terça-feira, 15 de julho de 2025

As Anunciações, de Maria Teresa Horta

 

Toda me entreguei, sem fim,
e  de  tal  sorte  hei  trocado,
que é meu Amado para mim
e eu sou para meu Amado.

Teresa de Ávila
«Sobre aquelas palavras “Dilectus meus mihi”»
in
Seta de Fogo (Trad. José Bento)

 

[...]

nunca o desejo foi assim,
tão vago e tão intenso.

[...]

Rainer Maria Rilke
«Anunciação As Palavras do Anjo»
in O Livro das Imagens
(Trad. Maria João Costa Pereira)

 



 

PRÓLOGO

 

PALAVRAS EXCESSIVAS

Para trás do tempo não havia tempo
nem rasto de algum assombro
só o negrume do vazio absoluto
Cousa alguma a registar o nada, sem que
desse ínfimo surgisse um luzeiro mínimo

«Então as trevas cobriam a face do abismo»

«Dissipai-vos ventos procelosos!» – gritaram
os anjos nocturnos com as suas asas de luto
limpando o firmamento dos gelos, e mais tarde
dos vulcões os cheiros de enxofre e cinza

«Quem escancarou sem medo a boca da vertigem?»


I


Assim disse Gabriel a Maria, com a expressão
da fissura de tanto olhar a desgraça no seu
destino ancestral, prisioneiro da amargura

E ela assim o escutou, fitando a farpa
da agrura das palavras excessivas, na invenção
das imagens nas quais não acredita

Antes das claridades jamais houvera
o vislumbre de qualquer vulto no espaço
Avassalamento surdo e forja de fogo urdido
entre passado e futuro a moldar
o próprio fundo, desfigurado e ardido

«Faça-se a luz; e foi feita a luz»

a dividi-la das trevas; no início alvor de nada
esvaecido e perecível
estrelas enegrecidas pelos caminhos do caos
escuridades de ameaça onde a chama é retomada

«Separe-se umas águas das outras águas»


II


Assim contou Gabriel a Maria os passos
da criação em sedução desmedida, e que no céu
se fez luz na própria luz convertida

E ela assim o escutou, duvidosa e dividida
diante do que é narrado entre os atalhos
dos astros, entregue mas tão cindida

Mas já recuam os espíritos das sombras
de desmesura aturdida, deixando ver a beleza
cintilações infinitas, esquecendo dores e mágoas

– Oh minha Estrela Polar! Diz Gabriel a Maria
por entre luas e fráguas

 


PRIMEIRA ESTAÇÃO

 

No início foi a luz
em torno de Maria

 

Dançante, enquanto lia

MARIA

Debruçada em si mesma
no início do seu dia
Maria estava tão longe

que em si mesma se perdia

Cabelos de cor sombria
o olhar arrebatado
onde o azul tomava

o tumulto do cobalto

Inquieta e arredia
de estranheza sem saudade
de si mesma nada sabe



GABRIEL

Quando pousa
resvalando no chão as plantas
brancas e geladas dos pés
                                            de voar

apenas se ouve
o fremir das suas asas
                                            de bruma

Inclinada num livro
Maria mal ergue as pálpebras
                                            de veludo

Mas ao folhear as páginas
no ardor do uso, estremecem
na pressa os seus dedos
                                            de fuso


DESLUMBRE

Levanta os olhos
contrita
atenta à luz que a deslumbra

mas também a estonteia

partindo daquele
que no espaço vagueia,
mediador do inexplicável

– Gabriel arcanjo…

Escuta uma voz
dizer à sua beira


SOBRESSALTO

O anjo demora-se
a vê-la
reclinar as folhas

por entre florestas e clareiras
de palavras
sem reparar no desgaste das horas

– Ave Maria!
Acaba por murmurar

coração sobressaltado
a afundar-se no susto

baixando os olhos…
                                        a custo


A VOZ

Não conhece a voz
que lhe murmura o nome

Volta-se relutante
sem querer o seu olhar
abandonar o livro

e ao encontrar o anjo
ajoelhado
                    à sua frente

por entre os lábios
solta-se um breve suspiro
contido na própria sombra

Julgando ouvir no ar
um arrulhar levíssimo
                       de pomba

a desejar enredá-la
num espaço sem limite
que ao confirmá-la

a assombra


VULNERABILIDADE

Quando ele
a olhou nos olhos

viu
a vulnerabilidade

– Cristal de rocha,
imaginou do próprio coração

ofuscado
golpeado



SUSSURRO


Tinha asas sem costura
como escreveu o poeta

Tão lívido que a Maria
se afigurou ser feito
de sussurro e de suspiro

Tão trémulo
que lhe parecia
empurrado pela aragem

Da condição da folhagem


CONTURBAÇÃO

Está à procura de quê?
Pergunta a si mesma
sem entender a enganosa luz

das asas

nas costas de Gabriel
divinas e jubilosas

com a conturbação das rosas


QUEM ÉS TU?

– Quem és tu
que entras na minha casa
e no meu sentir

sem pedires licença?

Porque te fazes acompanhar
de uma pomba
e um lírio como se fosse
um círio?

Tens o olhar quase
branco dos gamos

E uma aura
                      de luz
a inquietar o sonho


CORRENTEZA

– Trazes-me o voo
   e prendes-me para sempre
   à correnteza lívida do lírio

   das penas das tuas asas

Responde àquele
que a saúda de novo
mal segredando:

– Ave Maria
                        cheia de graça!

 

 

SEGUNDA ESTAÇÃO

 

SAUDAÇÃO A MARIA

- Saúdo-te Maria, cheia de graça!
Volta a dizer o anjo
sem respiração
olhando-a tolhido de estranheza

tão deslumbrado ao revê-la
que novamente esquece
os termos da Anunciação

como o Senhor ordenara
mas Gabriel, aturdido
ao ver Maria
não os lembra

 

Maria Teresa Horta, Anunciações. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2016

Disponível em: https://static.fnac-static.com/multimedia/PT/pdf/9789722060332.pdf

 

"Anunciação de Cestello", de Sandro Boticelli


Iconoclastia e mística

Maria Teresa Horta escolheu para capa do seu livro ["Anunciações"] a icónica "Anunciação de Cestello", de Sandro Boticelli. A capa funciona como uma fronteira, pois mantém uma natural exterioridade em relação ao texto, mas a verdade é que opera também como um espelho, ali colocado para potenciar um intenso jogo de reflexos e correspondências. O poema que Maria Teresa escolheu para a contracapa documenta amplamente esse diálogo, construindo-se como uma leitura minuciosa da imagem de Boticelli. E é um poema extraordinário:

É como se nós os dois
dançássemos
o perdimento

Tu de rojo a meus pés
e eu erguida num ímpeto
a tentar turbar o tempo

As minhas mãos
a suster
e as tuas a empurrar

num mesmo gesto sedento

A entrega e a recusa
o corpo e o pensamento

Mas há uma surpresa quando se parte deste poema para olhar a tábua pintada do mestre italiano. Maria Teresa Horta (MTH) leva-nos a observar a coreografia dos corpos, convergindo em particular para a altíssima tensão gráfica que se adivinha entre as mãos de Maria e as do anjo. O que ela faz é interpretar, dando corpo narrativo a essa tensão gráfica e tecendo uma espécie de romance. Nesse sentido, temos de tomar como elementos imprescindíveis aqueles introduzidos pelo título: o plural «anunciações» em vez de «anunciação»; e o subtítulo «um romance», em jeito de declaração programática. Estamos perante uma imagem, perante a possibilidade de um romance em torno a uma imagem e perante uma poderosa arte poética a amalgamar tudo isso. Contudo, o poema guarda um estratégico silêncio sobre aquele que é porventura o elemento mais intrigante (e menos consensual) na obra de Boticelli: a inesperada sombra que o corpo angelical possui e que se alonga dramaticamente sobre o pavimento, acompanhando a deslocação das mãos.

Estamos perante uma natureza angélica que rompe com o cânone das representações, uma natureza não só não-privada de sombra, como seria de esperar, mas cuja sombra é mesmo o signo mais avançado, prolongando-se para lá do espaço onde o corpo se sustém. Um corpo angelical com sombra é, claramente, um corpo alterado, em metamorfose. E de que metamorfose se trata? Aquela que sabiamente Maria Teresa Horta depois enunciará: «Fico a ver-te.../ ganhares o corpo/ físico/ na perda do corpo místico». A sombra é uma grafia da carnalidade, estando comummente do lado dos corpos históricos e ausente dos espíritos puros. A esta poética, porém, não interessa a estabilidade do binómio, mas sim a sua ambivalência, a exploração da ambiguidade, o tracejado inaudito de uma deslocação entre corpo físico e corpo místico, a pergunta. A surpresa é que a Boticelli também. E indo mais longe: que à arte chamada sacra também. Porque, como explica o Mestre Eckhart, existem dois caminhos: aquele que nos leva a renunciar completamente às imagens (e ao romance), pois «Deus não possui imagem ou semelhança de Si mesmo», e squele que aceita fazer o percurso das imagens, compreendendo que isso implica aquilo que no vocabulário teológico paulino se expressa como «quenósis», quer dizer, abaixamento, encarnação, renúncia à forma de Deus.

As Anunciações, de Maria Teresa Horta, não são a "Anunciação" católica. O próprio plural grafa deliberadamente um distanciamento, a que se torna necessário atender. Sem dúvida, que a cena bíblica da anunciação ainda é reconhecível como ponto de partida. Porém, à maneira da prodigiosa luta que Jacob travou com o anjo, a poeta luta com aquele relato, num combate encarniçado, iconoclasta e noturno que o expande, inverte e subverte, mas que, em certos momentos se parece a um reencontro deslumbrado e a uma dança. Como diria outra extraordinária voz mística da poesia portuguesa, Adília Lopes, «o iconoclasta/ reconstrói o ícone». Só que enquanto em Adília o quadro místico do mundo é reconstruído por aquilo que a própria autora chama «o louvor do lixo», em MTH essa possibilidade surge através do eros. Diga-se, desde já, que não está só: esse é um caminho amplamente percorrido por exploradores do divino de todos os tempos, e em relação ao qual o próprio cristianismo tem um património admirável. Um importante teólogo ortodoxo, Olivier Clément, deixou escrito que «o amor carnal permanece, juntamente com a beleza do mundo, um dos últimos caminhos do mistério».

No volume Anunciações, do mistério de Deus só é inteligível o que puder ser declinado a partir do eros. Nesse sentido, um dos seus aspetos de maior impacto é essa espécie de teologia protestativa que se vai desenvolvendo, muito à maneira de Job, mas em vez do questionamento de Deus aparecer centrado no enigma do sofrimento humano, aqui aparece focado em contrariar o interdito que algumas representações de Deus lançam à erótica. De facto, a experiência do amor que devia ser jubilatória torna-se muitas vezes, em certo discurso religioso, um caminho crucificante, como é o da protagonista deste romance em poemas. A própria estrutura do livro pede, por isso, para ser interpretada como uma denúncia e um grito. Este é um livro que se abre à discussão, sem querer apoderar-se de certeza alguma que não seja a da recuperação do amor. E a recuperação do amor não é senão a recuperação de Deus. No fundo, a iconoclastia e a mística têm muito a dizer e a ensinar uma à outra.

José Tolentino Mendonça, JL, 06-07-2016




Todo o amor é abolição de limites até do próprio corpo

Maria Velho da Costa

 

2. Anunciações (um romance)

 

O movimento e o olhar entre o profano e o sagrado são contínuos ao longo dos séculos.

