Toda me entreguei, sem fim,
e de tal sorte
hei trocado,
que é meu Amado para
mim
e eu sou para meu Amado.
Teresa de Ávila
«Sobre aquelas
palavras “Dilectus meus mihi”»
in Seta de Fogo (Trad. José Bento)
[...]
nunca o desejo
foi assim,
tão vago e tão intenso.
[...]
Rainer Maria Rilke
«Anunciação – As Palavras
do Anjo»
in O Livro das Imagens
(Trad. Maria João Costa Pereira)
PRÓLOGO
PALAVRAS EXCESSIVAS
Para trás do tempo não havia tempo
nem rasto de algum assombro
só o negrume do vazio absoluto
Cousa alguma a registar o nada, sem que
desse ínfimo surgisse um luzeiro mínimo
«Então as trevas cobriam a face do abismo»
«Dissipai-vos ventos procelosos!» – gritaram
os anjos nocturnos com as suas asas de luto
limpando o firmamento dos gelos, e mais tarde
dos vulcões os cheiros de enxofre e cinza
«Quem escancarou sem medo a boca da vertigem?»
I
Assim disse Gabriel a Maria, com a expressão
da fissura de tanto olhar a desgraça no seu
destino ancestral, prisioneiro da amargura
E ela assim o escutou, fitando a farpa
da agrura das palavras excessivas, na invenção
das imagens nas quais não acredita
Antes das claridades jamais houvera
o vislumbre de qualquer vulto no espaço
Avassalamento surdo e forja de fogo urdido
entre passado e futuro a moldar
o próprio fundo, desfigurado e ardido
«Faça-se a luz; e foi feita a luz»
a dividi-la das trevas; no início alvor de nada
esvaecido e perecível
estrelas enegrecidas pelos caminhos do caos
escuridades de ameaça onde a chama é retomada
«Separe-se umas águas das outras águas»
II
Assim contou Gabriel a Maria os passos
da criação em sedução desmedida, e que no céu
se fez luz na própria luz convertida
E ela assim o escutou, duvidosa e dividida
diante do que é narrado entre os atalhos
dos astros, entregue mas tão cindida
Mas já recuam os espíritos das sombras
de desmesura aturdida, deixando ver a beleza
cintilações infinitas, esquecendo dores e mágoas
– Oh minha Estrela Polar! Diz Gabriel a Maria
por entre luas e fráguas
PRIMEIRA
ESTAÇÃO
No início
foi a luz
em torno de Maria
Dançante,
enquanto lia
MARIA
Debruçada em si mesma
no início do seu dia
Maria estava tão longe
que em si mesma se perdia
Cabelos de cor sombria
o olhar arrebatado
onde o azul tomava
o tumulto do cobalto
Inquieta e arredia
de estranheza sem saudade
de si mesma nada sabe
GABRIEL
Quando pousa
resvalando no chão as plantas
brancas e geladas dos pés
de voar
apenas se ouve
o fremir das suas asas
de bruma
Inclinada num livro
Maria mal ergue as pálpebras
de veludo
Mas ao folhear as páginas
no ardor do uso, estremecem
na pressa os seus dedos
de fuso
DESLUMBRE
Levanta os olhos
contrita
atenta à luz que a deslumbra
mas também a estonteia
partindo daquele
que no espaço vagueia,
mediador do inexplicável
– Gabriel arcanjo…
Escuta uma voz
dizer à sua beira
SOBRESSALTO
O anjo demora-se
a vê-la
reclinar as folhas
por entre florestas e clareiras
de palavras
sem reparar no desgaste das horas
– Ave Maria!
Acaba por murmurar
coração sobressaltado
a afundar-se no susto
baixando os olhos…
a custo
A VOZ
Não conhece a voz
que lhe murmura o nome
Volta-se relutante
sem querer o seu olhar
abandonar o livro
e ao encontrar o anjo
ajoelhado
à sua frente
por entre os lábios
solta-se um breve suspiro
contido na própria sombra
Julgando ouvir no ar
um arrulhar levíssimo
de pomba
a desejar enredá-la
num espaço sem limite
que ao confirmá-la
a assombra
VULNERABILIDADE
Quando ele
a olhou nos olhos
viu
a vulnerabilidade
– Cristal de rocha,
imaginou do próprio coração
ofuscado
golpeado
SUSSURRO
Tinha asas sem costura
como escreveu o poeta
Tão lívido que a Maria
se afigurou ser feito
de sussurro e de suspiro
Tão trémulo
que lhe parecia
empurrado pela aragem
Da condição da folhagem
CONTURBAÇÃO
Está à procura de quê?
Pergunta a si mesma
sem entender a enganosa luz
das asas
nas costas de Gabriel
divinas e jubilosas
com a conturbação das rosas
QUEM ÉS TU?
– Quem és tu
que entras na minha casa
e no meu sentir
sem pedires licença?
Porque te fazes acompanhar
de uma pomba
e um lírio como se fosse
um círio?
Tens o olhar quase
branco dos gamos
E uma aura
de luz
a inquietar o sonho
CORRENTEZA
– Trazes-me o voo
e prendes-me para sempre
à correnteza lívida do lírio
das penas das tuas asas
Responde àquele
que a saúda de novo
mal segredando:
– Ave Maria
cheia de graça!
SEGUNDA
ESTAÇÃO
SAUDAÇÃO A MARIA
- Saúdo-te Maria, cheia de graça!
Volta a dizer o anjo
sem respiração
olhando-a tolhido de estranheza
tão deslumbrado ao revê-la
que novamente esquece
os termos da Anunciação
como o Senhor ordenara
mas Gabriel, aturdido
ao ver Maria
não os lembra
Maria Teresa Horta, Anunciações.
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2016
Disponível em: https://static.fnac-static.com/multimedia/PT/pdf/9789722060332.pdf
 |
| "Anunciação de Cestello", de Sandro Boticelli |
Iconoclastia e mística
Maria
Teresa Horta escolheu para capa do seu livro ["Anunciações"] a
icónica "Anunciação de Cestello", de Sandro Boticelli. A capa
funciona como uma fronteira, pois mantém uma natural exterioridade em relação
ao texto, mas a verdade é que opera também como um espelho, ali colocado para
potenciar um intenso jogo de reflexos e correspondências. O poema que Maria
Teresa escolheu para a contracapa documenta amplamente esse diálogo,
construindo-se como uma leitura minuciosa da imagem de Boticelli. E é um poema
extraordinário:
É
como se nós os dois
dançássemos
o perdimento
Tu
de rojo a meus pés
e eu erguida num ímpeto
a tentar turbar o tempo
As
minhas mãos
a suster
e as tuas a empurrar
num
mesmo gesto sedento
A
entrega e a recusa
o corpo e o pensamento
Mas
há uma surpresa quando se parte deste poema para olhar a tábua pintada do
mestre italiano. Maria Teresa Horta (MTH) leva-nos a observar a coreografia dos
corpos, convergindo em particular para a altíssima tensão gráfica que se
adivinha entre as mãos de Maria e as do anjo. O que ela faz é interpretar,
dando corpo narrativo a essa tensão gráfica e tecendo uma espécie de romance.
Nesse sentido, temos de tomar como elementos imprescindíveis aqueles
introduzidos pelo título: o plural «anunciações» em vez de «anunciação»; e o
subtítulo «um romance», em jeito de declaração programática. Estamos perante
uma imagem, perante a possibilidade de um romance em torno a uma imagem e
perante uma poderosa arte poética a amalgamar tudo isso. Contudo, o poema
guarda um estratégico silêncio sobre aquele que é porventura o elemento mais
intrigante (e menos consensual) na obra de Boticelli: a inesperada sombra que o
corpo angelical possui e que se alonga dramaticamente sobre o pavimento,
acompanhando a deslocação das mãos.
