A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
22-9-1933
Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa.
(Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria
Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993). - 90.
Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2455
I - Linhas de leitura do poema “A criança que fui chora na estrada”, de Fernando Pessoa
- Na primeira estrofe, está presente a antítese passado/presente visível nas seguintes marcas textuais:
-
“A criança que fui” (passado);
-
“hoje […] o que sou é nada” (presente).
- O sujeito poético anseia por regressar à infância para preencher o nada que o habita no presente: “Quero ir buscar quem fui onde ficou.” Subentende-se que a infância é o lugar da totalidade e da unidade, já que se mostra como o momento a que o eu lírico aspira, como fuga ao vazio do presente.
- O eu lírico manifesta a incapacidade de recuperar a infância perdida (“Ah, como hei de encontrá-lo?”), estando plenamente consciente de que o seu percurso de vida foi labiríntico (“Quem errou / A vinda tem a regressão errada.”) e, como tal, no presente torna-se impossível encontrar o rumo certo. Esta desorientação conduz o sujeito lírico a uma espécie de paralisação da alma (“minha alma está parada.”).
- O sujeito lírico aposta na lembrança (“de onde possa enfim […] relembrar”) como forma de recuperar a sua imagem do passado. O poeta precisa de se elevar, de utilizar a lucidez do seu pensamento e da sua visão (“Se ao menos atingir neste lugar / Um alto monte”) para poder apreender os contornos das imagens da sua infância. Esta lembrança é o único meio possível de trazer ao presente algumas realizações positivas do passado (“E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar / Em mim um pouco de quando era assim.”)
- Em termos formais, Pessoa optou, a nível estrófico, pelo modelo do soneto (duas quadras e dois tercetos). Os versos são decassílabos, como se pode ver na escansão: “A criança que fui chora na estra/da”. A nível rimático, toda a composição apresenta versos com rima cruzada (abab / baba / cdc / dcd).
II - Questionário sobre o poema “A criança que fui chora na estrada”, de Fernando Pessoa
1.
Comprova que o sujeito poético já chegou à vida adulta.
2.
Justifica o desejo expresso no final da primeira estrofe.
3.
Explica o que o impede de concretizar esse desejo.
4.
Expõe a forma que o sujeito poético encontra para contornar essa contrariedade.
5. Faz
a análise formal do poema.
Fonte: recurso complementar do módulo de Português para o 9.º ano,
disponível em https://estudoemcasa.dge.mec.pt/2020-2021/9o/portugues/61
Poderá
também gostar de:
- Visualizar a aula da Professora Tereza Cadete Sampainho sobre "Algumas proposições com crianças", de Ruy Belo, e "A criança que fui chora na estrada", de Fernando Pessoa. In: Projeto #EstudoEmCasa, lição n.º 61 de Português – 9.º ano, 2021-06-24
Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7822/e553331/portugues-9-ano (a parte
respeitante ao poema pessoano inicia no minuto 20’ 21’’).
- Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha
de Poesia,
17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
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