Os textos apócrifos enriqueceram o culto oficial, nomeadamente a Maria. Sem eles, Maria não ocuparia provavelmente o lugar que tem hoje no culto cristão…São escrituras “apocryphes”(du grec apokruphos, “caché”) em que as igrejas reconheciam a verdade revelada por Deus. A fronteira entre estes textos e os textos canónicos foi durante muito tempo porosa. A VERDADE assumiu mil facetas e foi (re)interpretada de forma diferente pelas diferentes religiões: ”Etimologicamente, a palavra apócrifo, de origem grega, significa “escondido”. Antes do cânone da Bíblia ser fixado, designava as palavras divinas escondidas, nas quais era preciso descobrir o sentido para lá da letra/palavra. Mas desde o fim do II século, o termo vai-se aplicar aos escritos conforme a tradição, ocultando a verdade, noutros termos: heréticos”.16 (Les cahiers de Science et Vie, 2019:43)

Na revista francesa, de janeiro, LES CAHIERS SCIENCE & VIE com o título de capa: “LA VÉRITÉ”/DES ÉVANGILES APOCRYPHES AUX FAKE NEWS, podemos contextualizar o culto mariano.

Através dos vários artigos da revista tomamos consciência de que ao longo dos séculos as “verdades”, porque não há só uma, foram sendo manipuladas, conforme os Homens (literalmente) que as transmitiam, de acordo com os seus olhares e interesses.

Na Idade Média em que “un flot d’images religieuses se déverse dans les lieux de culte et les livres de prières. Illustrant des épisodes de la Bible, le sort des âmes ou la vie des saints, elles sont toutes encouragées para le clergé, pour diffuser la seule vérité qui vaille, celle du dogme catholique. ” (idem :51)

A partir do século XII a imagem / o ícone/ a iconografia esteve ao serviço da prédica religiosa que aparece como um utensílio “ outil” para a conquista de um novo público urbano. No artigo assinado por Cristophe Migeon intitulado: LE VOIR POUR LE CROIRE (Ver para Crer), ele afirma que a propagação/divulgação de ideias através de imagens, tal como nos nossos dias, ajudou/ajuda a fixar uma realidade. A imagem tornou-se o meio para a revelação das verdades divinas anunciadas pela escritura: “L’image devient l’utile révélation des vérités divines annoncées par l’écriture”(ibidem.)

A iconografia legitimou o prestígio da igreja e tornou-a um centro de poder.

Um romance, subtítulo da obra, tem as características formais do rimance, o texto bíblico da Anunciação, o quadro /imagem da representação de Botticelli e, portanto, tem todos os elementos que a igreja utilizou para a legitimação da palavra de Deus: a forma, o conteúdo e a imagem.

MTH produziu um livro belíssimo, olhando frontalmente e questionando o papel da mulher no séc. XXI, que as religiões, praticadas por Homens, foram manietando com leituras enviesadas, no passado.

A obra cumpre os conceitos inovadores supracitados e os requisitos da oratória medievalista cristã: a forma/prédica e o tema e a imagem, para legitimar e divulgar a palavra de Deus/deus.

Concluo, reproduzindo as palavras de Barthes, na contracapa do livro Fragmentos de um Discurso Amoroso: “Dois poderosos mitos fizeram-nos acreditar que o amor podia, devia sublimar-se em criação estética: o mito socrático (amar serve para criar uma multidão de belos e magníficos discursos) e o mito romântico (produzirei uma obra imortal escrevendo a minha paixão) Anunciações incorpora os dois mitos sobre o amor: o dever de sublimar e imortalizar o amor na criação estética

 

2.1. Análise da estrutura da obra: Prólogo; XIV estações; Epílogo e Post-Scriptum.

MTH conhece a tradição da simbologia de Maria, do Anjo da Anunciação e não deseja evocar na íntegra a tradição bíblica, embora o faça às vezes, pois é impossível apagar, culturalmente, uma realidade histórica, religiosa e mítica (a da mulher que foi mãe e que, enquanto mãe de Jesus, ascende aos céus, também ela ficando sentada junto ao Pai...). Fascinante, para MTH, é o mistério que a envolve, desde que o Anjo lhe aparece e lhe fala. Aqui, a autora deixa de parte o mais que se possa avançar, pelos relatos canónicos, e fixa a sua meditação no mágico encontro da Mulher com o Anjo.

Na súbita aparição, que biblicamente é única, no mútuo encantamento, MTH (o que nela seria já de esperar, devido à fisicalidade de tudo o que escreve) corporiza o mistério, sublima-o, porque o materializa. Humaniza o Encontro e a Revelação, impondo uma narrativa poética de romance, daí o subtítulo.

É o romance que estrutura os poemas, o romance que se desenha no encontro e leva a uma paixão que podia ter sido real.

O romance, ou rimance, tem, na teoria dos géneros literários, formulações diversas: é relato de aventuras, é narrativa que tanto pode abarcar registos em verso como em prosa, e tem, como substrato temático e ideológico, um horizonte de expectativas que passa pela compreensão do maravilhoso, mas também da verosimilhança, ou daquilo que são as categorias da narrativa tratadas de forma mais ou menos conservadoras. MTH não desconhece essa teoria dos géneros (Huerta Calvo, por exemplo, refere-se ao romance como forma multímoda de linguagens que, do rimance medieval às formas modernas de narrativa anula ou dilui as categorias do espaço, do tempo e da personagem) e, na redação deste seu livro, terá tido em conta a forma primitiva do ato de contar, originalmente em verso. (Cortez, 2016)

 

O índice chama a nossa atenção pela divisão em Estações e não em capítulos, assim como o aspeto formal do texto narrativo em verso, onde cada poema das diferentes estações tem um título indiciador do assunto e da progressão da ação:

A organização de Anunciações não acontece por acaso, encontrando-se dividida em 14 estações, tantas como as da Via Crucis que o filho gerado por intervenção divina irá percorrer nas horas antes da sua morte por crucificação. Quem percorre a Via Crucis tem direito a indulgências.” (Silva, 2016)

 

O caminho de Cristo até à cruz, que a igreja católica recria na semana santa, oferece indulgências a quem a percorre, simbolicamente.

O leitor de Anunciações vai percorrer este caminho (esta Via Crucis) através de ações e da palavra (re) inventada dos protagonistas (re) nomeados, sentindo o peso da condição e a libertação, no final, da mulher escolhida: “tu és a escolhida/do senhor!” (MTH, 2016:48)

O romance Anunciações é uma oratória ao Amor entre um homem e uma mulher, a partir da (re) criação da Anunciação Bíblica e da (re) interpretação do quadro de Botticelli.17

As duas personagens narram, encantam(-se) e cantam um amor, ao longo de XIV estações, uma Via Sacra, em (253) CCLIII belíssimos poemas.

Na primeira parte, observamos as personagens, a corte amorosa com os seus enleios, os questionamentos e inseguranças, e a consumação do amor espiritual e físico (perda de virgindade de Maria).

Segue-se o envolvimento amoroso, com a aura de pecado sempre latente, em Gabriel, que dá origem ao seu afastamento progressivo, notoriamente a partir da X estação.

O questionamento de Maria é (re)corrente: Oráculo? (idem:31); Monge? (idem:46), Poeta? (idem:52); Emissário ou Reflexo? (idem:72); Desejado? (idem:76); Adivinho? (idem:87); Encantador do espaço? (idem:167); Quem és tu? (idem:274).

Sempre coerente, a poetisa rejeita os dogmas e os mistérios que rodeiam a figura icónica de Maria, humanizando-a e configurando-a como uma mulher apaixonada mas racional, que critica as hesitações e medo do amado face às ameaças divinas.

Fluindo como um rio, que nos e se vai “enchendo”/engravidando de aprendizagens, simbolizando o crescimento e o conhecimento da mulher independente, no reverso da estória.

Finalmente, não temos o dogma da Virgindade, da conceção e da submissão de Maria a um Deus, mas a vontade de uma mulher que assume o amor na sua plenitude, o filho gerado e o afastamento do amado, mantendo incólumes as suas convicções.

O livre arbítrio desta Maria (simplesmente Maria)18 não é a redenção de uma mulher, mas a redenção da mulher:

a erguer-se essa palavra, MTH fá-lo agora de uma forma curiosa: Maria é a mulher – toda a mulher – que tem direito a receber a palavra do Anjo e a fazer dessa palavra a carne que será Jesus de Nazaré, nascido por intervenção divina), a própria estrutura do livro (com Prólogo seguido de quatorze estações e um Epílogo) é sinal de que em Anunciações o lírico se cruza também com o dramático, funcionando cada "estação" como cantos de um "romance" onde se harmonizam as vozes do anjo e de Maria. Cada canto, cada secção é, assim, o espaço da encenação, o lugar onde se dá conta dos passos que as anunciações (e sobretudo a anunciação poética) percorreram: da vontade transcendente de um daimon à intuição feminina, da intermediária voz de Deus pela voz do anjo às tentações luciferinas e indagações do próprio anjo quanto a um projeto divino a fazer-se humano. (Cortez,2016)

 

A literatura, num tempo dessacralizado como o nosso, assume o papel de transmissora das ideias pela palavra e MTH utiliza esse poder criador/demiúrgico: “Gabriel e Maria personagens de um romance que, por isso mesmo, pedem à fala de MTH o cuidado da encenação, fazendo do livro o palco onde interagem e se tornam figuras que só o poeta pode ver, dado que é ele também o recetor privilegiado das anunciações da poesia, a língua original dos anjos.” (ibidem)

No Prólogo, o título encaminha-nos para o poder da palavra: PALAVRAS EXCESSIVAS, onde recorrendo a citações bíblicas, escritas entre aspas, “Gabriel contou a Maria os passos/ da criação em sedução desmedida,…”19 . (idem,2016:14)

A I estação inicia-se com a apresentação das personagens, seguida do coup de foudre20: “Levanta os olhos/…atenta à luz que a deslumbra (…) mas também a estonteia.” (idem:21)

 

MARIA

Debruçada em si mesma

no início do seu dia

Maria estava tão longe

 

que em si mesma se perdia

 

Cabelos de cor sombria

o olhar arrebatado

onde o azul tomava

 

o tumulto do cobalto

 

Inquieta e arredia

de estranheza sem saudade

de si mesma nada sabe (idem:19)

 

No primeiro olhar, Gabriel fica sem palavras; a custo, consegue finalmente murmurar a saudação bíblica: “Ave Maria”. Ao longo da primeira estação temos a gnosia do texto bíblico e a recriação/réplica da história original, a partir da sedução e do enamoramento das personagens.

É aqui que, segundo Tolentino, «se cala o romance tradicional e começa o romance de Maria Teresa Horta, porque o anjo esquece a mensagem que trazia porque se enamora de Maria e Maria enamora-se do anjo.» É esse «o grande encontro, a grande mensagem (que) não é uma mensagem verbal mas é uma mensagem que o corpo do anjo traz ao corpo de Maria.»21

A epígrafe da II estação, a que se segue a segunda visitação, é uma epifania, para a compreensão da obra:

 

Ela será segundo a escolha

dos pintores do futuro

Com todo o fulgor

 

das tintas e dos imaginários

 

Maria, de si mesma, o contrário22

 

“No painel ao lado/… Gabriel inclina-se /…/ e assim a seduz” e comunica-lhe a mensagem:” -Serás para além/da tua condição de mulher (…) (MTH,2016:43)” e termina: “- Ó minha angelada,/tu és a escolhida/do senhor!/Eu serei o nada”. (idem:48)

Este papel da condição da mulher “como escolhida/do senhor”, isto é, o homem escolhe a mulher e ela submete-se ao seu senhor, tem acompanhado a sua história até aos nossos dias, tal como foi referenciado no início do trabalho.

III estação/ação, invocação de Maria: ”- Ó purpura de sangue!” citando o verso Hildegarda de Bingen, que irá invocá-la séculos mais tarde.23

Maria interpela o Anjo: Quem és tu?

 

ÉS POETA?

Chegas com a aura

de um anjo

E és poeta?

 

Asas de perdimento

olhar de água

 

e tudo à tua volta

se inquieta (idem:52)

 

Em OLHEIRO DO SENHOR (III estação) surge um anjo vigilante, Uriel, apontando-se já no verso algum pecado iminente. Mas não seria preciso, pois todo o livro levanta essa suspeita de amor, à medida que o verso corre, do sagrado para o profano. (idem: 54-55)

A linguagem é propositadamente arcaizante, por vezes, neste como noutros poemas, recordando que de uma romanza se trata, e não tanto de um verdadeiro romance.