Estamos
perante uma natureza angélica que rompe com o cânone das representações, uma
natureza não só não-privada de sombra, como seria de esperar, mas cuja sombra é
mesmo o signo mais avançado, prolongando-se para lá do espaço onde o corpo se
sustém. Um corpo angelical com sombra é, claramente, um corpo alterado, em
metamorfose. E de que metamorfose se trata? Aquela que sabiamente Maria Teresa
Horta depois enunciará: «Fico a ver-te.../ ganhares o corpo/ físico/ na perda
do corpo místico». A sombra é uma grafia da carnalidade, estando comummente do
lado dos corpos históricos e ausente dos espíritos puros. A esta poética,
porém, não interessa a estabilidade do binómio, mas sim a sua ambivalência, a
exploração da ambiguidade, o tracejado inaudito de uma deslocação entre corpo
físico e corpo místico, a pergunta. A surpresa é que a Boticelli também. E indo
mais longe: que à arte chamada sacra também. Porque, como explica o Mestre
Eckhart, existem dois caminhos: aquele que nos leva a renunciar completamente
às imagens (e ao romance), pois «Deus não possui imagem ou semelhança de Si
mesmo», e squele que aceita fazer o percurso das imagens, compreendendo que
isso implica aquilo que no vocabulário teológico paulino se expressa como
«quenósis», quer dizer, abaixamento, encarnação, renúncia à forma de Deus.
As Anunciações,
de Maria Teresa Horta, não são a "Anunciação" católica. O próprio
plural grafa deliberadamente um distanciamento, a que se torna necessário
atender. Sem dúvida, que a cena bíblica da anunciação ainda é reconhecível como
ponto de partida. Porém, à maneira da prodigiosa luta que Jacob travou com o
anjo, a poeta luta com aquele relato, num combate encarniçado, iconoclasta e
noturno que o expande, inverte e subverte, mas que, em certos momentos se
parece a um reencontro deslumbrado e a uma dança. Como diria outra
extraordinária voz mística da poesia portuguesa, Adília Lopes, «o iconoclasta/
reconstrói o ícone». Só que enquanto em Adília o quadro místico do mundo é
reconstruído por aquilo que a própria autora chama «o louvor do lixo», em MTH
essa possibilidade surge através do eros. Diga-se, desde já, que não está só:
esse é um caminho amplamente percorrido por exploradores do divino de todos os
tempos, e em relação ao qual o próprio cristianismo tem um património admirável.
Um importante teólogo ortodoxo, Olivier Clément, deixou escrito que «o amor
carnal permanece, juntamente com a beleza do mundo, um dos últimos caminhos do
mistério».
No
volume Anunciações, do mistério de Deus só é inteligível o que puder ser
declinado a partir do eros. Nesse sentido, um dos seus aspetos de maior impacto
é essa espécie de teologia protestativa que se vai desenvolvendo, muito à
maneira de Job, mas em vez do questionamento de Deus aparecer centrado no
enigma do sofrimento humano, aqui aparece focado em contrariar o interdito que
algumas representações de Deus lançam à erótica. De facto, a experiência do
amor que devia ser jubilatória torna-se muitas vezes, em certo discurso
religioso, um caminho crucificante, como é o da protagonista deste romance em
poemas. A própria estrutura do livro pede, por isso, para ser interpretada como
uma denúncia e um grito. Este é um livro que se abre à discussão, sem querer
apoderar-se de certeza alguma que não seja a da recuperação do amor. E a
recuperação do amor não é senão a recuperação de Deus. No fundo, a iconoclastia
e a mística têm muito a dizer e a ensinar uma à outra.
José Tolentino Mendonça, JL,
06-07-2016
Todo o amor é abolição de limites até do próprio corpo
Maria Velho da Costa
2. Anunciações (um
romance)
O movimento e o olhar entre o profano e o sagrado são contínuos ao
longo dos séculos.
Os textos apócrifos enriqueceram o culto oficial, nomeadamente a
Maria. Sem eles, Maria não ocuparia provavelmente o lugar que tem hoje no culto
cristão…São escrituras “apocryphes”(du grec apokruphos, “caché”) em que as igrejas reconheciam a verdade revelada por
Deus. A fronteira entre estes textos e os textos canónicos foi durante muito
tempo porosa. A VERDADE assumiu mil facetas e foi (re)interpretada de forma
diferente pelas diferentes religiões: ”Etimologicamente, a palavra apócrifo, de
origem grega, significa “escondido”. Antes do cânone da Bíblia ser fixado,
designava as palavras divinas escondidas, nas quais era preciso descobrir o sentido
para lá da letra/palavra. Mas desde o fim do II século, o termo vai-se aplicar
aos escritos conforme a tradição, ocultando a verdade, noutros termos:
heréticos”.16 (Les cahiers de Science et Vie, 2019:43)
Na revista francesa, de janeiro, LES CAHIERS SCIENCE
& VIE com o título de capa: “LA VÉRITÉ”/DES ÉVANGILES
APOCRYPHES AUX FAKE NEWS, podemos contextualizar o culto mariano.
Através dos vários artigos da revista tomamos consciência de que
ao longo dos séculos as “verdades”, porque não há só uma, foram sendo
manipuladas, conforme os Homens (literalmente) que as transmitiam, de acordo
com os seus olhares e interesses.
Na Idade Média em que “un flot d’images religieuses
se déverse dans les lieux de culte et les livres de prières. Illustrant des
épisodes de la Bible, le sort des âmes ou la vie des saints, elles sont toutes
encouragées para le clergé, pour diffuser la seule vérité qui vaille, celle du dogme
catholique. ” (idem :51)
A partir do século XII a imagem / o ícone/ a iconografia esteve ao
serviço da prédica religiosa que aparece como um utensílio “ outil” para a
conquista de um novo público urbano. No artigo assinado por Cristophe Migeon
intitulado: LE VOIR POUR LE CROIRE (Ver para Crer), ele afirma
que a propagação/divulgação de ideias através de imagens, tal como nos nossos dias,
ajudou/ajuda a fixar uma realidade. A imagem tornou-se o meio para a revelação
das verdades divinas anunciadas pela escritura: “L’image devient l’utile
révélation des vérités divines annoncées par l’écriture”(ibidem.)
A iconografia legitimou o prestígio da igreja e tornou-a um centro
de poder.
Um romance, subtítulo da obra, tem as características formais do rimance, o
texto bíblico da Anunciação, o quadro /imagem da representação de Botticelli e,
portanto, tem todos os elementos que a igreja utilizou para a legitimação da
palavra de Deus: a forma, o conteúdo e a imagem.
MTH produziu um livro belíssimo, olhando frontalmente e
questionando o papel da mulher no séc. XXI, que as religiões, praticadas por
Homens, foram manietando com leituras enviesadas, no passado.
A obra cumpre os conceitos inovadores supracitados e os requisitos
da oratória medievalista cristã: a forma/prédica e o tema e a imagem, para
legitimar e divulgar a palavra de Deus/deus.
Concluo, reproduzindo as palavras de Barthes, na contracapa do
livro Fragmentos de um Discurso Amoroso:
“Dois poderosos mitos fizeram-nos acreditar que o amor podia, devia sublimar-se
em criação estética: o mito socrático (amar serve para criar uma multidão de
belos e magníficos discursos) e o mito romântico (produzirei
uma obra imortal escrevendo a minha paixão) Anunciações incorpora
os dois mitos sobre o amor: o dever de sublimar e imortalizar o amor na criação
estética
2.1. Análise
da estrutura da obra: Prólogo; XIV estações; Epílogo e Post-Scriptum.
