AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um
fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Poesias. Fernando Pessoa. (Nota
explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942
(15ª ed. 1995). - 235.
1.ª publ. in Presença , nº
36. Coimbra: Nov. 1932.
Disponível em: http://multipessoa.net/labirinto/fernando-pessoa/1
Texto de apoio
Deve dividir-se em três
partes o pensamento contido nesta poesia.
Cada uma das suas quadras
encerra um conceito. Na primeira,
está, todavia, a premissa do pensamento extremamente importante implícito nas
três estrofes. Sendo um “fingidor”,
o poeta não finge, em verdade, a dor que não sentiu, mas, sim, a dor de que
teve experiência direta. E com isto se afasta qualquer possibilidade de
interpretação do conceito de “fingimento” inerente à génese poética de Fernando
Pessoa numa base de integral simulação de uma dor ou de uma experiência
emocional que não teve. O reconhecimento da dor – experiência emocional –
como base imprescindível da criação
poética está patente, de forma clara, nesta primeira quadra. Mas – e isso
se me afigura a essência da estética
alquímica de Pessoa – a dor que
o poeta realmente sente não é a dor que comparece, ou deve comparecer, na sua
poesia. Adverso por natureza a toda a espontaneidade […], Fernando
Pessoa […] não podia, de forma alguma, considerar poesia a passagem imediata da experiência à arte, a vivência à sua
decantação, do impuro emocional ao puro intelectual. Por isso, sobre a dor experimentada, exigia a criação de uma dor fingida.
Na mesma ordem de ideias um ator
que interpreta o papel de Otelo não deve traduzir, na expressão interpretativa
da figura que recria, os sentimentos que porventura experimentou fora do palco,
suscetíveis de se integrarem na ordem de reações de que a personagem de
Shakespeare é vítima, pois representar – a palavra o está a dizer – é tornar
objetiva, materializando-a, a paixão que desenha a psicologia da figura que se
encarna em cena. Assim, o próprio poeta, desde que se propõe escrever sobre uma
dor sentida, deve procurar
representar, materializando-a, essa dor, não nas linhas espontâneas em que ela
se lhe desenhou na sensibilidade, mas no contorno imaginado que lhe dá,
volvendo-se para si mesmo e vendo-se a si mesmo como tendo tido certa dor. É,
aliás, o processo preconizado pelo escritor clássico, o qual entende que a arte é a inteligibilização do sensível.
[…] “Finge tão completamente/
que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente” – escreve Fernando
Pessoa. E o sentido é claro – fingida a
dor em imagens sobre o modelo da dor originária, tão perfeitamente a finge
que o fingimento se lhe torna mais real que a dor fingida. De tal sorte que a
dor fingida – de fingimento que era se lhe converte em nova dor, dor imaginária cuja potencialidade de
comunicação absorve por completo o que de latente existia de dor que nela se
metamorfoseou. E, transmutação do plano
vivido ao plano imaginado – a objetivação alquímica da escória emocional no ouro
puro da representação mental – prepara a fruição impessoal das dores que a
poesia proporciona ao leitor.
E, assim, nos encontramos na segunda parte do pensamento contido em “Autopsicografia”. O leitor de um poema não entra em contacto com qualquer das duas dores que porventura o poeta exprima. A dor real, essa ficou na sua carne – na carne do poeta – não chegou à poesia. Quanto à dor representada – é óbvio que o leitor a não absorve já como dor, pois dor ela não é, uma vez que a dor é do mundo dos sentidos e a poesia é da esfera do espírito. A dor que a poesia exprime é exatamente aquela que os leitores não têm – “Mas só a que eles não têm”- pois ninguém tem, em verdade, o que a ninguém pertence, pura representação abstrata de uma dor mentalizada. Finalmente, a última parte do pensamento implícito na poesia em discussão: sendo, como é, poesia, pelo menos na conceção de Fernando Pessoa, representação mental, o coração, “esse comboio de corda” centro dos afetos tão desdenhados pelo poeta, que sempre considerou a sinceridade emocional falha de sinceridade, o coração não passa de um entretenimento da razão, girando, mecânico, pelas “calhas” fixas que é o mundo do convencionalismo emocional onde decorre a existência ordinária. […]
João Gaspar Simões, “Uma
explicação da obra de Fernando Pessoa”, in Heteropsicografia
de Fernando Pessoa, Porto, Ed. Inova, 1973
Comentário de texto
Faça um comentário global do poema “Autopsicografia”,
sem nunca perder de vista a sua contextualização na obra.