É assim a poesia de Teresa, e encontramos aqui a coerência de sempre, do seu ritmo. Um respirar tão natural e físico como o do seu próprio corpo, sublimado. O título recorda que estamos diante da palavra poética que é, em si mesma, a inesperada presença de um Anjo.24

As ações sucedem-se estação a estação, que nos informam, progressivamente, de atos, dando ao leitor indícios para o desenlace.25

Em EMISSÁRIO OU REFLEXO e em ESPELHO interroga-se: “Afinal o que é? Como se diz em cada último verso, de cada estrofe: reflexo? excesso? reverso?” (idem:72). Assim, devagarinho, a autora desconstruirá o mito: o mito da virgindade e da pureza.

O "abismo perverso" a que se alude no poema seguinte, o do "nada absoluto/onde a luz /é o excesso"(idem:73) já faz descer a sombra de um corpo material, na interrogação de amar e ser amado. Não se fala de um corpo todo ele de energia subtil, mas de um corpo onde se esconde, mal, a violência do desejo.

PRESSENTIMENTO já é tão só confirmação do que foi dizendo atrás: pode Maria pecar contra o Senhor seu Deus?: “Podes desejar-me/amar-me/ e obedeceres ao teu Deus?” (idem:78)

Voltamos ao "perdimento" arcaizante, porque de arcaico mito se trata, ou de arcaico e desde sempre existente, latente, sentimento:

Que pressentimento

é este

de queda e de vulcão?

 

Que ambíguo perdimento

Devastado

entre amante e amado?

 

Entre vida e sagrado? (idem:79)

 

Os poemas que encerram as estações, encerram também uma ação:” “ O anjo inclina-se/e ela fixa-o surpresa/com o livro entre as mãos” (…) “ E devagar o seu olhar velado/ de pura turvidade /por ela própria doendo de paixão.” (idem:82)

Os encontros acontecem com sombras e luzes, com silêncios e palavras: “ Não é a essência/nem o divino/ que os liga e os atrai/ É sim o equívoco” (idem: 93)

No final da V estação a indulgência é para o leitor, que vai ler um poema belíssimo, dialogando connosco e com Botticelli: “Dança”: “dançássemos/o perdimento” (idem:98):

Há um pormenor arrepiante, a frieza das asas do Arcanjo, a par das declarações de amor inesperadas por parte de Gabriel. Um momento em que qualquer um gela também pela heresia inesperada que escuta. E a consciência da jovem seduzida, que conclui: "Seremos a nossa condenação."

Depois, Maria escreve poesias como as jovens apaixonadas; ele diz dela que é a sua estrela da manhã; sentem o desejo dos lábios... A meio destas Anunciações chega a hora da grande pergunta: "Até onde me levas?" Isso não se adianta, cabe sim ao leitor descobrir, por entre versos com aroma de prosa. Exemplos: "uma incerta nostalgia de pecado", "te imagino deitado ao longo dos astros". (Silva,2016)

 

Se o enamoramento foi mútuo, a forma como o vão processar é diferente em Maria e em Gabriel. Perante os obstáculos, Maria vai interiorizando, interpelando-os, explicando-os e superando-os. Contrariamente, Gabriel deixa influenciar-se por eles, e no final da sétima estação e em FULGOR Maria diz: “-Seremos a nossa condenação”/ (…) “o lírio pisado/ gemia de fulgor” (idem:116)

Essa presciência da palavra de poesia participa, de resto, desse outro jogo semiótico do livro que é a possibilidade de a voz de Maria poder ser também a de Teresa: é bem o exemplo de como a cena bíblica é contígua à cena da escrita: "Maria baixa os olhos/ alumbrada // e antes que Gabriel/ a beije/ fita-o por entre as pálpebras// Encadeada com as suas asas/ pergunta/ com voz rasgada:// - Nunca me deixas? Nunca me largas? “ (idem:140)

Poemas há que são, por isso, subtis maneiras de dizer o quanto a poesia é para MTH essa palavra de "perdimento" e "achamento" que revela os interstícios da condição tanto mais humana quanto mais feminina. Leia-se, como modelar exercício epifânico, POEMA DE MARIA AO ANJO: "Procuras o sublime/ meu anjo/ voando nos céus perdido// na desmesura dos astros/ tão longe e dividido/ em quedas em que te afastas// nesta paixão que te arrasta/ até mim/ por entre estrelas// Enquanto eu me redescubro/ em cada beijo que é dado/ com a sede da tua língua// e o desejo dos teus lábios// A tomar-te o corpo de anjo (em corpo humano mudado)/ com o teu gosto de pecado". (idem:150)

A entrega é dita, num claro dizer de poesia “imperdoada” pois desflora um espaço que era segredo, antes mesmo de ser sagrado:

 

ELEGIA

Sempre te esfumavas

nos meus braços

 

mais bruma, mais ávido

mais lívido

mais pálido

 

meu brevíssimo amor

imperdoado (idem:260)

 

Afastando os leitores do “território de louvor”, do “território confessional” ou do “território dogmático” do romance mariano tradicional, MTH encaminha-nos para uma via onde “a dor se experimenta: a dor do amor, a dor das Anunciações e que permitirá a Maria escrever, de uma forma muito sua, o seu próprio destino.”

O afastamento de Gabriel- XII e XIII estações. (idem:248-262)

Finalmente, este caminho sagrado do amor, sem indulgências nem indulgência, caminha para um alumbriamento que em castelhano significa nascimento, dar à luz.

Como Gabriel em TIMORATO E HESITANTE: “E Gabriel vacila /tornando-se quase invisível// (…)Maria conclui:” Não! (…) // _ tu não és o poeta“ (idem:226)

MTH já tinha escrito sobre Anjo da fala:

Quem é que organiza

O silêncio

Do anjo da fala?

 

Quando o sabre da luz

Inventa a palavra

E mesmo falando o arcanjo se cala (MTH,2001:30)

 

As XIV Estações, cada qual um caminho, em que a última já contém o destino de mãe, que será também o de Maria.

De poema em poema a Condição Feminina - Amada, Mulher, Mãe - que MTH interpela e re(cria).

Fecha-se o ciclo com um POST-SCRIPTUM, uma CARTA A MARIA que resume de algum modo o que não coube na poesia, embora verso a verso tudo ficasse dito.

Há neste romance aproximações e rompimentos porque, como de uma obra de arte se trata, traz em si as suas características:

A história da arte é feita de rompimentos e reaproximações com estéticas anteriores; rompe-se com algumas, dialoga-se com outras. Composições onde se evidencia a referência ao universo trovadoresco, através do reavivamento dos seus símbolos e personagens, versos ou expressões, que podem variar entre uma ou mais referências (incidindo a sua manifestação no plano temático ou vocabular) (apud Cunha 2008:10)

 

A mulher que deveria submeter-se à vontade de Deus/do Senhor, POST-SCRIPTUM – Carta a Maria -“Faça-se em mim a vontade do Senhor”//-não disseste.” (MTH,2016:319). Epílogo: Onde eu mesma? Através da frase inicial, na parte I e II na forma negativa”: Não me reconheço” finaliza a metamorfose de Maria : “transfigurando em segredo//a mulher em mito imenso/pelo avesso inventada” (idem:314) “Não me reconheço mais/no recuo/ao olhar-me nesta imagem(…)” (ibidem)

 

2.2. O texto: a identificação dos tipos de intertextualidade praticada.

 

Anunciação / intertextos

 

Do desvelo de Maria em Anunciação a Maria desvelada em Anunciações.

O mais destacado motivo deste romance é a Anunciação a Maria, que se transforma em outras anunciações que vêm dar o título ao romance.

O hipertexto relata-nos uma anunciação, que se vai transformando numa história de amor entre “Maria da Nazaré!/ Ó filha da Galileia!” (idem:209) e o arcanjo Gabriel, nomeado, mas não chamado, como Maria.

O romance tem como intertextos basilares, o texto bíblico da Anunciação do Anjo a Maria e a representação icónica na Anunciação de Sandro Botticelli, analisada no ponto 1.3.

Comecemos por analisar a anunciação bíblica:

Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo, segundo São Lucas I,26-38:

26No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, 27a uma virgem desposada com um homem que se chamava José, da casa de Davi e o nome da virgem era Maria. 28Entrando, o anjo disse-lhe: Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo. 29Perturbou-se ela com estas palavras e pôs-se a pensar no que significaria semelhante saudação. 30O anjo disse-lhe: Não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus. 31Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. 32Ele será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará eternamente na casa de Jacó, 33e o seu reino não terá fim. 34Maria perguntou ao anjo: Como se fará isso, pois não conheço homem? 35Respondeu-lhe o anjo: O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus. (…). 38 Então disse Maria: Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra. E o anjo afastou-se dela (Bíblia, obra online)

 

MTH marca distância desta fusão e (re) constrói a Anunciação.

Ao contrário de Rilke, que em tudo aspira à proximidade, e cada vez maior, em fusão plena, seja do mistério de Maria, seja do mistério da rosa (como em Dante) que nos deixou nos últimos poemas.

Ao percorrermos o romance, encontramos referências a outros autores e à própria autora, num movimento de diálogos plurais. No romance, as epígrafes e a convocação de outros autores, para além do episódio bíblico, apelam a outras vozes, para falar de um assunto.

Hildegarda de Bingen: - Ó Púrpura de Sangue -”;

Tolentino: “A que distância deixaste o coração?”;

Shakespeare: ”Oh minha rosa de maio”;

MTH: ”Terão todos os anjos//o vício// da queda?

Rilke:”- Tu és a árvore

MTH: (…) “Eis o chumbo//na palavra iniciada//há dois mil anos”(…)

(MTH,2016:66-102-115-189-200-235).

 

As epígrafes iniciais oferecem pistas que nos encaminham, tal como o subtítulo “um romance”, para um romance de amor.

A primeira epígrafe da obra é dedicada ao marido e é uma declaração de amor eterno. Seguem-se, na página seguinte, duas epígrafes: a declaração de amor eterno a Deus de Teresa D’Ávila em que se transforma a amadora na cousa amada, parafraseando Camões. Finalmente, um excerto de um poema de Rilke, em Anunciação - As palavras do Anjo-Livro de imagens, que fala de um desejo vago e intenso.

Para compreendermos melhor o verso e o reverso (o direito e o avesso?) em Anunciações, procuramos ação noutros escritores citados pela autora, como Tolentino de Mendonça e Rilke.

 

Anunciação

 

Só o ombro do anjo

permite a visão

da luz

o sinal

é na mulher o rosto

anuncia

o cortejo solene do sol

que lhe cresce

no colo

o mistério

a flor do lírio

acesa

(José Tolentino Mendonça, In "A noite abre meus olhos - Poesia reunida” online)

 

Porém, será este belíssimo poema de Rilke que dialoga, provavelmente, com o romance, em

 

Anunciação a Maria

 

Não foi a aparição de um Anjo (reconhece)

que a assustou. Nem de outros, quando

um raio de sol ou de luar à noite

os refletem no quarto desfilando,

se inquieta ela com a forma que um Anjo

possa ter assumido; mal suspeitando que

esta presença pudesse para o Anjo ser incómoda.

(ah se soubéssemos como ela era pura. Certa vez,

avistando uma gazela a repousar na floresta,

de tal modo a penetrou com o seu olhar que

mesmo sem acasalamento nela se gerou o unicórnio,

a criatura de luz, a pura criatura -).

Que ele entrasse, o Anjo, e com um rosto de adolescente

se debruçasse e a fixasse de tal modo que o olhar dela

e o seu se confundissem, como se de repente lá fora

tudo se esvaziasse, e o que era visto, procurado, levado

por milhões de homens nela se concentrasse: só ela e ele.

Contemplação e contemplado, olhar e prazer de ver,

em nenhum outro lugar a não ser neste -: repara,

é assustador! E ambos se assustaram.

Foi então que o Anjo cantou a sua melodia.