MTH conhece a tradição da simbologia de Maria, do Anjo da
Anunciação e não deseja evocar na íntegra a tradição bíblica, embora o faça às
vezes, pois é impossível apagar, culturalmente, uma realidade histórica,
religiosa e mítica (a da mulher que foi mãe e que, enquanto
mãe de Jesus, ascende aos céus, também ela ficando sentada junto ao Pai...). Fascinante,
para MTH, é o mistério que a envolve, desde que o Anjo lhe aparece e lhe fala.
Aqui, a autora deixa de parte o mais que se possa avançar, pelos relatos canónicos,
e fixa a sua meditação no mágico encontro da Mulher com o Anjo.
Na súbita aparição, que biblicamente é única, no mútuo
encantamento, MTH (o que nela seria já de esperar, devido à fisicalidade de
tudo o que escreve) corporiza o mistério, sublima-o, porque o materializa.
Humaniza o Encontro e a Revelação, impondo uma narrativa poética de romance,
daí o subtítulo.
É o romance que estrutura os poemas, o romance que se desenha no encontro
e leva a uma paixão que podia ter sido real.
O romance, ou rimance,
tem, na teoria dos géneros literários, formulações diversas: é relato de
aventuras, é narrativa que tanto pode abarcar registos em verso como em prosa,
e tem, como substrato temático e ideológico, um horizonte de expectativas que
passa pela compreensão do maravilhoso, mas também da verosimilhança, ou daquilo
que são as categorias da narrativa tratadas de forma mais ou menos conservadoras.
MTH não desconhece essa teoria dos géneros (Huerta Calvo, por exemplo,
refere-se ao romance como forma multímoda de linguagens que, do rimance
medieval às formas modernas de narrativa anula ou dilui as categorias do espaço,
do tempo e da personagem) e, na redação deste seu livro, terá tido em conta a
forma primitiva do ato de contar, originalmente em verso. (Cortez, 2016)
O índice chama a nossa atenção pela divisão em Estações e não em
capítulos, assim como o aspeto formal do texto narrativo em verso, onde cada
poema das diferentes estações tem um título indiciador do assunto e da
progressão da ação:
A organização de Anunciações não acontece
por acaso, encontrando-se dividida em 14 estações, tantas como as da Via Crucis
que o filho gerado por intervenção divina irá percorrer nas horas antes da sua
morte por crucificação. Quem percorre a Via Crucis tem direito a indulgências.”
(Silva, 2016)
O caminho de Cristo até à cruz, que a igreja católica recria na
semana santa, oferece indulgências a quem a percorre, simbolicamente.
O leitor de Anunciações vai percorrer
este caminho (esta Via Crucis) através de ações e da palavra (re) inventada dos protagonistas
(re) nomeados, sentindo o peso da condição e a libertação, no final, da mulher
escolhida: “tu és a escolhida/do senhor!” (MTH, 2016:48)
O romance Anunciações é uma oratória ao
Amor entre um homem e uma mulher, a partir da (re) criação da Anunciação
Bíblica e da (re) interpretação do quadro de Botticelli.17
As duas personagens narram, encantam(-se) e cantam um amor, ao
longo de XIV estações, uma Via Sacra, em (253) CCLIII belíssimos poemas.
Na primeira parte, observamos as personagens, a corte amorosa com
os seus enleios, os questionamentos e inseguranças, e a consumação do amor
espiritual e físico (perda de virgindade de Maria).
Segue-se o envolvimento amoroso, com a aura de pecado sempre
latente, em Gabriel, que dá origem ao seu afastamento progressivo, notoriamente
a partir da X estação.
O questionamento de Maria é (re)corrente: Oráculo?
(idem:31); Monge? (idem:46),
Poeta? (idem:52); Emissário ou Reflexo? (idem:72);
Desejado? (idem:76);
Adivinho? (idem:87);
Encantador do espaço? (idem:167);
Quem és tu? (idem:274).
Sempre coerente, a poetisa rejeita os dogmas e os mistérios
que rodeiam a figura icónica de Maria, humanizando-a e configurando-a como uma
mulher apaixonada mas racional, que critica as hesitações e medo do amado face
às ameaças divinas.
Fluindo como um rio, que nos e se vai “enchendo”/engravidando de
aprendizagens, simbolizando o crescimento e o conhecimento da mulher
independente, no reverso da estória.
Finalmente, não temos o dogma da Virgindade, da conceção e da
submissão de Maria a um Deus, mas a vontade de uma mulher que assume o amor na
sua plenitude, o filho gerado e o afastamento do amado, mantendo incólumes as
suas convicções.
O livre arbítrio desta Maria (simplesmente Maria)18 não é a
redenção de uma mulher, mas a redenção da mulher:
a erguer-se essa
palavra, MTH fá-lo agora de uma forma curiosa: Maria é a mulher – toda a mulher
– que tem direito a receber a palavra do Anjo e a fazer dessa palavra a carne
que será Jesus de Nazaré, nascido por intervenção divina), a própria estrutura do
livro (com Prólogo seguido de quatorze estações e um Epílogo) é sinal de que em
Anunciações o lírico se cruza também com o dramático, funcionando cada
"estação" como cantos de um "romance" onde se harmonizam as
vozes do anjo e de Maria. Cada canto, cada secção é, assim, o espaço da encenação,
o lugar onde se dá conta dos passos que as anunciações (e sobretudo a
anunciação poética) percorreram: da vontade transcendente de um daimon à
intuição feminina, da intermediária voz de Deus pela voz do anjo às tentações
luciferinas e indagações do próprio anjo quanto a um projeto divino a fazer-se
humano. (Cortez,2016)
A literatura, num tempo dessacralizado como o nosso, assume o
papel de transmissora das ideias pela palavra e MTH utiliza esse poder
criador/demiúrgico: “Gabriel e Maria personagens de um romance que, por isso
mesmo, pedem à fala de MTH o cuidado da encenação, fazendo do livro o palco
onde interagem e se tornam figuras que só o poeta pode ver, dado que é ele
também o recetor privilegiado das anunciações da poesia, a língua original dos
anjos.” (ibidem)
No Prólogo, o título
encaminha-nos para o poder da palavra: PALAVRAS EXCESSIVAS, onde recorrendo
a citações bíblicas, escritas entre aspas, “Gabriel contou a Maria os passos/
da criação em sedução desmedida,…”19
. (idem,2016:14)
A I estação inicia-se com a
apresentação das personagens, seguida do coup de foudre20: “Levanta os
olhos/…atenta à luz que a deslumbra (…) mas também a estonteia.” (idem:21)
MARIA
Debruçada em si mesma
no início do seu dia
Maria estava tão longe
que em si mesma se perdia
Cabelos de cor sombria
o olhar arrebatado
onde o azul tomava
o tumulto do cobalto
Inquieta e arredia
de estranheza sem saudade
de si mesma nada sabe (idem:19)
No primeiro olhar, Gabriel fica sem palavras; a custo, consegue
finalmente murmurar a saudação bíblica: “Ave Maria”. Ao longo da primeira
estação temos a gnosia do texto bíblico e a recriação/réplica da história
original, a partir da sedução e do enamoramento das personagens.
É aqui que,
segundo Tolentino, «se cala o romance tradicional e começa o romance de Maria
Teresa Horta, porque o anjo esquece a mensagem que trazia porque se enamora de
Maria e Maria enamora-se do anjo.» É esse «o grande encontro, a grande mensagem
(que) não é uma mensagem verbal mas é uma mensagem que o corpo do anjo traz ao
corpo de Maria.»21
A epígrafe da II estação, a que se segue a segunda
visitação, é uma epifania, para a compreensão da obra:
Ela será segundo a escolha
dos pintores do futuro
Com todo o fulgor
das tintas e dos imaginários
Maria, de si mesma, o contrário22
“No painel ao lado/… Gabriel inclina-se /…/ e assim a seduz” e
comunica-lhe a mensagem:” -Serás para além/da tua condição de mulher (…)
(MTH,2016:43)” e termina: “- Ó minha angelada,/tu és a escolhida/do senhor!/Eu
serei o nada”. (idem:48)
Este papel da condição da mulher “como escolhida/do
senhor”, isto é, o homem escolhe a mulher e ela submete-se ao seu senhor,
tem acompanhado a sua história até aos nossos dias, tal como foi referenciado
no início do trabalho.
