álvaro de Campos publicadas por Fernando Pessoa» (na menção que figura na revista) são a primeira aparição pública de Álvaro de Campos, que reincidirá no Orpheu 2 com a Ode Marítima, e constituem um fulcro do escândalo gerado pela revista.

Segundo a Carta sobre a Génese dos Heterónimos, o Opiário foi escrito depois da Ode Triunfal «para completar o número de páginas» da revista. Acrescenta: «Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver». A ideia era dar «o Álvaro em botão», o de «antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência», (Correspondência, II: 344). Historicamente ulterior à Ode Triunfal, é, pois, heteronimicamente anterior. E cumpre a função de dar a metamorfose de Álvaro de Campos, por assim dizer, ao vivo. Aqui, está ainda na sua fase de poeta decadente, cuidadosamente vestido, como um dandy, de «casaca característica» e monócolo, «monárquico, mas não católico», capaz de dizer: «ver passar a Vida faz-me tédio» (Orpheu, 72). A ideia que preside ao específico modo de apresentação pública dos dois Álvaro de Campos – o de antes e o de depois de ter conhecido o Mestre – pode ser encontrada num texto daquela época: «O dinamismo [Futurismo, Vorticismo, etc.] é uma corrente decadente, e o elogio e a apoteose da força, que o caracteriza, é apenas aquela ânsia de sensações fortes, aquele entusiasmo excessivo pela saúde que sempre distinguiu certas espécies de decadentes» (Páginas d Íntimas, 177). ora, uma ânsia equivalente a esta vem expressa de um modo enfático na estrofe final de Opiário: «E afinal o que quero é fé, é calma, / E não ter estas sensações confusas. / Deus que acabe com isto! Abra as eclusas – / E basta de comédias na minh’alma!» (Orpheu 76), que, aliás, se deve ler seguida da datação: «1914, março. No canal de Suez, a bordo». De facto, a «ânsia de sensações fortes», a vontade de libertação da prisão de tédio e absurdo, assim gritada,  é sublinhada pelo facto contextual do poeta estar a escrever confinado na sua cabine, a bordo, em pleno canal de Suez, ou seja, num compartimento que está no interior de um navio, por sua vez ladeado pelas paredes de um estreito (obra de engenharia de grande dimensão, por isso tão afim da personagem de Álvaro de Campos), num espaço que é, assim, triplamente fechado.  

É o facto de ser tão opressivo o clima criado por este poema que torna especialmente brilhante, por contraste, a irrupção de energia que ocorre desde os primeiros versos «febris» da Ode Triunfal, datada de Londres, três meses mais tarde. A sua sucessão no Orpheu 1 corresponde, pois, aos dois atos de um monólogo, lírico primeiro, épico depois. E a ode Triunfal, se bem que mantenha o mesmo entusiasmo quase em todos os versos, não consegue esquecer as suas ainda tão recentes «sensações confusas», e termina com um verso que contém, em síntese, o Sensacionismo – o querer «ser toda a gente e toda a parte» ou o «Sentir tudo de todas as maneiras» de Passagem das Horas  – e o Decadentismo daquele que sabe muito bem não passar de um operador de ilusões – «Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!».

De todo o modo, Álvaro de Campos já existe inteiro em Opiário, como se prova pela fluidez da oralidade e o uso de expressões como «Leve o diabo a vida e a gente tê-la!» ou «Que um raio as parta!» (Orpheu 74), o encadeamento sintático dos versos, ou ainda a violenta auto-ironia: «Meu coração é uma avozinha que anda / Pedindo esmola às portas da Alegria» (Orpheu 73) ou «Se ao menos por fora fosse tão / Interessante como sou por dentro!» (Orpheu 75). Tudo associado a uma paródia do Decadentismo (de que é sinal também a dedicatória a Sá-Carneiro), visível na montagem de dois discursos, um imitando essa poética, outro rindo-se dela: «Vou cambaleando através do lavor / Duma vida-interior de renda e laca. / Tenho a impressão de ter em casa a faca / Com que foi degolado o Precursor.» (Orpheu 71).

BIBL.: Joaquim-Francisco Coelho, «Sobre o Tédio da Vida no Opiário», in Colóquio/Letras 107, Jan. 1989.

Fernando Cabral Martins

Disponível em: https://modernismo.pt/index.php/o/opiario

 


domingo, 1 de junho de 2025

Lisbon Revisited (1923), Álvaro de Campos




Lisbon Revisited

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul – o mesmo da minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!


Álvaro de Campos, Contemporânea n.° 8, 1923




I -  QUESTIONÁRIO

 

1. O poema divide-se em cinco momentos a seguir indicados de forma aleatória. Organize-os logicamente e indique os versos respetivos.

Recusa da cultura moderna.

Recusa dum certo passado mítico.

Niilismo corrosivo.

Reafirmação da individualidade

Recusa dos outros.