Rainer Maria Rilke (obra de Rilke online)

 

MTH conhece o significado original de sagrado, o oposto do profano, tal como o definiu Mircea Eliade: ”Sagrado designa algo distante e consagrado, profano significa o que está em frente, ou fora, do templo” e é o que a autora faz a partir do quadro de Botticelli, que à sua frente e fora do templo deixa de ser distante e (con) sagrado, tornando-se profano na sua representação.

No entanto, ao contrário do que seria de supor, relendo a definição de hierofani de Mircea Eliade, não importa que este livro seja profano, porque “algo de sagrado revela-se-nos” na homenagem a Maria-Mulher e no caminho, Via Crucis, que o leitor teve de percorrer.

Mircea Eliade acredita que o homem adquire o seu conhecimento do sagrado por este se manifestar como uma coisa totalmente diferente do profano. Ele chama a isto hierofani, palavra grega que, literalmente, significa «algo de sagrado revela-se-nos». E sendo o caso, não importa se o sagrado se manifesta numa pedra, numa árvore ou em Jesus Cristo. Quem quer que venere uma pedra não é à pedra em si que presta homenagem. Adora-a por ser um hierofani, por mostrar o caminho para algo que é mais que uma simples pedra: o sagrado.” (apud Gaarder, 2003:20)

 

Este anjo rompe como Maria o molde original:

 

(…) assim, todo o homem que fala da ausência do outro declara-se do lado feminino: este homem que espera e que sofre está miraculosamente feminizado. Um homem não é feminizado por ser invertido, mas por estar apaixonado. (Mito e utopia: a origem pertenceu, o futuro pertencerá aos sujeitos em que existe o feminino.) (Barthes,1977:32-33)

 

E adquirem ambos uma outra originalidade, transfigurada/metamorfoseada pela escrita, de um homem e uma mulher, refletidos num espelho, que assumem e consumam a paixão onde” o poético é o reduto do sagrado num tempo dessacralizado como é o nosso”.26

Anunciações/um romance, subtítulo da obra, dialoga/olha em várias direções, com várias realidades intrínsecas e extrínsecas ao romance: o rimance, o texto bíblico e a pintura de Botticelli – tem as características formais do rimance, o texto bíblico da Anunciação, o quadro/imagem da representação da Anunciação de Botticelli.

Este diálogo polifónico expande-se, no conteúdo, em Botticelli, Teresa D’Ávila, MTH, Tolentino, Rilke, Dante, Shakespeare e connosco.

A propósito de “Os poetas são homens que se recusam a utilizar a linguagem” – Sartre escreveu:

(…) O poeta desviou-se, com um único gesto, da linguagem-instrumento; escolheu de uma vez para sempre a atitude poética que considera as palavras como coisas e não como signos .É que a ambiguidade do signo implica que se possa atravessá-lo à vontade como a um vidro e perseguir através dele a coisa significada, ou voltar o olhar para a sua realidade e considerá-lo como objeto. (Todorov,1977: 299)

 

Este desvio é feito por MTH no romance, atravessando como a um vidro-espelho o episódio bíblico da Anunciação (em 25 de março) e transformando-o em Anunciações.

E MTH é uma poeta que sacraliza através da palavra poética a dessacralização do texto bíblico:

 

Selo

 

Deixa-me selar

o livro com o teu fulgor

Maria

 

Resguardando

a mulher

que de ti se perdia

se não fechasse

 

as palavras

com a chave da poesia (idem,2016: página sem número)

 

2.3. A importância do erotismo na humanização das personagens.27

O erotismo que percorre a sua obra “começa por ser a denúncia da repressão sexual que pesa violentamente sobre a mulher nos anos sessenta, num momento em que é posta a nu (Reich, Marcuse) a articulação entre esta e o poder político.” (Reynaud,2001:33)

A escrita erótica de MTH é ainda sentida como uma forma de apropriação de um discurso do prazer ou da fruição, que era pertença do território masculino, não só dentro de uma ordem social e política discriminatória, mas também, e sobretudo, no interior de uma ordem simbólica, onde a própria linguagem é um instrumento de opressão. (…) A língua encarrega-se de marcar a diferença sexual e social (idem: 34)

Mas a poesia de MTH afasta-se dos princípios definidores e delimitadores das formas mais radicalizadas do feminismo atual:

“A sua visão de erotismo funda-se no desejo de uma autêntica complementaridade entre a mulher e o homem e esclarece-se , quanto a nós, à luz da tese platónica da cisão originária dos seres em duas metades e da trajetória de cada uma delas em busca da outra, através do amor. Daí que a sua poesia se reconheça dentro de uma belíssima definição do erotismo dada por Bataille: “uma imensa aleluia perdida num

silêncio sem fim” (ibidem)

 

O Cristianismo transformou a sexualidade em símbolo do ‘amor divino’ (espiritual) que se opõe ao ‘amor profano’ (carnal). Nessa distinção revela-se a separação entre corpo e alma, que MTH vai questionar e sublimar nesta obra.

Anunciações eróticas? 28

O teólogo e escritor Tolentino Mendonça responde a esta pergunta na apresentação do livro, na Livraria Leya da Buchholz, em Lisboa:

(…) a tese deste livro é, no fundo, a de que o Eros, o encontro erótico é a verdadeira estrutura hermenêutica que nos faz compreender o sentir.» E «calar a dimensão erótica – acrescentou – é no fundo calar o tipo de conhecimento que nos pode mergulhar no mistério, no enigma do homem e no mistério do próprio Deus. (…) Invocando «um grande teólogo contemporâneo que diz que só nos restam no fundo duas coisas para nos aproximarmos verdadeiramente de Deus: uma é a beleza do mundo e a outra é o amor carnal», Tolentino Mendonça conclui a sua apresentação de «Anunciações» afirmando que «Maria Teresa Horta usa de maneira esplendorosa estas duas vias – a beleza do mundo e o amor carnal – para nos aproximar, não da resposta, porque este é um livro que termina em aberto, que termina com as interrogações, com a disponibilidade de Maria para pensar. Mas certamente por um caminho que é o seu, que é de grande originalidade, este livro não deixará de ser tomado como inspirador para todos aqueles que vivem a sua existência como um espaço de indagação. (in Facebook da autora)

 

Para compreender o erotismo, em Anunciações, convocamos ainda o pensamento de importantes estudiosos do tema do amor, do erotismo e da sexualidade como Octavio Paz, George Bataille, Herbert Marcuse e outros críticos contemporâneos.29

A sexualidade é animal; o erotismo é humano. É o fenómeno que se manifesta dentro da sociedade e que consiste, essencialmente, em desviar ou mudar o impulso sexual reprodutor e transformá-lo numa representação, mas é alguma coisa mais: uma purificação, como dizia os provençais, que transforma o sujeito e o objeto do encontro erótico em pessoas únicas. O amor é a metáfora final da sexualidade, sua pedra de fundação é a liberdade: o mistério da pessoa” (apud Paz, 2001:97).

 

No amor há atração física e espiritual, portanto: “Não há amor sem erotismo como não há erotismo sem sexualidade” (ibidem).

As visões destes temas, divergentes em muitos pontos e convergentes em outros, mostram que são temas universais cuja discussão é inesgotável.

A leitura do erotismo não poderia ignorar o conflito que tem marcado a relação entre amor/sexo/erotismo, presente no pensamento de George Bataille na década de 1950. Bataille procura fazer a distinção entre sexo e erotismo, definindo o segundo como uma atividade exclusivamente humana, diferenciando-o do instinto animal. Curiosamente, Bataille dedicou uma importância muito significativa ao olhar (veja-se Histoire d’un oeil).30

Herbert Marcuse, por sua vez, enfatiza a questão da repressão da sociedade. Segundo Marcuse, o erotismo seria fruto de uma sexualidade livre da alienação que a sociedade repressiva impõe ao sujeito.

Ambos não discutem a questão do amor, tal como enfatiza Octavio Paz. Tanto sexo como erotismo são componentes essenciais do amor. O sexo é biológico e o erotismo é a atividade imaginativa: “O erotismo não é uma simples imitação da sexualidade: é a sua metáfora”. (Paz s/d:26) (…) “O homem mira-se na sexualidade. O erotismo é o reflexo do olhar humano no espelho da natureza.” (idem:25)

(…) O desejo, a imaginação erótica, a vidência erótica, atravessam os corpos, tornam-nos transparentes ou reduzem-nos ao nada “…”Para além de ti, para além de mim, pelo corpo , no corpo, nós queremos ver qualquer coisa. Esta qualquer coisa é o fascínio erótico, o que me tira para fora de mime me leva para ti: o que me faz ir para além de ti. Nós não sabemos de ciência certa o que é, salvo que é, qualquer coisa que é mais. Mais do que a História, mais do que o sexo, mais do que a vida, mais do que a morte. (idem:27)

 

Para ele, a ideia é cultural, portanto variável, conforme os costumes sociais; já o sentimento amoroso é universal. (apud Saraiva 1975:23-33)

Dimensionando essas questões na sociedade moderna, Anthony Giddens, Marilena Chauí e Jurandir Freire Costa ampliam e localizam o tema da sexualidade e do amor, tendo como parâmetro a perspetiva histórica e psicanalítica. Giddens enfatiza a sexualidade como tema de debate, Chauí toma a questão da repressão e Costa retoma os elementos que possibilitaram a criação (fabricação) no Ocidente da imagem do amor: a retórica do amor cortês, a mística católica e o pensamento político-filosófico. (apud Bittencout 2005:7)

 

A transformação – a metamorfose – que mais importa ver é a que a palavra poética opera: o anjo humanizado – Deus em Gabriel - será corpo de desejo que, na interação com esse "eu" feminino do enunciado, faz com que Maria se redescubra mulher. É essa, quanto a mim, uma das dimensões mais apelativas deste livro de MTH: “as figuras bíblicas humanizam-se, masculino e feminino harmoniosamente se contemplam e completam.”

Os poemas são, nesse sentido, as câmaras (as camas?) em que a ficção do encontro entre Gabriel e Maria se erotiza, se torna carne. E é como se fosse um romance que lemos Anunciações, até porque acedemos ao mundo interior destas personas, que, tal qual se vê no quadro de Botticelli, no ato de falar em segredo, hesitam, desconfiam, porque Gabriel sente nas asas o respirar de Maria, porque Maria se deixa fascinar pelos cabelos do anjo. Erótica verbal, ainda (Cortez,2016)

 

E em Anunciações de que metamorfose se trata?

Aquela que sabiamente Maria Teresa Horta depois enunciará: «Fico a ver-te.../ ganhares o corpo/ físico/ na perda do corpo místico». A sombra é uma grafia da carnalidade, estando comummente do lado dos corpos históricos e ausente dos espíritos puros. A esta poética, porém, não interessa a estabilidade do binómio, mas sim a sua ambivalência, a exploração da ambiguidade, o tracejado inaudito de uma deslocação entre corpo físico e corpo místico, a pergunta. (Mendonça,2016)

 

No livro Le plaisir du texte, o pensador francês Roland Barthes aponta a possibilidade da estética do prazer textual: S’il était possible d’imaginer une esthétique du plaisir textuel, il faudrait y inclure : l’écriture à haute voix (…) n’est pas phonologique, mais phonétique (Barthes,1973 :104-105)31

E o poema narrativo de MTH inclui ainda este prazer textual, porque convida o leitor/ator a lê-lo, em voz alta.

 

2.4- O SEXO DOS TEXTOS32

 

Sous prétexte de retenir des thèmes

exclusivement féminins, ne risquait-on de se

limiter et de ramener la femme à une physiologie,

ce qui est encore un moyen de l’enfermer et de la limiter ?

(apud DIDIER, Béatrice, L´écriture-femme, 1981:6)

 

Este título foi “tomado de empréstimo”, intencionalmente, ao livro com o mesmo nome de Isabel Allegro de Magalhães.

A autora questiona na introdução ao seu livro O sexo dos textos se poderemos dizer que os textos têm sexo e, em caso afirmativo, o que isso poderá significar sobre a identidade dos seus autores.