III estação/ação, invocação de
Maria: ”- Ó
purpura de sangue!”
citando o verso Hildegarda de Bingen, que irá invocá-la séculos mais tarde.23
Maria interpela o Anjo: Quem és tu?
ÉS POETA?
Chegas com a aura
de um anjo
E és poeta?
Asas de perdimento
olhar de água
e tudo à tua volta
se inquieta (idem:52)
Em OLHEIRO DO SENHOR (III
estação) surge um anjo vigilante, Uriel, apontando-se já no verso algum
pecado iminente. Mas não seria preciso, pois todo o livro levanta essa suspeita
de amor, à medida que o verso corre, do sagrado para o profano. (idem: 54-55)
A linguagem é propositadamente arcaizante, por vezes, neste como
noutros poemas, recordando que de uma romanza se
trata, e não tanto de um verdadeiro romance.
É assim
a poesia de Teresa, e encontramos aqui a coerência de sempre, do seu ritmo. Um
respirar tão natural e físico como o do seu próprio corpo, sublimado. O título
recorda que estamos diante da palavra poética que é, em si mesma, a inesperada
presença de um Anjo.24
As ações
sucedem-se estação a estação, que nos informam, progressivamente, de atos, dando
ao leitor indícios para o desenlace.25
Em EMISSÁRIO OU REFLEXO e em ESPELHO interroga-se:
“Afinal o que é? Como se diz em cada último verso, de cada estrofe: reflexo?
excesso? reverso?” (idem:72). Assim, devagarinho, a autora desconstruirá o mito: o mito da
virgindade e da pureza.
O "abismo perverso" a que se alude no poema seguinte, o
do "nada absoluto/onde a luz /é o excesso"(idem:73)
já faz descer a sombra de um corpo material, na interrogação de amar e ser
amado. Não se fala de um corpo todo ele de energia subtil, mas de um corpo onde
se esconde, mal, a violência do desejo.
PRESSENTIMENTO já é tão só confirmação do que
foi dizendo atrás: pode Maria pecar contra o Senhor seu Deus?: “Podes
desejar-me/amar-me/ e obedeceres ao teu Deus?” (idem:78)
Voltamos ao "perdimento" arcaizante, porque de arcaico
mito se trata, ou de arcaico e desde sempre existente, latente, sentimento:
Que pressentimento
é este
de queda e de vulcão?
Que ambíguo perdimento
Devastado
entre amante e amado?
Entre vida e sagrado? (idem:79)
Os poemas que encerram as estações, encerram também uma ação:” “ O
anjo inclina-se/e ela fixa-o surpresa/com o livro entre as mãos” (…) “ E
devagar o seu olhar velado/ de pura turvidade /por ela própria doendo de
paixão.” (idem:82)
Os encontros acontecem com sombras e luzes, com silêncios e
palavras: “ Não é a essência/nem o divino/ que os liga e os atrai/ É sim o
equívoco” (idem: 93)
No final da V estação a indulgência é para o leitor, que
vai ler um poema belíssimo, dialogando connosco e com Botticelli: “Dança”:
“dançássemos/o perdimento” (idem:98):
Há um pormenor
arrepiante, a frieza das asas do Arcanjo, a par das declarações de amor
inesperadas por parte de Gabriel. Um momento em que qualquer um gela também
pela heresia inesperada que escuta. E a consciência da jovem seduzida, que
conclui: "Seremos a nossa condenação."
Depois, Maria escreve
poesias como as jovens apaixonadas; ele diz dela que é a sua estrela da manhã;
sentem o desejo dos lábios... A meio destas Anunciações chega a hora da grande
pergunta: "Até onde me levas?" Isso não se adianta, cabe sim ao leitor
descobrir, por entre versos com aroma de prosa. Exemplos: "uma incerta nostalgia
de pecado", "te imagino deitado ao longo dos astros".
(Silva,2016)
Se o enamoramento foi mútuo, a forma como o vão processar é
diferente em Maria e em Gabriel. Perante os obstáculos, Maria
vai interiorizando, interpelando-os, explicando-os e superando-os.
Contrariamente, Gabriel deixa influenciar-se por eles, e no final da sétima
estação e em FULGOR Maria diz: “-Seremos a nossa condenação”/ (…) “o lírio pisado/
gemia de fulgor” (idem:116)
Essa presciência da palavra de poesia participa, de resto, desse
outro jogo semiótico do livro que é a possibilidade de a voz de Maria poder ser
também a de Teresa: é bem o exemplo de como a cena bíblica é contígua à cena da
escrita: "Maria baixa os olhos/ alumbrada // e antes que Gabriel/ a beije/
fita-o por entre as pálpebras// Encadeada com as suas asas/ pergunta/ com voz
rasgada:// - Nunca me deixas? Nunca me largas? “ (idem:140)
Poemas há que são, por isso, subtis maneiras de dizer o quanto a
poesia é para MTH essa palavra de "perdimento" e
"achamento" que revela os interstícios da condição tanto mais humana
quanto mais feminina. Leia-se, como modelar exercício epifânico, POEMA
DE MARIA AO ANJO: "Procuras o sublime/ meu anjo/ voando nos céus perdido// na
desmesura dos astros/ tão longe e dividido/ em quedas em que te afastas// nesta
paixão que te arrasta/ até mim/ por entre estrelas// Enquanto eu me redescubro/
em cada beijo que é dado/ com a sede da tua língua// e o desejo dos teus
lábios// A tomar-te o corpo de anjo (em corpo humano mudado)/ com o teu gosto
de pecado". (idem:150)
A entrega é dita, num claro dizer de poesia “imperdoada” pois desflora
um espaço que era segredo, antes mesmo de ser sagrado:
ELEGIA
Sempre te esfumavas
nos meus braços
mais bruma, mais ávido
mais lívido
mais pálido
meu brevíssimo amor
imperdoado (idem:260)
Afastando os leitores do “território de louvor”, do “território
confessional” ou do “território dogmático” do romance mariano tradicional, MTH
encaminha-nos para uma via onde “a dor se experimenta: a dor do amor, a dor das
Anunciações e que permitirá a Maria escrever, de uma forma muito sua, o seu
próprio destino.”
O afastamento de Gabriel- XII e XIII estações. (idem:248-262)
Finalmente, este caminho sagrado do amor, sem indulgências nem
indulgência, caminha para um alumbriamento que em
castelhano significa nascimento, dar à luz.
Como Gabriel em TIMORATO E HESITANTE: “E
Gabriel vacila /tornando-se quase invisível// (…)Maria
conclui:” Não! (…) // _ tu não és o poeta“ (idem:226)
MTH já tinha escrito sobre Anjo da fala:
Quem é que organiza
O silêncio
Do anjo da fala?
Quando o sabre da luz
Inventa a palavra
E mesmo falando o arcanjo se cala
(MTH,2001:30)
As XIV Estações, cada qual um caminho, em que a última já
contém o destino de mãe, que será também o de Maria.
De poema em poema a Condição Feminina - Amada, Mulher, Mãe - que
MTH interpela e re(cria).
Fecha-se o ciclo com um POST-SCRIPTUM, uma CARTA A MARIA
que resume de algum modo o que não coube na poesia, embora verso a verso tudo
ficasse dito.