 

2. Escolha a resposta correta:

2.1. Pela leitura do poema, pode-se dizer que o poeta

A. recusa-se a aceitar os valores que a sociedade tenta inculcar-lhe.

B. encontra na morte a única solução para os problemas.

C. tenta tornar-se uma outra pessoa, para agradar a todos.

D. sente-se solitário e, por essa razão, almeja fazer parte da companhia.

E. aparta-se da sociedade, para desenvolver sua arte.

 

2.2. Os dois últimos versos do poema revelam

A. a conscientização do poeta em relação a seus problemas e à breve solução que lhes dará.

B. a irritação do poeta com aqueles que pretendem ajudá-lo em seus problemas.

C. a vontade do poeta de poder compartilhar da paz que outras pessoas sentem.

D. o desejo do poeta de manter-se afastado e isolado das pessoas.

E. a inquietude gerada na alma do poeta, em virtude da sua solidão.

 

2.3. A forma verbal macem, destacada no poema, significa

A. desprezem.

B. importunem.

C. ofendam.

D. maltratem.

E. abandonem.

 

2.4. O eu-lírico pretende que as pessoas distanciem-se dele. Isso, em alguns momentos, é marcado pela forma exaltada de expressão, como se pode comprovar em

A. "Não: não quero nada,"

B. "A única conclusão é morrer."

C. "Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributá-vel?"

D. "Que mal fiz eu aos deuses todos?"

E. "Vão para o diabo sem mim,"

 

2.5. A penúltima estrofe do poema permite considerar que o eu-lírico sente

A. uma saudade carinhosa da infância, pois em Lisboa ainda pode viver bons momentos.

B. uma mágoa de Lisboa, pois lá passou uma infância vazia e sem sentimentos.

C. um medo de revisitar Lisboa, pois a cidade nunca lhe proporcionou boas lembranças.

D. uma mágoa de sua cidade (Lisboa), pois ela tirou-lhe todos os bons sentimentos.

E. uma saudade melancólica da infância, pois trata-se de uma época remota e irrecuperável.

 

3. Refira a perspetiva do poeta acerca do passado, presente e futuro.

4. Identifique quatro características modernistas presentes no poema.

 

Chave de correção do questionário:

1. Niilismo corrosivo. (1-4)

Recusa da cultura moderna. (5-16)

Recusa dos outros. (17-27)

Recusa dum certo passado mítico. (28-33)

 

2.  A – D – B – E – E (Fonte: Ufscar 2001. Disponível em: https://www.curso-objetivo.br/vestibular/resolucao-comentada/UFSCar/2001/1dia/UFSCar2001_1dia.pdf)

 

3. Presente: o sonho, a evasão; tédio, solidão, renúncia, abdicação.

Passado: sedução; infância – sedução e mito.

Futuro: morte; abismo. Futuro próximo: estar sozinho (enquanto tarda a chegada do Abismo).

 

4. Características modernistas presentes no poema:

Liberdade de expressão.

Incorporação do quotidiano, do prosaico: “Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável”.

Linguagem coloquial, espontânea e mistura dos níveis de língua (mescla de expressões da língua culta e poética com termos populares).

Inovações técnicas:

- O verso livre e sem rima;

- A destruição dos nexos: os chamados nexos sintáticos, preposições, conjunções, etc. são eliminados da poesia moderna, que se torna mais solta, mais descontínua e fragmentária e, fundamentalmente, mais sintética. Por exemplo: 3ª estrofe em que na estrutura da frase há a combinação da elisão com a perífrase.

Fragmentação / pluriperspetivismo / simultaneísmo:  a unidade e diversidade pessoana de que a intertextualidade é exemplo.

 

Monsanto, Lisboa, 01-06-2025



II – COMENTÁRIO DE TEXTO

 

Faça um comentário global do poema transcrito, baseando-se no plano fónico, morfossintático e semântico da linguagem e orientando-se pelos seguintes aspetos:

·         tema;

·         estrutura lógica do discurso;

·         insatisfação corrosiva perante toda a realidade;

·         sentido de evasão;

·         intertextualidade pessoana (interação dialógica entre os vários sujeitos poéticos do universo pessoano);

·         características modernistas.

 

 

Tópicos para resolução do comentário de texto:

 

INTRODUÇÃO 

Álvaro de Campos é o heterónimo de Fernando Pessoa que melhor se integra na estética modernista. 

O poema «Lisbon Revisited», versão de 1923, integra-se na 3ª fase/face de Álvaro de Campos: a intimista / pessimista. 

 

TEMA 

Conflito realidade/poeta:

-          cansaço existencial, náusea

-          estranheza da realidade, solidão, isolamento

-          dissolução do Eu

 

ESTRUTURA LÓGICA DO DISCURSO 

O poema parte dum niilismo corrosivo (1-4)

passa pela recusa da cultura moderna, (5-16)

dos homens (17-27)

e mesmo dum certo passado mítico (28-33)

e termina numa reafirmação da fundura ôntica da solidão, (34-35).