A priori só os autores têm sexo e não os textos que escrevem:

(…) se repararmos, os textos são tecidos linguísticos e a matéria da língua-em particular das línguas latinas, no Ocidente-é toda ela sexuada. Artigos, pronomes, algumas flexões verbais, substantivos concretos e abstractos, adjectivos, são em grande número marcados por um género gramatical, possuem uma forma para o

feminino e outra parta o masculino. (Allegro,1995:9)

 

Seguindo o raciocínio de Allegro, certamente que se trata de uma convenção; porém, a autora questiona como se teria formado ou determinado essa convenção e pergunta ainda se ela não se refletirá “ como constituinte do código simbólico que a língua é, o sexo masculino dominante, desde sempre, em quase todas as sociedades”. (ibidem)

A linguagem escolhida e recriada por cada falante e por cada escritor/a reflete, como a dupla adjetivação sugere, uma escolha e uma recriação, a personalidade, com todos os fatores que contribuem para a sua formação de utilizador/a da língua.

Na segunda metade do século XX esta diferenciação de linguagem conduz ao aparecimento em Portugal de uma escrita feminina. Esta “tem revelado, a nível da linguagem e a muitos outros, facetas e possibilidades novas na criação literária; tem contribuído, por exemplo, para dar voz à experiência das mulheres e ao inconsciente feminino (…)”, que sabemos, ao longo dos séculos, foi emudecido pela cultura masculina dominante. (idem:10)

Isabel Allegro de Magalhães prossegue o seu raciocínio esclarecendo que esta designação de sexo dos textos lhe parece sedutora como sugestão metodológica de trabalho: “Em vez de partirmos do princípio de que as mulheres escrevem de forma diferente dos homens, partimos da identificação dos elementos, clara ou veladamente, sexuados que os textos possam conter.” (idem:11)

Allegro encontrou idiossincrasias predominantes nos textos, conforme o sexo do escritor e concluiu:” (…) é possível verificar que a escrita no feminino é, como é natural, a de autoria feminina, mesmo se alguns homens-escritores a tornam sua” (…) “Poderemos falar de um sexo dos textos, falar de tendências predominantes na escrita.” (idem: 23)

Neste livro, interessou-me a vertente crítica literária francesa (com Luce Irigaray, Hélène Cixous, Catherine Clément, Julia Kristeva), porque é essa que se aplica a MTH, por exemplo, nos contos Meninas:

Preocupam-se com a definição de uma identidade feminina e com as suas realizações simbólicas, procurando encontrar uma linguagem própria para as experiências do corpo e da intersubjectividade, deixadas mudas pela cultura dominante. Segundo a crítica francesa, as estruturas profundas das repressão feminina residem na supressão simbólica do subjetividade da mulher, do corpo e do desejo, supressão essa conseguida através do “falogocentrismo” (em nota de rodapé, expressão utilizada por Derrida (idem:19)

 

Maria Irene Ramalho de Sousa Santos e Ana Luísa Amaral, num ensaio sobre “A escrita Feminina”33, que inclui o olhar das autoras sobre o livro, escrevem:

Sendo certo que, como diz Isabel Allegro, todos os textos estão” à partida condicionados pela perspetiva masculina introduzida no código da língua”, por outra palavras, que o convencionalmente masculino tem largamente passado, na arte também, pelo neutro universal, a identificação do sexo nos textos não pode deixar de ser uma desmistificação. Ora, neste caso, teria de falar-se, não de uma poética feminina, mas de uma poética feminista. (Santos e Amaral,1990:3-4)

 

Allegro considera que, de uma maneira geral, em Portugal, não existe a prática de uma escrita feminista, salvaguardando As Novas Cartas Portuguesas, das três Marias, da qual MTH foi uma das coautoras. Mas “Poderemos falar de um sexo dos textos, falar de tendências predominantes na escrita.” (idem: 23)

Em Vozes e Olhares no feminino (Porto 2001, capital europeia da cultura) iniciativa coordenada pela catedrática Isabel Pires de Lima, encontramos um texto explicativo deste evento, por Paulo Cunha e Silva, que explica A voz do olhar, neste caso, feminino.

O olhar é aqui entendido como ponto de observação a partir do qual se constrói um mundo. O Olhar como perspetiva.” Porque, para além da discussão, que se pode tornar estéril, em torno da existência de uma identidade feminina na literatura, este livro , com autoras portuguesas, exclusivamente, tendo o ensaio, a crítica ou a teoria da literatura intersticial, por um lado , e o poder do olhar, por outro lado, pretende mostrar é a inevitabilidade dessa perspetiva dada a qualidade e quantidade das autoras portuguesas. (Cunha e Silva,2001:9)

 

Isabel Pires de Lima interpela-nos:

Mas será possível falar da existência de uma “escrita feminina” por contraposição a uma escrita masculina? De que se fala quando se fala de “escrita feminina”? Será que as mulheres e homens escrevem de maneira diferente? Será possível atribuir um sexo aos textos quando toda a arte é um complexo jogo entre rosto e máscaras? (Lima, 2001:13)

 

Considera ainda, como Nélida Pinõn, que não existe uma escrita feminina, “mas a certeza de que a escrita de autoria feminina, a voz feminina ainda é ouvida como voz segunda, como dialecto, e que precisa portanto de criar espaços e momentos para ser ouvida, mais ouvida.” (idem:14)34

Estas “Anunciações” de vários olhares/perspetivas de académicos sobre a escrita feminina, escrita no feminino e escrita feminista, cruzam-se nesta obra tríplice do feminino: a autora é uma mulher, no feminino (a narradora dá voz à mulher-Maria) e feminista (a protagonista/personagem principal luta pelo direito à liberdade de escolha insubmissa a um deus masculino).

As Anunciações são o avesso do olhar criador de Deus sobre uma mulher, Maria de Nazaré, que se tornou símbolo da obediência e do sofrimento (dá à luz um filho que vai acompanhar até à morte na Cruz-VIA CRUCIS) e projeta-se na Maria global, que um deus autoral criou, numa VIA CRUCIS, com sofrimento, da liberdade de escolha da Mulher.

O romance narra-nos uma estória de amor, nascida sem ser anunciada. Nomeados como Maria de Nazaré e Arcanjo Gabriel e protagonistas de duas estórias extraordinárias, porque em literatura tudo se transforma, o autor, ao humanizar estas personagens, anima-as dando-lhes alma e sexo.

Através do olhar de Botticelli sobre A Anunciação bíblica, tece um novo texto/testamento, dialogando com uma “verdade” ancestral, transformando-a numa “verdade” contemporânea, através do texto literário.

MTH coloca outra camada de texto sobre o texto bíblico, tecendo um novo texto que não deve ser visto como um texto encerrado, mas um movimento textual que “se travaille à travers un entrelacs perpétuel”.35

(Re)lembremos o significado de texto e autor, como o definiu Barthes:

Texte veut dire tissu; mais alors que jusqu’ici on a toujours pris ce tissu pour un produit, un voile tout fait, derrière lequel se tient, plus ou moins caché, le sens(la vérité),nous accentuons maintenant, dans le tissu, l’idée générative que le texte se fait, se travaille à travers un entrelacs perpétuel ; perdu dans ce tissu-cette texture-le sujet s’y défait, telle une araignée qui se dissoudrait-elle-même dans les sécrétions constructives de sa toile. Si nous aimions les néologismes, nous pourrions définir la théorie du texte comme une hyphologie (hyphos, c’est le tissu et la toile d’araignée) (Barthes, 1973 :100-101)

 

As palavras têm inquestionavelmente sexo/género, existe uma poética feminista, uma escrita de autoria feminina, escritas feministas e de feministas, escrita no feminino,36 mas no fim de contas, para o bom leitor e para a boa literatura, o que interessa e permanece é a qualidade do texto, independentemente do género de quem o escreve.

 

O (Re)Verso com Ações Anunciadas em Anunciações e Meninas de Maria Teresa Horta, Maria de Fátima Guedes. Universidade do Minho - Instituto de Letras e Ciências Humanas, 2019

_________________

16 Texto traduzido : Les cahiers de Science et Vie (Janvier, 2019:43)

17 O oratório ou oratória é um género de composição musical cantada e de conteúdo narrativo em que solistas, coro e orquestra intervêm, às vezes com um narrador. Semelhante à ópera quanto à estrutura, difere desta por não ser destinado à encenação.

18 Referência ao título de um folhetim radiofónico, que apaixonou Portugal em 1973.

19 Com citações do livro do Génesis e é uma espécie de abertura cósmica.

20 Tradução: amor à primeira vista.

21 Palavras proferidas na apresentação do livro.

22 Os sublinhados são nossos, exceto quando houver referência contrária.

23 Hildegarda de Bingen, também conhecida como Sibila do Reno, foi uma monja beneditina, mística, teóloga, compositora, pregadora, naturalista, médica informal, poetisa, dramaturga, escritora alemã e mestra do Mosteiro de Rupertsberg em Bingen am Rhein, na Alemanha. É uma santa e doutora da Igreja Católica

24 http://literaturaearte.blogspot.com/2016/10/maria-teresa-horta-anunciacoes.html

25Reis, Carlos,2018. Dicionário de Estudos Narrativos. Coimbra: Almedina Ação- Componente fundamental da estrutura da narrativa, a ação integra-se no domínio da história(v) e remete a diversos outros conceitos (…) O relevante papel desempenhado pela ação(…) depende na sua concretização , pelo menos de 3 componentes: um (ou mais) sujeito(s) empenhados nela, um tempo e as transformações evidenciadas pela passagem de certos estados a outros estados.

26 Frase retirada do texto de Cortez, anexo III

27 – Entrevista de Maria Luísa Malato: Qual é a função do erotismo nesta poética de intervenção? MTH:“– Exactamente a mesma função literária de tudo o mais que a minha escrita trata, conta-cria, quer enquanto poesia, quer quando a mudo em ficção. O motivo da estranheza das pessoas diante da minha escrita erótica creio advir, unicamente, do facto de em Portugal haver poucos poetas, poucos escritores do erotismo, não se encontrando entre eles nenhuma mulher. Mas não posso deixar de reconhecer que, sendo eu uma mulher dos sentidos, a minha escrita erótica é um voo de gosto e gozo, em torno das palavras do corpo.”

28 C’est l’intermittence, comme l’a bien dit la psychanalyse, qui est érotique : (…) la mise en scène d’une apparition-disparition. (Barthes,1973 :19)

29“ Eros é a virtude que leva as coisas a se juntarem, criando a vida. É uma força fundamental do mundo; assegura não somente a continuidade das espécies, como coesão interna do Cosmo“ (DICIONÁRIO DE MITOLOGIA GRECO-ROMANA, online)

30 “ Mais si l’on appelle métonymie cette translation de sens opérée d’une chaîne à l’autre, à des échelons différents de la métaphore (figure da la similarité), on reconnaîtra sans doute que l’érotisme de Bataille est essentiellement métonymique (figure de la continuité).” (Barthes,1964 :244)

Oposição estabelecida por Jakobson entre metáfora e metonímia.

31 Tradução: Se fosse possível imaginar uma estética do prazer textual, seria preciso aí incluir: a escrita em voz alta. (A escrita em voz alta) não é fonológica, mas fonética.

32 – Entrevista a Maria Luísa Malato:

Em que medida as palavras têm género? Eu não digo género gramatical, mas género poético? Há palavras femininas, a começar pela palavra “palavra”?

MTH : – Sim, as palavras e tudo o mais que diga respeito à língua e à linguagem, na escrita seja ela poética ou ficcional, têm género. Sempre defendi existir uma escrita feminina e outra masculina. Claro que as palavras têm sexo. Aliás, se tudo na vida tem sexo, porque não a escrita, porque não a poesia?

33 CES,1990. Sobre A Escrita Feminina: nº90

34 Cf introdução.

35 Curiosamente, salvaguardando as diferenças de géneros narrativos, esta dissertação foi escrita com camadas de textos, ora citados diretamente, ora parafraseados, ora assimilados e recriados.

36 “ L’écriture féminine is not necessarily writing by women; it is an avant-garde writing style like that of Joyce, Bataille.” (apud ,Showalter,Elain(1985).The New Feminist Criticism: Essays on Women, Literature and Theory: 9)

 

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Paixão. Maria Teresa Horta

 

Quem foi?
Quem urdiu e enganou
o mundo
à minha volta?