Há neste romance aproximações e rompimentos porque, como de uma
obra de arte se trata, traz em si as suas características:
A história da arte é
feita de rompimentos e reaproximações com estéticas anteriores; rompe-se com
algumas, dialoga-se com outras. Composições onde se evidencia a referência ao
universo trovadoresco, através do reavivamento dos seus símbolos e personagens,
versos ou expressões, que podem variar entre uma ou mais referências (incidindo
a sua manifestação no plano temático ou vocabular) (apud Cunha 2008:10)
A mulher que deveria submeter-se à vontade de Deus/do Senhor, POST-SCRIPTUM
– Carta a Maria -“Faça-se em mim a vontade do Senhor”//-não disseste.”
(MTH,2016:319). Epílogo: Onde eu mesma? Através da frase inicial, na
parte I e II na forma negativa”: Não me reconheço” finaliza a
metamorfose de Maria : “transfigurando em segredo//a mulher em mito imenso/pelo
avesso inventada” (idem:314) “Não me reconheço mais/no recuo/ao olhar-me
nesta imagem(…)” (ibidem)
2.2. O texto: a identificação dos
tipos de intertextualidade praticada.
Anunciação / intertextos
Do desvelo de Maria em Anunciação a Maria desvelada em Anunciações.
O mais destacado motivo deste romance é a Anunciação a
Maria, que se transforma em outras anunciações que vêm dar o título ao romance.
O hipertexto relata-nos uma anunciação, que se vai transformando
numa história de amor entre “Maria da Nazaré!/ Ó filha da Galileia!” (idem:209)
e o arcanjo Gabriel, nomeado, mas não chamado, como Maria.
O romance tem como intertextos basilares, o texto bíblico da
Anunciação do Anjo a Maria e a representação icónica na Anunciação de Sandro
Botticelli, analisada no ponto 1.3.
Comecemos por analisar a anunciação bíblica:
Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo,
segundo São Lucas I,26-38:
26No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado
por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, 27a uma virgem desposada com
um homem que se chamava José, da casa de Davi e o nome da virgem era Maria.
28Entrando, o anjo disse-lhe: Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo.
29Perturbou-se ela com estas palavras e pôs-se a pensar no que significaria
semelhante saudação. 30O anjo disse-lhe: Não temas, Maria, pois encontraste
graça diante de Deus. 31Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás
o nome de Jesus. 32Ele será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo, e o Senhor
Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará eternamente na casa de Jacó,
33e o seu reino não terá fim. 34Maria perguntou ao anjo: Como se fará isso,
pois não conheço homem? 35Respondeu-lhe o anjo: O Espírito Santo descerá sobre
ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso o ente santo
que nascer de ti será chamado Filho de Deus. (…). 38 Então disse Maria: Eis
aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra. E o anjo
afastou-se dela (Bíblia, obra online)
MTH marca distância desta fusão e (re) constrói a Anunciação.
Ao contrário de Rilke, que em tudo aspira à proximidade, e cada
vez maior, em fusão plena, seja do mistério de Maria, seja do mistério da rosa
(como em Dante) que nos deixou nos últimos poemas.
Ao percorrermos o romance, encontramos referências a outros
autores e à própria autora, num movimento de diálogos plurais. No romance, as
epígrafes e a convocação de outros autores, para além do episódio bíblico,
apelam a outras vozes, para falar de um assunto.
Hildegarda de Bingen: - Ó Púrpura de Sangue -”;
Tolentino: “A que distância deixaste o coração?”;
Shakespeare: ”Oh minha rosa de maio”;
MTH: ”Terão todos os anjos//o vício// da queda?”
Rilke:”- Tu és a árvore”
MTH: (…) “Eis o chumbo//na palavra iniciada//há dois
mil anos”(…)
(MTH,2016:66-102-115-189-200-235).
As epígrafes iniciais oferecem pistas que nos encaminham, tal como
o subtítulo “um romance”, para um romance de amor.
A primeira epígrafe da obra é dedicada ao marido e é uma
declaração de amor eterno. Seguem-se, na página seguinte, duas epígrafes: a
declaração de amor eterno a Deus de Teresa D’Ávila em que se transforma a
amadora na cousa amada, parafraseando Camões. Finalmente, um excerto de um
poema de Rilke, em Anunciação - As palavras do Anjo-Livro de imagens,
que fala de um desejo vago e intenso.
Para compreendermos melhor o verso e o reverso (o direito e o
avesso?) em Anunciações, procuramos ação noutros escritores citados pela
autora, como Tolentino de Mendonça e Rilke.
Anunciação
Só o ombro do anjo
permite a visão
da luz
o sinal
é na mulher o rosto
anuncia
o cortejo solene do sol
que lhe cresce
no colo
o mistério
a flor do lírio
acesa
(José Tolentino Mendonça, In "A noite abre meus olhos -
Poesia reunida” online)
Porém, será este belíssimo poema de Rilke que dialoga,
provavelmente, com o romance, em
Anunciação a Maria
Não foi a aparição de um Anjo (reconhece)
que a assustou. Nem de outros, quando
um raio de sol ou de luar à noite
os refletem no quarto desfilando,
se inquieta ela com a forma que um Anjo
possa ter assumido; mal suspeitando que
esta presença pudesse para o Anjo ser
incómoda.
(ah se soubéssemos como ela era pura.
Certa vez,
avistando uma gazela a repousar na
floresta,
de tal modo a penetrou com o seu olhar que
mesmo sem acasalamento nela se gerou o
unicórnio,
a criatura de luz, a pura criatura -).
Que ele entrasse, o Anjo, e com um rosto
de adolescente
se debruçasse e a fixasse de tal modo que
o olhar dela
e o seu se confundissem, como se de
repente lá fora
tudo se esvaziasse, e o que era visto,
procurado, levado
por milhões de homens nela se
concentrasse: só ela e ele.
Contemplação e contemplado, olhar e prazer
de ver,
em nenhum outro lugar a não ser neste -:
repara,
é assustador! E ambos se assustaram.
Foi então que o Anjo cantou a sua melodia.
Rainer Maria Rilke (obra de Rilke online)
MTH conhece o significado original de sagrado, o oposto do
profano, tal como o definiu Mircea Eliade: ”Sagrado designa algo distante e
consagrado, profano significa o que está em frente, ou fora, do templo”
e é o que a autora faz a partir do quadro de Botticelli, que à sua frente e
fora do templo deixa de ser distante e (con) sagrado, tornando-se profano na
sua representação.
No entanto, ao contrário do que seria de supor, relendo a
definição de hierofani de Mircea Eliade, não importa que este livro seja
profano, porque “algo de sagrado revela-se-nos” na homenagem a Maria-Mulher e
no caminho, Via Crucis, que o leitor teve de percorrer.
Mircea Eliade acredita que o homem adquire
o seu conhecimento do sagrado por este se manifestar como uma coisa totalmente
diferente do profano. Ele chama a isto hierofani, palavra grega que,
literalmente, significa «algo de sagrado revela-se-nos». E sendo o caso, não
importa se o sagrado se manifesta numa pedra, numa árvore ou em Jesus Cristo.
Quem quer que venere uma pedra não é à pedra em si que presta homenagem.
Adora-a por ser um hierofani, por mostrar o caminho para algo que é mais que
uma simples pedra: o sagrado.” (apud Gaarder, 2003:20)
Este
anjo rompe como Maria o molde original:
(…) assim, todo o homem que fala da ausência
do outro declara-se do lado feminino: este homem que espera e que sofre está
miraculosamente feminizado. Um homem não é feminizado por ser invertido, mas
por estar apaixonado. (Mito e utopia: a origem pertenceu, o futuro pertencerá
aos sujeitos em que existe o feminino.) (Barthes,1977:32-33)
E adquirem ambos
uma outra originalidade, transfigurada/metamorfoseada pela escrita, de um homem
e uma mulher, refletidos num espelho, que assumem e consumam a paixão onde” o
poético é o reduto do sagrado num tempo dessacralizado como é o nosso”.26
Anunciações/um romance, subtítulo da obra, dialoga/olha
em várias direções, com várias realidades intrínsecas e extrínsecas ao romance:
o rimance, o texto bíblico e a pintura de Botticelli – tem as características
formais do rimance, o texto bíblico da Anunciação, o quadro/imagem da
representação da Anunciação de Botticelli.