 

INSATISFAÇÃO CORROSIVA PERANTE TODA A REALIDADE 

O poema parte dum niilismo corrosivo (1-4) 

O divórcio da realidade é visível nas estruturas negativas do discurso,

Não: não quero nada.

 

passa pela recusa da cultura moderna, (5-16) 

nos imperativos,

Venham, tragam, falem, Tirem, apregoem, enfileirem...

na significação dos verbos, em que se opõe

o sentido pejorativo e de recusa da cultura moderna

 

Tirem, apregoem, enfileirem, macem,

à afirmação do Eu

Sou, sê, ouviram, Quero

na estrutura da frase, combinando elisão com perífrase

por ex. 3a. estrofe

num certo pendor para a redundância (a todos os níveis linguísticos),

 

na enumeração

 

ou ainda na interrogativa retórica;

 

 

dos homens (17-27)  

esse divórcio passa também pelo confronto com os "outros", monolíticos, vivendo uma "felicidade opaca e animal", imersos cegamente na corrente do devir.

 

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?

Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes a todos, a vontade

Vão para o diabo sem mim,

Não me peguem no braço!

Essa relação contundente (agressiva e ofensiva) patenteia-se na linguagem familiar, coloquial mesmo,

 

e termina numa reafirmação da fundura ôntica da solidão, (34-35). 

terminando enfaticamente pela reafirmação da individualidade.

 

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...

E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

 

 

SENTIDO DE EVASÃO

recusa dum certo passado mítico (28-33) 

Mergulhando em busca da Verdade no Passado - ou na ideia arquetípica do Passado, como o demonstra a caracterização do Tejo ou do céu, por exemplo - o sujeito poético verifica que tudo isso é irrecuperável e só fica a sensação de não ser o mesmo que aí viveu.

 

INTERTEXTUALIDADE PESSOANA (Interacção dialógica entre os vários sujeitos poéticos do universo pessoano.): 

Presente: O sonho, a evasão; tédio, solidão, renúncia, abdicação.

Passado: sedução; infância – sedução e mito.

Futuro: morte.

 

CARACTERÍSTICAS MODERNISTAS: 

Incorporação do quotidiano, do prosaico: Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável. 

Linguagem coloquial, espontânea e mistura dos níveis de língua (mescla de expressões da língua culta e poética com termos populares). 

Inovações técnicas: 

- O verso livre e sem rima. 

- A destruição dos nexos: os chamados nexos sintácticos, preposições, conjunções, etc. São eliminados da poesia moderna, que se torna mais solta, mais descontínua e fragmentária e, fundamentalmente, mais sintética. Ex.: 3ª estrofe em que na estrutura da frase há a combinação da elisão com a perífrase. 

Fragmentação / Pluriperspectivismo / Simultaneísmo: a unidade e diversidade pessoana de que a intertextualidade é exemplo. 

CONCLUSÃO: 

Álvaro de Campos caracteriza-se pela frase: «eu sinto tudo e canso-me», sendo este poema expressão de um cansaço e esgotamento de uma vida sentida em excesso.

 "Campos é Pessoa mais nu deixando correr à solta a torrente da angústia que o sufoca, fazendo o processo da sua abulia, outorgando-lhe uma dimensão de fábula, dilacerando-se com um patetismo e uma raiva dementes, em suma, elevando ao sentimento da sua existência (e da existência em geral) como absurdo radical, a única epopeia que a poesia moderna pode conceber, uma epopeia do negativo e da negação" (Eduardo Lourenço)

 Com Álvaro de Campos desaparece a confusão entre a poesia popular (também cultivada por Pessoa) e linguagem falada.

 

O poema parte dum niilismo corrosivo até uma reafirmação da fundura ôntica da solidão, passando pela recusa da cultura moderna, dos homens e mesmo dum certo passado mítico.

O divórcio da realidade é visível nas estruturas negativas do discurso, nos imperativos, na significação dos verbos, na estrutura da frase, combinando elisão com perífrase (Cf. por ex. 3a. estrofe), num certo pendor para a redundância (a todos os níveis linguísticos), na enumeração ou ainda na interrogativa retórica; esse divórcio passa também pelo confronto com os "outros", monolíticos, vivendo uma "felicidade opaca e animal", imersos cegamente na corrente do devir. Essa relação contundente patenteia-se na linguagem familiar, coloquial mesmo, terminando enfaticamente pela reafirmação da individualidade.

Mergulhando em busca da Verdade no Passado - ou na ideia arquetípica do Passado, como o demonstra a caracterização do Tejo ou do céu, por exemplo - o sujeito poético verifica que tudo isso é irrecuperável e só fica a sensação de não ser o mesmo que aí viveu.

Entre o otimismo exaltado e a depressão (real ou fingida, como artifício estético) poderão ser citados múltiplos poemas de Álvaro de Campos.

(in EN 1989 – 1ª fase, 1ª chamada)