Cravou o punhal
no meu coração?
Desencadeou em mim
a dor gelada
a envenenar-me a vida

com a sua mão?

Quem matou
me apagou a felicidade?

Ao despertar
o deserto
na maior solidão?

 

“IV – Solidão”, in Paixão. Maria Teresa Horta. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2021

 


 

«É um livro de poesia. O meu marido morreu repentinamente há um ano, foi uma violência muito grande para mim. Ele é a minha paixão, ao final de 56 anos juntos. No dia seguinte ao funeral, disse para mim “vou escrever um livro e o título vai ser Paixão”. Este livro é para ele, como todos os outros que escrevi. É um livro de poesia de amor dividido em seis partes. Nunca pensei ser capaz de fazer isto. Inicialmente, a escrita deste livro ajudou-me muito. Todos os dias escrevia, escrevia e escrevia… a poesia salva. A poesia salva-me. Salvou-me várias vezes na minha vida. Mais uma vez. Nesta fase, o processo tornou-se muito mais difícil, porque eu escrevo à mão e estou a ter dificuldade em passar para a máquina porque é o tema que é… É perturbante.

Luís de Barros e Maria Teresa Horta


Foi um livro que me deixou viver e sobreviver à morte e que agora, neste momento, faz-me reviver diversos aspetos da minha vida e da perda. Não estou a reagir mal ao livro, estou a reagir mal ao assunto. Tenho hesitado muito. Sinto-me desassossegada com este livro. Escrever o livro fez-me aguentar, mas agora ter de olhar para este espelho inquieta-me.»

Maria Teresa Horta, https://ami.org.pt/blog/entrevista-a-maria-teresa-horta/, 02-12-2020

 


segunda-feira, 7 de julho de 2025

Minha Senhora de Mim, Maria Teresa Horta


 

Segredo

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça
nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa
Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço.
Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar
nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar

 

Maria Teresa Horta, Minha Senhora de Mim. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1971

 

 

Teresa acreditava que a escrita lhe pertencia por direito, mas queria fazer algo de novo. E assim surgiu Minha Senhora de Mim. Procurava outras possibilidades na escrita. E não descartava o risco de escrever algo que fosse um vendaval, uma proposta em oposição à regra. Os poemas revelam a sexualidade feminina, a mulher enquanto orientadora da acção que leva ao prazer. Mal terminou a escrita, consciente de que os poemas escritos formavam um conjunto passível de ser publicado num único volume (seria o seu nono livro de poemas), pediu a Luís de Barros: «Quero que tu leias, por favor, estamos numa altura em que as coisas estão complicadas, e quero que saibas o que sinto por ti. Ele disse: "Que parvoíce, eu amo-te. Que disparate, não preciso de ler."» E não leu.

O livro foi publicado, dedicado ao marido, e ele não leu um único poema. Não mostrou interesse e Teresa optou por não o interpelar. Trata-se de um livro que revela a paixão que Teresa então sentia, assumindo uma voz diferente, plena de desejo, de ânsia e de sonho, procurando inspiração e rasgo na poética medieval, nas canções de amor e de amigo. O livro começa com uma epígrafe de Marguerite Duras: «J'ai le temps, que c'est   long!»

 

A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, p. 206

 


 

Minha Senhora de Mim (1971) compõe-se de cinquenta e nove poemas. Neles, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais, usando a literatura canónica – e, portanto, a tradição literária – para desafiar um status quo (neste caso, o pensamento patriarcal). Ao mesmo tempo, o seu conteúdo é subvertido (viria a acontecer o mesmo com Novas Cartas Portuguesas). Nas cantigas de amigo medievais, escritas por homens, a voz era feminina e versava quase sempre o sofrimento por amor, regra geral devido à ausência do “amigo”, deixando as mulheres no estado de absoluta dependência em relação aos homens. Contudo, na obra de Maria Teresa Horta, a mulher é o centro da narrativa dos poemas, sendo ainda o centro do desejo sexual. Não raras vezes, o sujeito poético usa o modo imperativo, comanda a relação heterossexual, não só rejeita a submissão como submete.

Ana Maria Domingues de Oliveira, em Quarenta anos de Minha Senhora de Mim, fala precisamente da influência trovadoresca na obra:

Em seus 59 poemas, Minha senhora de mim propõe uma releitura do Trovadorismo português, sobretudo no que se refere às cantigas de amigo. (…) Ao tomar as cantigas de amigo a partir de uma perspectiva crítica e paródica, portanto, Maria Teresa Horta acabava por atingir de modo igualmente crítico a identidade nacional, em razão sobreposição entre os conceitos de identidade literária e identidade nacional (in Anais do XVI Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura).

Assim, ao alterar a relação entre os sexos da forma como o Estado Novo a preconizava, instalava um novo modelo de estrutura social, ou sugeria-o, desafiando a moral instituída. A moral do fascismo, ao mesmo tempo, era afrontada pela independência e pela liberdade das mulheres – estas seriam donas de si, não se confinando ao quadro de dominação em que o Estado Novo as arrumava. Assim, contra a dominação patriarcal, apresentada como prática política do regime, Maria Teresa Horta, através da produção simbólica geralmente atribuída aos homens, reclamou para si e para as outras mulheres um lugar social. Ao mesmo tempo, Minha Senhora de Mim, pelas pontes que faz, evidencia o patriarcado enquanto base da cultura ocidental. Afinal, traz para o seu tempo a Idade Média, com a tradição literária que esta acarreta, que se mostra nas cantigas.

Nos poemas de Minha Senhora de Mim, a novidade não está apenas em dar-se voz à sexualidade das mulheres, mas no tom imperativo que é usado nos poemas, pondo-se a mulher a comandar a acção, dizendo ao homem o que deve fazer para agradar-lhe. Para além disso, é a mulher quem toma a iniciativa e chega a descrever como agradar ao parceiro. O sexo torna-se numa busca pelo prazer, esvazia-se do seu carácter procriador ou, ao reclamar o prazer para a mulher, de uma relação de poder do homem sobre a mulher. Recorde-se que, à época, Portugal estava tolhido por uma moral católica: ainda que o prazer masculino fosse permitido ou socialmente aceite, o da mulher, por motivos de moral imposta ou religiosos, não o era. A vida pública regia-se pela ideia de que as mulheres deviam reger-se por um espírito de sacrifício, e que este devia verificar-se também no sexo. Por isso, a mulher devia estar subjugada. Foi contra isto que Maria Teresa Horta criou uma voz de comando feminina, uma voz que ordena e orienta. Com ela, precisa, incisiva, a procura pelo prazer sexual é clara, indisfarçada, indisfarçável.

O poema “O meu desejo” trará essa buscar de forma clara. Note-se:

Afaga devagar as minhas
pernas

Entreabre devagar os meus
joelhos

Morde devagar o que é
negado

Bebe devagar o meu
desejo

(HORTA, 1971, p. 82)

 

Aqui, revela-se aquilo a que já nos referimos previamente: a utilização do modo imperativo em prol de uma relação de forças em prol da mulher. Para além disso, a acção é explícita e, por sê-lo, rejeita o papel presumivelmente assexuado das mulheres. Já no “Poema ao desejo”, que transcreveremos de seguida, em que existe o mesmo modo imperativo, vê-se que está no cerne do poema uma relação erótica mais violenta.

Empurra a tua espada
no meu ventre
enterra-a devagar até ao cimo
que eu sinta de ti a queimadura
e a tua mordedura nos meus rins

deixa depois que a tua boca
desça
e me contorne as pernas de doçura

Ó meu amor a tua língua
prende
aquilo que desprende de loucura

(HORTA, 1971, p. 84)

A “espada” como símbolo do homem será ainda uma metáfora recorrente na poesia de Horta. Vemo-la, aliás, no poema que se intitula precisamente “Minha espada”:

Solidão de terra ferida
feita
planta ou jornada

ignorada e perdida
ou nos meus seios
entornada

Em retorno da partida
amigo de sua amada

Vazio que habito esquecida
Com meu ventre e sua espada

(HORTA, 1971, p. 24)

Aqui, o título do poema, através do pronome possessivo usado, já revela uma transgressão. O sujeito feminino, ao assumir a posse, é quem domina e manuseia, recusa a subjugação. Contudo, isto contrastará com a imagem da terra, que representa uma imagem de submissão, já que espera ser fertilizada, e cujos abandono e solidão causam sofrimento. Para além disso, a última estrofe gira em torno do símbolo fálico e a mulher é vista como um objecto, como o “repouso da espada”. Esta, entornada, por sua vez revelará o sacrifício e o sofrimento do sujeito poético.

Finalmente, cabe aqui uma referência ao poema “As nossas madrugadas”, que encontrará paralelo em textos prosaicos presentes em Novas Cartas Portuguesas:

Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

pois suspeitas

que com ele me visto e me
defendo

É a raiva
então ciúme
a tua boca

é dor e não
queixume
a tua espada

é rede a tua língua
em sua teia

é vício as palavras
com que falas

E tomas-me de força
não o sendo
e deixo que o meu ventre
se trespasse

E queres-me de amor
e dás-me o tempo

a trégua
a entrega
e o disfarce

E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes
na pressa de teres o que só sentes
e possuíres de mim o que não sabes

Despertas-me de noite
com o teu corpo

tiras-me do sono
onde resvalo

e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite

e tu dentro de mim
vais descobrindo vales

(HORTA, 1971, p. 86/87/88)

Este poema refere-se a um domínio físico, por parte do homem, que termina em violação. Na primeira estrofe, a mulher é acordada para a satisfação do homem. É o desejo dele que a desperta, indiferente ao facto de ela dormir, “vergando” o sono dela, suspeitando que é usado para defender-se dele (a contraposição de vontades e o domínio dele sobre a dela já é a violação do desejo dela). De seguida, mostra-se a condição de objecto do sujeito poético, mulher: o homem tem “pressa de ter[es] o que só sente[s]”, quer possuir dela “o que não sabe[s]”. Finalmente, descreve-se a relação sexual involuntária, mostrando-se a condição de subjugação física, emocional e psicológica a que o sujeito poético está submetido: o corpo do homem desperta-a até que ela, saindo “do sono/onde resvala [resvalo]”, repila a noite. O homem, por sua vez, terá o que almeja desde o início, ainda que contra os desejos da mulher: “vais descobrindo vales”.

Maria Teresa Horta traz, assim, para a poesia, um novo sujeito poético – só rompendo com a tradição literária podia romper-se com a condição da subjugação das mulheres, até porque a primeira compactuava com o silêncio, anulava sujeitos. Até que aquelas que pareciam trazer sujeitos novos – as cantigas de amigo – eram, na verdade, escritas por homens, e eram portanto estes quem moldava, na tradição literária, as relações afectivas e sexuais. Os poemas que compõem este livro são, portanto, veículos de actos políticos indispensáveis: afinal, eles mesmos são actos políticos, é a apropriação da linguagem que funciona como desafio ao instituído.