Este diálogo polifónico expande-se, no conteúdo, em Botticelli,
Teresa D’Ávila, MTH, Tolentino, Rilke, Dante, Shakespeare e connosco.
A propósito de “Os poetas são homens que se recusam a utilizar a
linguagem” – Sartre escreveu:
(…) O poeta desviou-se, com um único gesto,
da linguagem-instrumento; escolheu de uma vez para sempre a atitude poética que
considera as palavras como coisas e não como signos .É que a ambiguidade do
signo implica que se possa atravessá-lo à vontade como a um vidro e perseguir
através dele a coisa significada, ou voltar o olhar para a sua realidade e
considerá-lo como objeto. (Todorov,1977: 299)
Este desvio é feito por MTH no romance, atravessando como a
um vidro-espelho o episódio bíblico da Anunciação (em 25
de março) e transformando-o em Anunciações.
E MTH é uma poeta que sacraliza através da palavra poética a
dessacralização do texto bíblico:
Selo
Deixa-me selar
o livro com o teu fulgor
Maria
Resguardando
a mulher
que de ti se perdia
se não fechasse
as palavras
com a chave da poesia (idem,2016: página
sem número)
2.3. A
importância do erotismo na humanização das personagens.27
O erotismo que percorre a sua obra “começa por ser a denúncia da
repressão sexual que pesa violentamente sobre a mulher nos anos sessenta, num momento
em que é posta a nu (Reich, Marcuse) a articulação entre esta e o poder político.” (Reynaud,2001:33)
A escrita erótica de MTH é ainda sentida como uma forma de
apropriação de um discurso do prazer ou da fruição, que era pertença do território
masculino, não só dentro de uma ordem social e política discriminatória, mas
também, e sobretudo, no interior de uma ordem simbólica, onde a própria
linguagem é um instrumento de opressão. (…) A língua encarrega-se de marcar a
diferença sexual e social (idem: 34)
Mas a poesia de MTH afasta-se dos princípios definidores e
delimitadores das formas mais radicalizadas do feminismo atual:
“A sua visão de
erotismo funda-se no desejo de uma autêntica complementaridade entre a mulher e
o homem e esclarece-se , quanto a nós, à luz da tese platónica da cisão
originária dos seres em duas metades e da trajetória de cada uma delas em busca
da outra, através do amor. Daí que a sua poesia se reconheça dentro de uma belíssima
definição do erotismo dada por Bataille: “uma imensa aleluia perdida num
silêncio sem fim” (ibidem)
O Cristianismo transformou a sexualidade em símbolo do ‘amor divino’
(espiritual) que se opõe ao ‘amor profano’ (carnal). Nessa distinção revela-se
a separação entre corpo e alma, que MTH vai questionar e sublimar nesta obra.
Anunciações
eróticas? 28
O teólogo e escritor Tolentino Mendonça responde a esta pergunta
na apresentação do livro, na Livraria Leya da Buchholz, em Lisboa:
(…) a tese deste livro é, no fundo, a de
que o Eros, o encontro erótico é a verdadeira estrutura hermenêutica que nos
faz compreender o sentir.» E «calar a dimensão erótica – acrescentou – é no fundo
calar o tipo de conhecimento que nos pode mergulhar no mistério, no enigma do
homem e no mistério do próprio Deus. (…) Invocando «um grande teólogo
contemporâneo que diz que só nos restam no fundo duas coisas para nos
aproximarmos verdadeiramente de Deus: uma é a beleza do mundo e a outra é o
amor carnal», Tolentino Mendonça conclui a sua apresentação de «Anunciações»
afirmando que «Maria Teresa Horta usa de maneira esplendorosa estas duas vias –
a beleza do mundo e o amor carnal – para nos aproximar, não da resposta, porque
este é um livro que termina em aberto, que termina com as interrogações, com a
disponibilidade de Maria para pensar. Mas certamente por um caminho que é o
seu, que é de grande originalidade, este livro não deixará de ser tomado como
inspirador para todos aqueles que vivem a sua existência como um espaço de
indagação. (in Facebook da autora)
Para compreender o
erotismo, em Anunciações, convocamos ainda
o pensamento de importantes estudiosos do tema do amor, do erotismo e da
sexualidade como Octavio Paz, George Bataille, Herbert Marcuse e outros
críticos contemporâneos.29
A sexualidade é animal;
o erotismo é humano. É o fenómeno que se manifesta dentro da sociedade e que
consiste, essencialmente, em desviar ou mudar o impulso sexual reprodutor e
transformá-lo numa representação, mas é alguma coisa mais: uma purificação,
como dizia os provençais, que transforma o sujeito e o objeto do encontro
erótico em pessoas únicas. O amor é a metáfora final da sexualidade, sua pedra
de fundação é a liberdade: o mistério da pessoa” (apud Paz, 2001:97).
No amor há atração física e espiritual, portanto: “Não há amor sem
erotismo como não há erotismo sem sexualidade” (ibidem).
As visões destes temas, divergentes em muitos pontos e
convergentes em outros, mostram que são temas universais cuja discussão é
inesgotável.
A leitura do
erotismo não poderia ignorar o conflito que tem marcado a relação entre amor/sexo/erotismo,
presente no pensamento de George Bataille na década de 1950.
Bataille procura fazer a distinção entre sexo e erotismo, definindo o
segundo como uma atividade exclusivamente humana, diferenciando-o do instinto
animal. Curiosamente, Bataille dedicou uma importância muito significativa ao
olhar (veja-se Histoire
d’un oeil).30
Herbert Marcuse, por sua vez, enfatiza a questão da repressão da sociedade.
Segundo Marcuse, o erotismo seria fruto de uma sexualidade livre da alienação
que a sociedade repressiva impõe ao sujeito.
Ambos não discutem a questão do amor, tal como enfatiza Octavio
Paz. Tanto sexo como erotismo são componentes essenciais do amor. O sexo é
biológico e o erotismo é a atividade imaginativa: “O erotismo não é uma simples
imitação da sexualidade: é a sua metáfora”. (Paz s/d:26) (…) “O homem mira-se
na sexualidade. O erotismo é o reflexo do olhar humano no espelho da natureza.”
(idem:25)
(…) O desejo, a
imaginação erótica, a vidência erótica, atravessam os corpos, tornam-nos
transparentes ou reduzem-nos ao nada “…”Para além de ti, para além de mim, pelo
corpo , no corpo, nós queremos ver qualquer coisa. Esta qualquer coisa é o
fascínio erótico, o que me tira para fora de mime me leva para ti: o que me faz
ir para além de ti. Nós não sabemos de ciência certa o que é, salvo que é, qualquer
coisa que é mais. Mais do que a História, mais do que o sexo, mais do que a
vida, mais do que a morte. (idem:27)
Para ele, a ideia é cultural, portanto variável, conforme os
costumes sociais; já o sentimento amoroso é universal. (apud Saraiva 1975:23-33)
Dimensionando essas
questões na sociedade moderna, Anthony Giddens, Marilena Chauí e Jurandir
Freire Costa ampliam e localizam o tema da sexualidade e do amor, tendo como
parâmetro a perspetiva histórica e psicanalítica. Giddens enfatiza a sexualidade
como tema de debate, Chauí toma a questão da repressão e Costa retoma os
elementos que possibilitaram a criação (fabricação) no Ocidente da imagem do
amor: a retórica do amor cortês, a mística católica e o pensamento político-filosófico.
