quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

«Não sei. Falta-me um sentido, um tato», Fernando Pessoa


 






Não sei. Falta-me um sentido, um tato
Para a vida, para o amor, para a glória...
Para que serve qualquer história,
Ou qualquer facto?

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Estou só, só como ninguém ainda esteve,
Oco dentro de mim, sem depois nem antes.
Parece que passam sem ver-me os instantes,
Mas passam sem que o seu passo seja leve.


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Começo a ler, mas cansa-me o que inda não li.
Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.
O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
É tudo uma cousa como qualquer cousa que já vi.



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Não ser nada, ser uma figura de romance,
Sem vida, sem morte material, uma ideia,
Qualquer cousa que nada tornasse útil ou feia,
Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe.

 

Fernando Pessoa, Poesia 1902-1917, edição de Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, Lisboa, Assírio & Alvim, 2005, p. 400.

 

I - Questionário sobre o poema “Não sei. Falta-me um sentido, um tato”, de Fernando Pessoa.

1. Refira quatro traços caracterizadores do estado de espírito do sujeito poético nos versos 1 a 12.

2. Interprete o desejo expresso pelo sujeito poético na última estrofe, enquanto conclusão do poema.

3. Complete as afirmações abaixo apresentadas, selecionando a opção adequada a cada espaço.

Na folha de respostas, registe apenas as letras – a), b) e c) – e, para cada uma delas, o número que corresponde à opção selecionada em cada um dos casos.

A expressividade deste poema é construída através de diferentes processos, nomeadamente o uso de recursos expressivos e de vocábulos com determinada carga semântica. Na segunda estrofe, o sujeito poético exprime a sua perceção de que apenas existe o momento presente ao utilizar a expressão _a)_. Ainda assim, através do recurso à _b)_, nos versos 7 e 8, e à metáfora, em _c)_, evidencia ter consciência da passagem do tempo.

a)

b)

c)

1. «como ninguém ainda esteve» (v. 5)

 

1. gradação

 

1. «uma cousa como qualquer cousa que já vi» (v. 12)

2. «sem depois nem antes» (v. 6)

2. personificação

 

2. «Sem vida, sem morte material» (v. 14)

3. «passam sem ver-me os instantes» (v. 7)

3. antítese

3. «Uma sombra num chão irreal» (v. 16)

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Refere, adequadamente, quatro traços caracterizadores do estado de espírito do sujeito poético nos versos 1 a 12:

a dificuldade em explicar o que sente;

a consciência da incapacidade/inaptidão para viver a vida, o amor e a glória;

a dúvida em relação à utilidade de tudo o que acontece;

o egotismo (evidente na perceção de que a solidão que sente é mais intensa do que a de qualquer outro ser humano);

o vazio interior, como se a sua vida se resumisse ao momento presente;

a consciência dolorosa da passagem do tempo;

o tédio/o cansaço perante as coisas mais simples da vida;

a dor provocada pelo pensamento e pelo sonho.

2. Interpreta o desejo expresso pelo sujeito poético na última estrofe, enquanto conclusão do poema, abordando os dois tópicos de resposta adequadamente:

referência ao desejo de não ter existência concreta/de ser algo «irreal» como uma «figura de romance», que vive apenas nas folhas de um livro.

referência ao facto de esse desejo de «não ser nada» nascer da sua incapacidade de viver a vida real.

3. Seleciona as três opções corretas: a) 2; b) 2; c) 3.

Fonte: “Grupo I – Parte B” do Exame Final Nacional de Português n.º 639 - 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2020, Época Especial


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II – Domínio da escrita

Atente no seguinte texto escrito a propósito do verso pessoano “Não sei. Falta-me um sentido, um tato”.

Este primeiro verso de um poema de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa remete para a inadequação que algumas pessoas sentem constantemente, outras sentem em alguns momentos, e outras não chegam a sentir, e que é uma falta de tato para gerir a própria vida, para aceitá-la, tentando adequá-la aos objetivos e moldá-la como um pedaço do barro de que somos feitos.

As pessoas com este sentimento de desadequação, de falta de sentido para a vida (“oco de mim” diz o poeta) acabam, muitas vezes, por procurar aquele sentido fora delas próprias, em inebriantes e anestesiantes experiências que mais acentuam o vazio que sentem e não conseguem preencher. Tornam-se vidas, momentânea ou definitivamente, erráticas, que se desenrolam num plano paralelo ao da própria existência, assistindo a elas, como espetadores, os seus próprios autores.

Muitas vezes, este sentimento de hipersensibilidade é canalizado para a arte, para a pintura, para o cinema, para a escultura, para a música, para a escrita. E as obras artísticas, ao tentarem dar um sentido ou expressão ao Eu interior, ajudam os outros, os que verdadeiramente são espetadores, a dar sentido à própria vida.

É talvez esse um dos profundos sentidos da arte – para além do sentido primeiro: o de dar beleza à vida –, o de comunicar com outras pessoas, de lhes transmitir uma ideia (mesmo que seja a de vazio, a de inexistência de ideias), de lhes dar pistas, indicar caminhos, sugerir atalhos para compreenderem o mundo e se compreenderem a si mesmas.

E, para nos compreendermos e aceitarmos é, por vezes, necessário fazer o que Fernando Teixeira de Andrade nos sugere: abandonar “as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo” e vestir novas roupagens, que, no início, podem ser incómodas, mas, exatamente por isso, nos podem levar a questionar os nossos hábitos. Ou, como escrevia recentemente, na sua crónica no Jornal de Letras, Valter Hugo Mãe: “Viajo porque me fica a alma a meio (…). Fugir talvez tão completamente que se proporcione a oportunidade de não ser mais eu, mais outro”.

É este sentimento de falta, de que fala Pessoa, que nos leva, por vezes, a fugir, na esperança de nos tornarmos outros. Porque, efetivamente, é muito difícil compreendermo-nos a nós próprios e, mais difícil ainda, aceitarmos como nossas algumas características que não quereríamos ter.

E será que sabemos mesmo quem somos?

Maria Eugénia Leitão, “Não sei. Falta-me um sentido, um tacto” in Nascer do Sol, 2016-08-20. Disponível em: https://sol.sapo.pt/artigo/521101/-nao-sei-falta-me-um-sentido-um-tacto-

Num texto de características genológicas à sua escolha, responda à pergunta formulada no último parágrafo: “E será que sabemos mesmo quem somos?”

 


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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.



Não sei. Falta-me um sentido, um tato, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 11-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/nao-sei-falta-me-um-sentido-um-tato.html


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