Deve, entre outros aspetos pertinentes como
os níveis fónico, morfossintático, semântico e estilístico, desenvolver, de
forma integrada, os seguintes:
- divisão do poema em partes e assunto de
cada parte;
- sentido do fingimento;
- imagens tripartidas (tipos de dor;
explicação do título);
- simbologia do número três;
- recursos estético-estilísticos;
- o conceito de poema para Fernando Pessoa
ortónimo.
Chave de correção:
Divisão
do poema em duas partes
- estrofes 1 e 2 - caracterização do poeta
como fingidor, que codifica o poema, enquanto o recetor o descodifica à sua
maneira;
- estrofe 3 - explicitação da subordinação
do sentimento à razão, através de imagens.
Sentido
do fingimento
- o ato poético apenas pode comunicar uma
dor fingida, pois a dor real (sentida) continua no sujeito, que, por palavras e
imagens, tenta uma representação;
- fingir é inventar, elaborar mentalmente
conceitos que exprimem as emoções ou o que quer comunicar.
Imagens
tripartidas
- três tipos de dor: a real ("que
deveras sente"), a fingida e a "dor lida";
- construção do título: auto/psico/grafia,
ou seja, autorretrato, da mente ou da alma ("psiqué"), através da
expressão gráfica do poema;
- a dialética das três estrofes: na 1.a,
surge a produção poética; na 2. a, dá-se a receção; na 3. a,
procura-se a reconstrução pela conciliação da oposição razão/sentimento;
- razão - coração - elaboração estética;
- o real - o mentalizado - a arte. (O poeta
parte da realidade, mas distancia-se, graças à interação entre a razão e a
sensibilidade, para elaborar mentalmente a obra de arte).
Simbologia
do número 3
- o 3 é o número da criação: 3 estrofes; 3
tipos de dor; título com 3 conceitos - auto/psico/grafia; 3 termos do
fingimento - "fingidor", "finge", "fingir";
3 componentes da criação - razão,
sentimento, fingimento (que permite a elaboração estética ao exprimir
intelectualmente as emoções);
- o 3 é o símbolo da síntese espiritual,
que soluciona o conflito gerado pelo dualismo do mundo da razão e do mundo do
sentimento. Cada uma das 3 estrofes possui quatro versos; o 4 é o símbolo da
condição humana com os seus limites naturais; mas o 4 é controlado ao
encerrar-se nas 3 estrofes. Note-se que na última estrofe há uma certa
angústia, com o coração "a entreter a razão" num movimento circular
nas "calhas da roda";
- o 3 traduz a ideia da progressão cíclica
que surge, evolui e se fecha. É símbolo da circularidade, presente também na
imagem da roda (verso 9, múltiplo de 3) que procura disciplinar o coração
("comboio de corda") para que a obra de arte se construa. Como o
próprio Pessoa afirma, em Páginas de Estética e de Teoria e Crítica
Literária, "a arte é o resultado da colaboração entre o sentir e o
pensar".
Recursos
estético-estilísticos
- metáforas (vv. 1, 3);
- imagem (na combinação das metáforas da
última quadra);
- perífrase (1.° verso da segunda estrofe);
- hipérbato (na inversão sintática na
última quadra).
O
conceito de poema para Fernando Pessoa Ortónimo
Para Fernando Pessoa ortónimo, o poema surge como um ato de fingimento, de pura elaboração estética. A criação artística implica a conceção de novas relações significativas, graças à distanciação que faz do real, o que pode ser entendido como ato de fingimento ou de mentira.
Disponível em: http://www.esa.esaportugues.com/programa/Pessoa/textosFP.htm
(consultado em 18-01-2003)
Poderá também gostar de:
Fernando Pessoa
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html