(apud Bittencout 2005:7)
A transformação – a metamorfose – que mais importa ver é a que a
palavra poética opera: o anjo humanizado – Deus em Gabriel - será corpo de
desejo que, na interação com esse "eu" feminino do enunciado, faz com
que Maria se redescubra mulher. É essa, quanto a mim, uma das dimensões mais
apelativas deste livro de MTH: “as figuras bíblicas humanizam-se, masculino
e feminino harmoniosamente se contemplam e completam.”
Os poemas são, nesse
sentido, as câmaras (as camas?) em que a ficção do encontro entre Gabriel e
Maria se erotiza, se torna carne. E é como se fosse um romance que lemos
Anunciações, até porque acedemos ao mundo interior destas personas, que, tal
qual se vê no quadro de Botticelli, no ato de falar em segredo, hesitam, desconfiam,
porque Gabriel sente nas asas o respirar de Maria, porque Maria se deixa
fascinar pelos cabelos do anjo. Erótica verbal, ainda (Cortez,2016)
E em Anunciações de que
metamorfose se trata?
Aquela que sabiamente
Maria Teresa Horta depois enunciará: «Fico a ver-te.../ ganhares o corpo/
físico/ na perda do corpo místico». A sombra é uma grafia da carnalidade,
estando comummente do lado dos corpos históricos e ausente dos espíritos puros.
A esta poética, porém, não interessa a estabilidade do binómio, mas sim a sua
ambivalência, a exploração da ambiguidade, o tracejado inaudito de uma deslocação
entre corpo físico e corpo místico, a pergunta. (Mendonça,2016)
No livro Le
plaisir du texte, o pensador francês Roland Barthes aponta a possibilidade
da estética do prazer textual: S’il était possible d’imaginer une esthétique
du plaisir textuel, il faudrait y inclure : l’écriture à haute voix (…) n’est
pas phonologique, mais phonétique (Barthes,1973 :104-105)31
E o poema narrativo de MTH inclui ainda este prazer textual,
porque convida o leitor/ator a lê-lo, em voz alta.
2.4- O SEXO DOS TEXTOS32
Sous prétexte de retenir des thèmes
exclusivement féminins, ne risquait-on de se
limiter et de ramener la femme à une physiologie,
ce qui est encore un moyen de l’enfermer et de la limiter ?
(apud DIDIER, Béatrice, L´écriture-femme,
1981:6)
Este título foi “tomado de empréstimo”, intencionalmente, ao livro
com o mesmo nome de Isabel Allegro de Magalhães.
A autora questiona na introdução ao seu livro O sexo
dos textos se poderemos dizer que os textos têm sexo e, em
caso afirmativo, o que isso poderá significar sobre a identidade dos seus
autores.
A priori só os autores têm sexo e não os textos que escrevem:
(…) se repararmos, os
textos são tecidos linguísticos e a matéria da língua-em particular das línguas
latinas, no Ocidente-é toda ela sexuada. Artigos, pronomes, algumas flexões
verbais, substantivos concretos e abstractos, adjectivos, são em grande número
marcados por um género gramatical, possuem uma forma para o
feminino e outra parta
o masculino. (Allegro,1995:9)
Seguindo o raciocínio de Allegro, certamente que se trata de uma
convenção; porém, a autora questiona como se teria formado ou determinado essa
convenção e pergunta ainda se ela não se refletirá “ como constituinte do
código simbólico que a língua é, o sexo masculino dominante, desde sempre, em
quase todas as sociedades”. (ibidem)
A linguagem escolhida e recriada por cada falante e por cada
escritor/a reflete, como a dupla adjetivação sugere, uma escolha e uma
recriação, a personalidade, com todos os fatores que contribuem para a sua
formação de utilizador/a da língua.
Na segunda metade do século XX esta diferenciação de linguagem
conduz ao aparecimento em Portugal de uma escrita feminina. Esta “tem revelado,
a nível da linguagem e a muitos outros, facetas e possibilidades novas na
criação literária; tem contribuído, por exemplo, para dar voz à experiência das
mulheres e ao inconsciente feminino (…)”, que sabemos, ao longo dos séculos,
foi emudecido pela cultura masculina dominante. (idem:10)
Isabel Allegro de Magalhães prossegue o seu raciocínio
esclarecendo que esta designação de sexo dos textos lhe parece sedutora como
sugestão metodológica de trabalho: “Em vez de partirmos do princípio de que as
mulheres escrevem de forma diferente dos homens, partimos da identificação dos
elementos, clara ou veladamente, sexuados que os textos possam conter.” (idem:11)
Allegro encontrou idiossincrasias predominantes nos textos,
conforme o sexo do escritor e concluiu:” (…) é possível verificar que a escrita
no feminino é, como é natural, a de autoria feminina, mesmo se alguns
homens-escritores a tornam sua” (…) “Poderemos falar de um sexo dos textos,
falar de tendências predominantes na escrita.” (idem: 23)
Neste livro, interessou-me a vertente crítica literária francesa
(com Luce Irigaray, Hélène Cixous, Catherine Clément, Julia Kristeva), porque é
essa que se aplica a MTH, por exemplo, nos contos Meninas:
Preocupam-se com a
definição de uma identidade feminina e com as suas realizações simbólicas,
procurando encontrar uma linguagem própria para as experiências do corpo e da
intersubjectividade, deixadas mudas pela cultura dominante. Segundo a crítica
francesa, as estruturas profundas das repressão feminina residem na supressão
simbólica do subjetividade da mulher, do corpo e do desejo, supressão essa
conseguida através do “falogocentrismo” (em nota de rodapé, expressão utilizada
por Derrida (idem:19)
Maria Irene Ramalho
de Sousa Santos e Ana Luísa Amaral, num ensaio sobre “A escrita Feminina”33,
que inclui o olhar das autoras sobre o livro, escrevem:
Sendo certo que, como
diz Isabel Allegro, todos os textos estão” à partida condicionados pela
perspetiva masculina introduzida no código da língua”, por outra palavras, que
o convencionalmente masculino tem largamente passado, na arte também, pelo
neutro universal, a identificação do sexo nos textos não pode deixar de ser uma
desmistificação. Ora, neste caso, teria de falar-se, não de uma poética feminina,
mas de uma poética feminista. (Santos e Amaral,1990:3-4)
Allegro considera que, de uma
maneira geral, em Portugal, não existe a prática de uma escrita feminista,
salvaguardando As Novas Cartas Portuguesas, das três Marias, da qual MTH
foi uma das coautoras. Mas “Poderemos falar de um sexo dos textos, falar de
tendências predominantes na escrita.” (idem: 23)
Em Vozes e Olhares no feminino (Porto
2001, capital europeia da cultura) iniciativa coordenada pela catedrática
Isabel Pires de Lima, encontramos um texto explicativo deste evento, por Paulo
Cunha e Silva, que explica A voz do olhar, neste
caso, feminino.