 

Escritoras Portuguesas e Estado Novo: as obras que a ditadura tentou apagar da vida pública, Ana Bárbara Pedrosa. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 2017, pp. 359-366

 



 

«PARA APRENDERES A NÃO ESCREVER COMO ESCREVES»

 

O rastilho deixado por Minha Senhora de Mim não se apagou depressa e causou inúmeros dissabores. Teresa vivia no bairro social do Arco do Cego, na Rua Caetano Alberto. Certa vez, saia de casa para ir ter com o marido, iam beber um copo algures – expressão usual, embora Teresa nunca bebesse álcool – depois do fecho do jornal. Era sexta-feira, o filho estava em segurança em casa dos avós paternos. Teresa atravessou a rua na direcção da estátua de José de Almeida, a fim de apanhar um táxi. Quando chegou à curva da Rua Caetano Alberto viu um carro, estacionado à sua frente, que acendeu as luzes. Teresa não lhe deu importância. O automóvel arrancou. Subitamente, em pânico, percebeu que vinha na sua direcção, que a ideia era esmagá-la contra a parede. Felizmente estava perto de um dos candeeiros de rua e conseguiu evitar o embate do carro. «Para trás eu não podia ir, não podia correr para casa, portanto tinha de andar para a frente, para a estátua, que era onde eu queria chegar, na esperança de que existisse por ali mais gente.» Teresa apressou o passo, quase a correr. Ouviu as portas do automóvel baterem, dois homens vieram na sua direcção, um outro ficou dentro do automóvel que se movia agora devagar, sempre na sua direcção. Os dois homens alcançaram-na. Deitaram-na ao chão. Teresa caiu de costas e eles ficaram em cima dela a espancá-la. Disseram-lhe: «Isto é para aprenderes a não escrever como escreves.» Pareceu-lhe que tudo aquilo durou horas, os murros, os tabefes, mas devem ter sido minutos. Cada vez que se queria levantar, batiam-lhe na cara, na cabeça. Teresa sentiu que tinha a cabeça aberta atrás e à frente, havia sangue e um prenúncio de várias dores no corpo. Um vizinho do bairro começou a subir a rua, gritou, pensava que eram ladrões. Os dois homens aperceberam-se da sua presença e entraram no automóvel. O trabalho estava feito. O vizinho gritou por ajuda. Teresa recorda-se de o ouvir dizer: «O que é isto?! Roubaram-na, roubaram-na, que horror... Está toda cheia de sangue!» O vizinho não a queria deixar sozinha. Teresa insistiu, ele que fosse a casa telefonar a Luís de Barros, receava que já tivesse saído do jornal e só queria ver o marido. Felizmente não foi o caso e Luís de Barros encontrou-se com ela já no Hospital de Santa Maria. «Ficámos convencidos, mesmo politicamente, de que eles eram legionários, a PIDE não trabalhava assim, não batia na rua. Não era o modo deles. Os legionários eram um braço fascista. Até hoje acho isto. Combinaram serem eles, saíra o livro e estavam ofendidos. Foi uma desgraça. Não fiquei deprimida, nada disso, a PIDE e os fascistas não têm esse poder sobre mim. Isso queriam eles, nem pensar.»

Teresa foi para o Hospital de Santa Maria de táxi com o vizinho. Possui uma lembrança muito vaga da viagem até lá. Fez radiografias, levou uma série de pontos na cabeça. Tinha o corpo coberto de hematomas, as pernas e os braços com escoriações. Não se recorda de chorar, nunca foi muito de chorar. «Uma escritora não tem de ser sensata nem prudente, tem de ter consciência do que se faz, mas não se autocensura.»

 

A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 219-221

 


domingo, 6 de julho de 2025

como soberbas são as manhãs, Álamo Oliveira



 como soberbas são as manhãs


josé – meu filho
nascido do feno e das vertigens
álamo da esperança platinada
cheira à resina da manhã;
tem gestos de oliveira brava
fala por búzios e por ventos
come os próprios versos com hortelã.

nasceu frio
como rebento de fim de inverno
e mora na concha da alvorada
sabe de gebas e de guerra
atira sortes ao ar
tem dedos de lã fiada.

surdo      mudo      envaidecido
josé é louco      profundo de raiz
anda      sem raiva      a lançar sementes
nas terras do seu país.

veste basalto.
usa sapatos.
aperta ideias com o cinto.
                     (até costuma passar por aqui.
                     os que o conhecem
                     sabem que não minto).

dizem que ama
                   que bebe
                           que fuma
que é vendedor de talismãs,
mas também dizem que é tão soberbo
como soberbas são as manhãs.

 

José Henrique ÁLAMO OLIVEIRA (1945-2025), Versos de todas as luas - Poesia reunida 1967-2020. Lajes do Pico, Companhia das Ilhas, 2021

 

Álamo Oliveira, por Rui Melo, 2020

 

ÁLAMO, O SEMEADOR

Aceitei com muita honra o convite que o Álamo Oliveira me fez para dizer aqui umas palavras em jeito de comemoração do seu aniversário de escritas. Não tanto pelo facto de nos conhecermos há muitos anos – o Álamo é do Raminho, eu da Serreta –, e de ao longo de todo este tempo termos vindo a cultivar uma amizade sólida, ainda que não muito frequente, mas sobretudo porque se trata de uma personalidade que traz dentro de si a nossa ilha Terceira. O que é muito, e muito complicado.

Na verdade, é quase impossível falar-se dos Açores, e da Terceira em particular, sem que por alguma razão se não refira o Sr. Álamo Oliveira, ou, mais simplesmente, «o Álamo». Porque é assim que no trato comum se designam aquelas pessoas – como acontece com Camões, Camilo, Eça, Pessoa, Nemésio ou Natália – que não necessitam de distintivos nem de nomes dobrados para serem identificadas por todos. Aqui, temos «o Álamo» – simplesmente «Álamo».

E quem é então este homem?

A condição que o identifica mais directamente é a de um escritor com dezenas de livros publicados durante 60 anos, distribuídos por poesia, teatro, romance, conto, ensaio e crítica literária. Mas, para além de escritor, Álamo também tem obra feita nas artes plásticas, que incluem exposições individuais e ilustrações e capas de livros de outros autores, na encenação teatral (foi o fundador do Grupo de Teatro Alpendre, o primeiro e durante muito tempo único grupo de teatro dos Açores com produção permanente, e seu director por muitos anos), na criação de suplementos literários e artísticos que se constituíram em espaços de discussão e de inovação, e em produções que se inscrevem na chamada «cultura popular», tendo escrito, que eu saiba, inúmeros assuntos de danças e bailinhos de carnaval, bem como letras de marchas das festas sanjoaninas.

É possível que tenha trabalhado ainda em muitas outras áreas, que até se venha a aventurar pelos libretos de ópera – sei lá! –, mas não há cabeça humana que se possa lembrar, assim de repente, da variedade e quantidade de obras que este nosso Álamo nos tem vindo a legar – à maneira de um agricultor que, pacientemente, ano após ano, quer chova ou faça sol, vai lançando as suas sementes no grande solo que é a alma da nossa gente – que delas também, avidamente, ano após ano, quer chova ou faça sol, vai colhendo as novidades que a alimentam. Sem este nosso Álamo, seríamos um povo subalimentado – e aqui faço recurso aos famosíssimos versos do poema «A Defesa do Poeta» de Natália:

Ó subalimentados do sonho!

A poesia é para comer.

De entre toda esta vastíssima produção, não sei bem qual o género ou as obras que mais prefiro – porque ele há-as para todos os gostos. Começando pela poesia, é de salientar a beleza formal dos seus poemas, a clareza dos seus versos e da linguagem que utiliza, as emoções e a sensualidade que muitos deles transportam, o ritmo encantatório dos versos frequentemente inspirado na poesia popular e, sempre constante, a manifestação do «eu» do poeta que observa, interpreta e sente para depois exprimir – assumindo-se como uma voz que nos interpreta e interpreta a identidade da ilha que todos nós trazemos dentro de nós, como ele tão bem exprimiu num dos seus primeiros livros:

ainda hoje se ouve a angústia do vento

percorrer as coordenadas do povo no mapa

(«Fábula da Ilha, Fábulas, 1974)

Ou seja, a acção do poeta que percorre a ilha e as suas gentes, as identifica e classifica, para depois delas nos falar nos seus poemas. Mas!, escrever é sempre um trabalho difícil, porque o poeta tem consciência de que tem que encontrar as palavras e as imagens certas para descrever, sem as deturpar, as realidades que observa e interpreta, sob pena de cair na vulgaridade ou no lugar-comum. E isso cria angústias.

Mas, como poeta, tanto quando se inspira nos ritmos e no vocabulário da poesia popular tradicional, como quando se situa num patamar de expressão formal mais erudita, Álamo encontra, quase sempre, as palavras certas e adequadas para nos dar as coordenadas da nossa gente e da sua identidade cultural. E, naturalmente, dele próprio e do seu pensamento – porque, muito frequentemente, toma posição sobre as realidades sociais, em praticamente todos os seus livros de poesia ou de ficção, sobre as condições de vida das pessoas, sobre a realidade política do país, e sobre o fado de ser ilhéu e as dificuldades que isso representa na vida das pessoas. E não me refiro ao ilhéu estereotipado – que é uma construção de intelectuais, baseada em lugares-comuns que nada dizem ao povo de onde foram plagiados –, mas a toda uma comunidade que, durante séculos, teve que se adaptar a um meio geográfico que tem tanto de belo como de ingrato para a sobrevivência das pessoas e para a criação de oportunidades para que elas possam ter uma vida decente.

É na ficção – contos e romances –, mas também nas crónicas, que o nosso Álamo mais se tem afirmado como uma voz próxima das pessoas de quem fala e para quem escreve.

Senhor de uma capacidade de observação e de transfiguração pela escrita, com a frontalidade e, por vezes, a ingenuidade de um escritor autodidacta que não foi contaminado pelas teorias académicas – que travam e moldam a criatividade do escritor em nome de modelos artificiais que variam consoante o tempo, os gostos e os contextos –, o nosso Álamo tem vindo a produzir alguns livros relevantes no contexto da literatura nacional, e incontornáveis no contexto da literatura de autores açorianos. Cabe aqui dizer quanto me é grato constatar que uma pequena editora açoriana, a «Companhia das Ilhas» (das Lajes do Pico), está a republicar a obra completa de Álamo Oliveira.

Ao mesmo tempo que Álamo foi, digamos, abandonando a poesia para se dedicar mais à ficção, vamos acompanhando a saída dos seus livros com uma impressionante regularidade – nos quais encontramos personagens muito bem construídas, porque autênticas, na medida em que são claramente, e sem que o autor recorra a subterfúgios ou dissimulações, inspiradas na sua própria história pessoal e nas suas experiências de vida.

Livros como «Burra Preta com uma Lágrima» (1982), «Até Hoje. Memórias de Cão» (1986), «Contos com Desconto» (1991), «Pátio d’Alfândega, Meia Noite» (1992), «Com Perfume e com Veneno» (1997), «Já não Gosto de Chocolates» (1999), «Murmúrios com vinho de Missa» (2013), «Marta de Jesus. A Verdadeira» (2014), «Contos d’América» (2020) ou «O Sábio da Miragaia» (2021) ficarão para a história como documentos autênticos de uma realidade cultural e social por onde passa a pobreza, o isolamento, o pequeno drama pessoal e familiar, a falta de oportunidades, a emigração e os consequentes desenraizamentos e depois aculturações, o conformismo atávico mas também a coragem para cortar com os condicionamentos geográficos (a emigração) e sociais (em temas como a sexualidade, por exemplo), a sensualidade natural, o vocabulário e os modos de produzir populares e tradicionais, a religiosidade e a sua subversão instintiva, o diz-que-disse tão próprio de meios pequenos e isolados em que toda a gente se conhece – enfim, uma realidade que nem a sociologia, nem a antropologia nem a história, isoladamente, algum dia conseguiriam descrever. Porque a realidade de uma ilha é todo um universo, uma espécie de microcosmos, onde ocorre de tudo o que é próprio do humano, mas em que nada pode ser entendido se não em articulação com tudo o resto – e essa realidade e essa articulação são-nos transmitidas, naturalmente na sua perspectiva e com a sua ideologia pessoais, mas sempre de um modo global e holístico, por Álamo Oliveira nos seus livros.

Poderemos, aqui e ali, achar que provavelmente a solução técnica ou artística por ele encontrada não terá sido a melhor, ou que não é como cada um de nós acha que deveria ter sido, mas acabamos por concordar que é uma solução possível, que a obra está feita e disponível, e que nos últimos tempos ninguém conseguiu fazer melhor.