O olhar é aqui
entendido como ponto de observação a partir do qual se constrói um mundo. O
Olhar como perspetiva.” Porque, para além da discussão, que se pode tornar
estéril, em torno da existência de uma identidade feminina na literatura, este livro
, com autoras portuguesas, exclusivamente, tendo o ensaio, a crítica ou a
teoria da literatura intersticial, por um lado , e o poder do olhar, por outro
lado, pretende mostrar é a inevitabilidade dessa perspetiva dada a qualidade e
quantidade das autoras portuguesas. (Cunha e Silva,2001:9)
Isabel
Pires de Lima interpela-nos:
Mas será possível falar
da existência de uma “escrita feminina” por contraposição a uma escrita
masculina? De que se fala quando se fala de “escrita feminina”? Será que as
mulheres e homens escrevem de maneira diferente? Será possível atribuir um sexo
aos textos quando toda a arte é um complexo jogo entre rosto e máscaras? (Lima,
2001:13)
Considera ainda,
como Nélida Pinõn, que não existe uma escrita feminina, “mas a certeza de que a
escrita de autoria feminina, a voz feminina ainda é ouvida como voz
segunda, como dialecto, e que precisa portanto de criar espaços e momentos para
ser ouvida, mais ouvida.” (idem:14)34
Estas “Anunciações” de vários olhares/perspetivas de
académicos sobre a escrita feminina, escrita no feminino e escrita feminista,
cruzam-se nesta obra tríplice do feminino: a autora é uma mulher, no feminino
(a narradora dá voz à mulher-Maria) e feminista (a protagonista/personagem
principal luta pelo direito à liberdade de escolha insubmissa a um deus
masculino).
As Anunciações são o avesso do olhar criador de Deus sobre
uma mulher, Maria de Nazaré, que se tornou símbolo da obediência e do
sofrimento (dá à luz um filho que vai acompanhar até à morte na Cruz-VIA
CRUCIS) e projeta-se na Maria global, que um deus autoral criou, numa VIA
CRUCIS, com sofrimento, da liberdade de escolha da Mulher.
O romance narra-nos uma estória de amor, nascida sem ser
anunciada. Nomeados como Maria de Nazaré e Arcanjo Gabriel e protagonistas de
duas estórias extraordinárias, porque em literatura tudo se transforma, o autor,
ao humanizar estas personagens, anima-as dando-lhes alma e sexo.
Através do olhar de Botticelli sobre A Anunciação bíblica,
tece um novo texto/testamento, dialogando com uma “verdade” ancestral,
transformando-a numa “verdade” contemporânea, através do texto literário.
MTH coloca outra
camada de texto sobre o texto bíblico, tecendo um novo texto que não deve ser
visto como um texto encerrado, mas um movimento textual que “se travaille à
travers un entrelacs perpétuel”.35
(Re)lembremos o significado de texto e autor, como o definiu
Barthes:
Texte veut dire tissu;
mais alors que jusqu’ici on a toujours pris ce tissu pour un produit, un voile
tout fait, derrière lequel se tient, plus ou moins caché, le sens(la
vérité),nous accentuons maintenant, dans le tissu, l’idée générative que le
texte se fait, se travaille à travers un entrelacs perpétuel ; perdu dans ce
tissu-cette texture-le sujet s’y défait, telle une araignée qui se
dissoudrait-elle-même dans les sécrétions constructives de sa toile. Si nous
aimions les néologismes, nous pourrions définir la théorie du texte comme une
hyphologie (hyphos, c’est le tissu et la toile d’araignée) (Barthes, 1973
:100-101)
As palavras têm inquestionavelmente sexo/género, existe uma
poética feminista, uma escrita de autoria feminina, escritas feministas e de
feministas, escrita no feminino,36 mas no fim de contas, para o bom leitor e
para a boa literatura, o que interessa e permanece é a qualidade do texto,
independentemente do género de quem o escreve.
O
(Re)Verso com Ações Anunciadas em Anunciações e Meninas de Maria Teresa Horta,
Maria de Fátima Guedes. Universidade do Minho - Instituto de Letras e Ciências
Humanas, 2019
_________________
16 Texto traduzido : Les cahiers de Science et Vie (Janvier, 2019:43)
17 O oratório ou oratória é um
género de composição musical cantada e de conteúdo narrativo em que solistas,
coro e orquestra intervêm, às vezes com um narrador. Semelhante à ópera quanto
à estrutura, difere desta por não ser destinado à encenação.
18 Referência ao título de um
folhetim radiofónico, que apaixonou Portugal em 1973.
19 Com citações do livro do Génesis
e é uma espécie de abertura cósmica.
20 Tradução: amor à primeira vista.
21 Palavras proferidas na
apresentação do livro.
22 Os sublinhados são nossos,
exceto quando houver referência contrária.
23 Hildegarda de Bingen, também
conhecida como Sibila do Reno, foi uma monja beneditina, mística, teóloga,
compositora, pregadora, naturalista, médica informal, poetisa, dramaturga,
escritora alemã e mestra do Mosteiro de Rupertsberg em Bingen am Rhein, na
Alemanha. É uma santa e doutora da Igreja Católica
24 http://literaturaearte.blogspot.com/2016/10/maria-teresa-horta-anunciacoes.html
25Reis, Carlos,2018. Dicionário de
Estudos Narrativos. Coimbra: Almedina Ação- Componente fundamental da estrutura
da narrativa, a ação integra-se no domínio da história(v) e remete a diversos
outros conceitos (…) O relevante papel desempenhado pela ação(…) depende na sua
concretização , pelo menos de 3 componentes: um (ou mais) sujeito(s) empenhados
nela, um tempo e as transformações evidenciadas pela
passagem de certos estados a outros estados.
26 Frase retirada do texto de
Cortez, anexo III
27 – Entrevista de Maria Luísa
Malato: Qual é a função do erotismo nesta poética de intervenção? MTH:“–
Exactamente a mesma função literária de tudo o mais que a minha escrita trata,
conta-cria, quer enquanto poesia, quer quando a mudo em ficção. O motivo da
estranheza das pessoas diante da minha escrita erótica creio advir, unicamente,
do facto de em Portugal haver poucos poetas, poucos escritores do erotismo, não
se encontrando entre eles nenhuma mulher. Mas não posso deixar de reconhecer
que, sendo eu uma mulher dos sentidos, a minha escrita erótica é um voo de
gosto e gozo, em torno das palavras do corpo.”
28 C’est l’intermittence, comme l’a
bien dit la psychanalyse, qui est érotique : (…) la mise en scène d’une
apparition-disparition. (Barthes,1973 :19)
29“ Eros é a virtude que leva as
coisas a se juntarem, criando a vida. É uma força fundamental do mundo;
assegura não somente a continuidade das espécies, como coesão interna do Cosmo“
(DICIONÁRIO DE MITOLOGIA GRECO-ROMANA, online)
30 “ Mais
si l’on appelle métonymie cette translation de sens opérée d’une chaîne à
l’autre, à des échelons différents de la métaphore (figure da la similarité),
on reconnaîtra sans doute que l’érotisme de Bataille est essentiellement
métonymique (figure de la continuité).” (Barthes,1964 :244)
Oposição
estabelecida por Jakobson entre metáfora e metonímia.
31 Tradução: Se fosse possível imaginar
uma estética do prazer textual, seria preciso aí incluir: a escrita em voz
alta. (A escrita em voz alta) não é fonológica, mas fonética.
32 – Entrevista a Maria Luísa
Malato:
Em que medida as palavras têm
género? Eu não digo género gramatical, mas género poético? Há palavras
femininas, a começar pela palavra “palavra”?
MTH : – Sim, as palavras e tudo o
mais que diga respeito à língua e à linguagem, na escrita seja ela poética ou
ficcional, têm género. Sempre defendi existir uma escrita feminina e outra
masculina. Claro que as palavras têm sexo. Aliás, se tudo na vida tem sexo,
porque não a escrita, porque não a poesia?
33 CES,1990. Sobre A Escrita Feminina:
nº90
34 Cf introdução.
35 Curiosamente, salvaguardando as
diferenças de géneros narrativos, esta dissertação foi escrita com camadas de
textos, ora citados diretamente, ora parafraseados, ora assimilados e
recriados.
36 “ L’écriture féminine is not
necessarily writing by women; it is an avant-garde writing style like that of
Joyce, Bataille.” (apud ,Showalter,Elain(1985).The New Feminist
Criticism: Essays on Women, Literature and Theory: 9)