De facto, no que diz respeito à vivência açoriana, e da Terceira em particular, será necessário recuar até Nemésio, e de um modo particular aos seus romances «Varanda de Pilatos» (1927) e «Mau Tempo no Canal» (1944), à novela «Negócio de Pomba» (1937), ou ao roteiro afectivo que é «Corsário das Ilhas» (1956), para encontrarmos um registo da nossa realidade tão exaustivo como aquele que Álamo Oliveira nos dá nos seus livros. E isso é obra! São autores e obras diferentes?, pois são; situam-se em patamares diferentes?, talvez: mas a isso apenas o tempo dará resposta. E o tempo em que vivemos é ainda o tempo em que Álamo Oliveira está a construir a sua obra.

Aquele que será talvez um dos seus livros mais importantes e mais conseguidos literariamente é «Até Hoje. Memórias de Cão» (1986): um romance poético e nostálgico, que aborda dois temas principais e coincidentes no tempo e no espaço: a guerra colonial (neste caso, na Guiné), que é o cenário e o contexto, e a relação amorosa entre dois soldados, que é o assunto e a acção. O tema da guerra colonial tem sido, paradoxalmente, muito pouco tratado na literatura portuguesa, salvo excepções como Carlos Vaz Ferraz («Nó Cego»), António Lobo Antubes («Os Cus de Judas») – e os nossos João de Melo («A Memória de Ver Matar e Morrer»), Martins Garcia («Lugar de Massacre») e Cristóvão de Aguiar («Braço Tatuado»); porém, neste livro, Álamo não retrata a guerra por meio de descrições e relatos de cenas militares, mas antes os comportamentos e emoções, mais o ambiente em que vivem, das personagens que são os soldados convocados – e que, mais do que estarem na guerra, o que estão é fora das suas referências culturais, ou seja, das suas zonas de conforto. Desenraizados em busca de raízes. Por outro lado, a relação amorosa entre os dois soldados que são os protagonistas da história é tratada com muita naturalidade e elegância, sem clichés nem lugares-comuns, e sobretudo sem folclorismos, de modo que aquilo que ressalta da história não é a homossexualidade das personagens (que é um acidente: eles eram eles e estavam ali, o que nos faz recordar a justificação que Michel de Montaigne, contemporâneo de Camões, deu para explicar a sua relação com Étienne de La Boétie: «porque era ele, porque era eu»…), mas a relação amorosa em si, vivida num contexto de solidão e de desadequação. Este será, muito provavelmente, um romance importante na literatura portuguesa do último quartel do século XX.

Mais recentemente, Álamo deu-nos um novo romance, em que uma vez mais se revela um escritor inovador na técnica de narração e que tem por título «O Sábio da Miragaia» (2021). Livro de memórias também, nele encontramos uma personagem enigmática, que é um homem já idoso que vai relatando a um jovem, em ambiente de conversa informal (com umas cervejas pelo meio), um conjunto de acontecimentos vividos por personagens castiças da nossa ilha e da nossa cidade, nas quais qualquer um de nós identifica tipos humanos, mas também coisas e lugares, que todos nós conhecemos. Neste sentido, este romance dá-nos um verdadeiro friso de personagens tipificadas que representam a vida de Angra do Heroísmo (que nunca é nomeada directamente) durante várias décadas, mesmo antes do 25 de Abril de 1974 – até aos actuais tempos de pandemia em que o próprio livro foi escrito. A íngreme rua da Miragaia, metonímia da ilha e da cidade, em cujas cercanias funcionavam instituições como a PIDE ou o Seminário, mas também o pequeno comércio, a prostituição, a crendice, o mexerico ou a má-língua, é uma espécie de palco por onde desfilam personagens portadoras de histórias pessoais que giram entre a comédia e o drama, entre a variedade e o crime, entre os bons comportamentos e os maus costumes, enfim, entre as representações que fazemos de nós próprios e os juízos que os outros fazem de nós. Como acontece nos nossos bailinhos de carnaval.

Sessenta anos de escrita podem ser muito tempo na vida de uma pessoa qualquer, e de um escritor em particular. No caso de Álamo Oliveira, esse tempo traduz-se numa impressionante quantidade de livros publicados e uma apreciável actividade de intervenção social e cultural, uma e outra felizmente reconhecidas pelas pessoas e instituições que têm a obrigação de valorizar os seus melhores – como acontece com a presente homenagem. E, nesse aspecto, Álamo Oliveira pode considerar-se um felizardo: poucos serão os escritores ou artistas que foram assim tão reconhecidos e valorizados em vida. Justamente.

Esse reconhecimento, mas sobretudo a obra que o justifica, são, no fim de contas, o resultado e a matéria de uma enorme pujança criativa – o que nos leva à certeza de que ainda teremos Álamo por muitos mais anos: tenhamos nós vida, saúde e arcaboiço para, entretanto, o irmos acompanhando…

Haja saúde, ó Álamo!

 

Luiz Fagundes Duarte. Texto da conferência, a pedido do autor, para a cerimónia de comemoração dos seus 60 anos de escrita. Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo, 20-06-2021. Disponibilizado por Luiz Fagundes Duarte na sua página do Facebook, em 06-07-2025

 





sábado, 5 de julho de 2025

Espelho inicial, Maria Teresa Horta

 A IDEIA DO PRIMEIRO LIVRO

 

Sentia-se livre. Embora casada, tinha a sua vida. Estava implícito que seria assim. Raul Boaventura trabalhava na SONAPE, Teresa dispunha dos seus dias. A faculdade era uma novidade e um espaço feminino. Os rapazes, quando iam para aqueles lados, sentiam-se intimidados com tantas mulheres. Teresa escrevia de lápis na mão e caderno no colo. Escrevia em qualquer lugar, mal o poema lhe acontecia. Não era uma boa dona de casa, odiava o tempo que se perdia em tarefas sem nexo. Dirá que não tem vocação para a lida da casa. O marido pouco se importava com isso. Estava apaixonado, Teresa podia tudo, não havia qualquer problema. Gostava dos poemas que ela escrevia e o orgulho neles era tanto que os levou ao seu chefe, também ele adepto das coisas escritas e da literatura. O superior hierárquico de Raul Boaventura não tinha a menor dúvida – aqueles poemas precisavam de ser publicados: «O que está a sua mulher a fazer? Devia publicar!» E perguntou: «A sua mulher não tem um poeta de quem goste»

Raul falou em António Ramos Rosa (1924-2013) e o chefe foi categórico: urgia enviar os poemas ao autor. Para ele dizer de sua justiça, para que os poemas fossem lidos por outras pessoas, pelo maior número de pessoas possível. O marido ficou orgulhoso e estupefacto. Acreditava no talento da mulher, mas não esperava tanta euforia. Aconselhou Teresa a entrar em contacto com António Ramos Rosa. À época, o poeta residia em Faro, no Algarve, na cidade onde nasceu.

Com alguma falta de jeito, Teresa dispõe-se a escrever a António Ramos Rosa, começando por pedir desculpa pelo abuso. Mandou alguns poemas e deixou o número de telefone, para contacto posterior, e pensou que o mais certo era nunca obter resposta. Por um lado, desejava saber se o que escrevia possuía algum valor. Por outro, sabia, no seu íntimo, que as suas palavras se alinhavam de forma distinta, reflexo da jovem mulher que era e de quem tinha sido na sua infância dorida. Dois dias depois de enviar a carta, o telefone tocou.

Não será de somenos afirmar que o mundo de Teresa mudou naqueles segundos em que se dirigia ao telefone preto, sossegado em cima da mesinha. Não esperava aquela chamada. Talvez tenha pensado que seria uma das irmãs, Chilinha ou Rosarinho. Corria o mês de Agosto. Estava calor e era já o meio da tarde. Estava sozinha em casa. Teresa atendeu a chamada e ouviu a pergunta e a afirmação: «Maria Teresa Horta? Aqui António Ramos Rosa.»

Podemos imaginar as suas pernas a tremer, o estômago a encolher-se, as mãos a suar. Teresa viveu o momento com uma alegria imensa. O poeta dizia-lhe que tinha obrigatoriamente de publicar e que, para mais, existia uma ressonância nos seus poemas que a aproximam de outros poetas portugueses. Havia ali um espírito, uma família, garantia-lhe. «Temos de publicar este seu livro, Teresa!» Ela agradeceu, corou, sorriu de prazer, sentiu-se afogueada de contentamento. Era o seu corpo a reagir ao imenso prazer que sentia por ouvir aquelas palavras.

Ao lado de António Ramos Rosa estava outro poeta, Gastão Cruz (1941-2022), que pedia para falar com ela e lhe disse, ao telefone: «Gosto muito dos poemas, Teresa.» Adoptaram-na à distância e, para garantir esse elo, deram-lhe o número de telefone de Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), então namorada de Gastão Cruz. Exortaram Teresa a procurá-la e, acrescentaram, era urgente encontrarem-se também com Luiza Neto Jorge (1939-1989). Todos pertenciam a uma família. Como poetas de uma geração, reconheciam-se e ressoavam uns nos outros. Gastão Cruz afirmou, ainda ao telefone: «Consigo, Teresa, isto parece um grupo. O que acha se publicarmos juntos?» Inesperadamente, Teresa era acolhida. Elogiada. Diziam-lhe que pertencia. Fizeram-na poetisa nesse mesmo instante – não para ela, mas para o mundo.

Foi invadida por uma profunda alegria. De surpresa e de confirmação. Sem demoras, telefonou a Fiama Hasse Pais Brandão. Gastão Cruz já a tinha avisado: «Temos nova poetisa.» Combinaram encontrar-se na Universidade de Lisboa, que ambas frequentavam intermitentemente. A empatia foi imediata, proporcionou-se um certo reconhecimento na outra, de quem eram e do que escreviam. Partilharam alguns poemas, reconheceram-se. Nunca mais deixariam de se dar, mesmo que a vida as afastasse, a distância física era quase nada comparada com o que as unia. Na faculdade, Fiama e Teresa tornaram-se inseparáveis. Sofriam do mesmo mal. Sempre que calhava terem um teste, um exame, fosse a que disciplina fosse, ambas tinham mostras súbitas de febre. Chegavam aos 38, 39 graus. Era o corpo a negar-se a cumprir; a cabeça a pedir outros rumos. Não eram felizes ali, queriam terminar os estudos e, ao mesmo tempo, dispensavam aquele martírio de estudar coisas pouco apelativas, porque ambas sabiam qual era o destino, não havia margem para dúvidas: escrever, descobrir-se na escrita e ensaiar o avesso da vida, através da palavra. Eram – são – poetisas. O arrastar de cadeiras e trabalhos, exames e outras agruras académicas trouxe o cansaço e ambas acabaram por abandonar a faculdade no terceiro de cinco anos de curso.

Teresa instalou-se no maravilhamento. Foram dias de um abismo consolador. Ramos Rosa tornou a falar-lhe, no sentido de organizar um livro e de o enviar para Faro. Ele trataria de tudo para o imprimir, seria mais barato do que imprimir em Lisboa. Ela assim fez. Escolheu alguns poemas, hesitou, escreveu novos poemas, fez opções e começou um processo de construção do primeiro livro que usará em todos os outros: escrita à mão, papéis acumulados, a este poema segue-se este, depois aquele. Pára, recomeça, muda de ideias. Sem hesitação, nomeou o seu primeiro livro: Espelho Inicial. Por esses dias, o pintor Manuel Baptista (1936) ainda não partira para a capital francesa, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian; encontrava-se a passar férias em Faro, a terra que também o viu crescer. António Ramos Rosa desafiou-o: «Não farias tu a capa do primeiro livro da Teresa Horta?» O futuro artista aceitou e concebeu a capa que, até aos dias de hoje, Teresa tem como a capa perfeita.

 

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António Ramos Rosa tratou de tudo, tal como disse que faria. Teresa quase deixou de respirar quando, por fim, lhe chegou a casa uma caixa com ripas de madeira, bem pregadas. Estava ali o seu primeiro livro. E ela não conseguia vê-lo, apenas vislumbrar o que lá vinha, pelas gretas da madeira. Não tinha força física para abrir a caixa e, apesar de múltiplos esforços, teve de ter ajuda para abrir a caixa e pegar no seu primeiro livro. «Deu-se tudo ao mesmo tempo, foi uma coisa das deusas, houve interferência! Foi uma coisa natural, sem entraves.»

 

A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 129-133.