sábado, 15 de setembro de 2012

MARGARIDA CLARK DULMO (Vitorino Nemésio)

                
           
Antígona – […] Tais são os factos, e em breve mostrarás se tens carácter ou se da tua nobreza fizeste vileza. […]
Ismena – é preciso lembrarmo-nos de que nascemos para ser mulheres, e não para combater os homens; e, em seguida, que somos governadas pelos mais poderosos, de modo que nos submetemos a isso, e a coisas ainda mais dolorosas. […]
Antígona – é mais longo o tempo em que devo agradar aos que estão no além do que aos que estão aqui. É lá que ficarei para sempre; e tu, se assim te parece, desonra aquilo que para os deuses é honroso.
Ismena – Eu não faço nada que não seja honroso, mas sou incapaz de actuar contra o poder da cidade.
        
Antígona, Sófocles
(Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, Coimbra, INIC, 1984)
          
                 
                 
Para quem se preza e já não tem ilusões, [o casamento] é a grande âncora. Com o hábito e um forte sentimento como o que sinto pelo André, ser uma mulher casada é ser como um daqueles veleiros que se deixavam apodrecer meses e meses na Horta, amarrados a uma boia da Doca; ou, se quisermos puxar as comparações ao trágico: como um morto que encontra a paz e a luz perpétua numa sepultura que os seus compraram e que trazem asseadinha...
         
Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal,
Capítulo XXXVII – Epílogo (Andante; Poi Allegro, Non Troppo)
        
       
            
"Mulher a 4 chaves", João Câmara, 1971

            
            
        
MAU TEMPO NO CANAL | Vitorino Nemésio
    
Caracterização da personagem Margarida Clark-Dulmo
    
    
PERSONAGEM TRÁGICA:
Margarida Clark-Dulmo, de Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio.
     
Personagem caracterizada por um sentimento de falha, arrastando a existência em contínuos desencontros sociais e permanentes frustrações individuais, compensados por um forte desejo de fuga para a frente, gerador de novas iniciativas, rapidamente goradas. É a tragédia atual, pela qual os desencontros, os acasos, as perfídias subterrâneas, as pequeninas vaidades humanas, desembocam na mais pura e inviolável das rotinas: a anemia social, a indiferença, a passividade, o absentismo e, sobretudo, a resignação e a renúncia ao sonho. Margarida casa com André Barreto, salvando da falência e da ruína a casa dos Dulmos. Em troca, Margarida abafa os sonhos singulares de juventude, resignando-se a uma existência rotineira, parasitária, uma existência vazia. É nesta ausência de futuro ‑ que não seja o futuro do tédio ‑ que reside o elemento trágico da existência de Margarida. Neste caso, a tragédia não reside na vontade de lutar ou no desejo de desafiar, mas na sua renúncia e na consequente interiorização de um profundo luto pela vida que nunca se terá. A tragédia ‑ a pior das tragédias atuais – evidencia que, depois do seu casamento com André, Margarida não tem biografia, deixou de haver História para Margarida, estará viva para os filhos e para a sociedade e morta para si própria. Qual a diferença entre a nova existência de Margarida e a existência de Antígona entaipada?
    
Miguel Real, “Cinco personagens que gostaria de ter criado”,
http://www.portaldaliteratura.com/cronicas.php?id=71, 21-11-2011
   
    
*
     
Espantoso retrato psicológico duma mulher, a personagem que transporta esse nome é simultaneamente tão verosímil e tão diferente das outras personagens do romance que o leitor se intriga e pergunta se Margarida não é simplesmente mais uma «ilha perdida» no horizonte insular do autor. Margarida é verosímil enquanto criação psicológica, sendo, por assim dizer, a cúpula daquela veneração que Nemésio dedica quase sempre às personagens femininas que povoam a sua obra. Margarida é, no entanto, diferente de todas as outras personagens de Mau Tempo no Canal,personagens que refletem em maior ou menor grau os condicionalismos geográficos, socioeconómicos e culturais do meio que serve de pano de fundo ao romance. Margarida, porém, supera esses condicionalismos. Não é apenas uma jovem, produto duma classe e dum tempo, dotada de sensibilidade a condizer e frustrações e sonhos igualmente condizentes. É mais do que isso. É o próprio «irreal» com rosto de realidade, é apenas a verosimilhança duma personagem saída da pena dum grande escritor. Porque Margarida, em termos de «realismo» - ou seja, de qualquer adequação rigorosa entre o meio e o produto humano por ele produzido -, Margarida não existe. Isto é, existe tão pouco quanto a ilha perdida supostamente descoberta por Fernão Dulmo.
[…]
Margarida é a polarização dum desejo insaciável, criatura que o criador suscita à comparência fascinante. Se outras mulheres da Horta - «meio mesquinho», no dizer do tio Roberto Clark - perpassam com a graça um tanto superficial de seres que, para além de estagnarem, vivem num tempo de «piano e francês» (ou outra língua, dado um certo cosmopolitismo da Horta de então), Margarida não se lhes pode comparar. Escapa à superficialidade. Condescende mas não se identifica. É a «deusa» criada à altura do «deus» omnisciente que criou o livro.
Margarida Clark Dulmo, aparentemente tão real, é um ser insatisfeito e fugidio. O autor coabita com a intimidade dela. Logo no capítulo II, escreve: «Nunca tinha gostado de ninguém. Sentia não sei quê que podia muito bem sem a recordação de rapazes, mas que a presença deles tornava tão agradável dentro dela que chegava a doer-lhe o peito. O que quer que fosse não era maior com João Garcia do que com outro qualquer. Talvez nem tanto... Mas se não a pusera, por exemplo, na exaltação em que o Álvaro de Bettencourt a deixara ao ir para a África, agora apossava-se dela por uma porta que nunca se abrira em si, uma entrada secreta, sem acessos a grandes desejos de ser levada, como tinha pelo outro, mas de ser quem era e ficar fechada no quarto, com o vergão da vergasta no corpo.»
Se Gustave Flaubert proferiu a célebre declaração «Madame Bovary, c'est moi», não escandalizará supormos que Margarida Clark Dulmo é Vitorino Nemésio. É claro que o «c'est moi» de Flaubert tem de ser lido de forma restritiva: Madame Bovary é a revolta, a ânsia de evasão, a busca dum amor que ultrapasse a mesquinhez quotidiana - revolta e anseios sentidos por Flaubert. Igualmente a nossa afirmação «Margarida Clark-Dulmo é Vitorino Nemésio» deve ser entendida de forma restritiva: Margarida é o julgamento da clausura insular, o desejo de fuga, a viagem eterna ao encontro da ilha perdida – julgamento e desejos que integram o carácter de Nemésio. Repare-se, por exemplo, na enorme capacidade afetiva («chegava a doer-lhe o peito») contrariada pela impossibilidade de amar os seres na sua realidade («Nunca tinha gostado de ninguém»). Note-se ainda a contradição (se é que contradição existe) entre a fuga («desejo de ser levada») e a vontade de solidão («ficar fechada no quarto, com o vergão da vesgasta no corpo»). E não será de somenos importância essa marca da vergasta, dor e desilusão, colhida a partir da hostilidade do mundo... Também o protagonista de Varanda de Pilatos, sedento de aventuras, deseja ficar para sempre a bordo, maI o barco chega a Lisboa: «Seria aquela a toca fantasiável para viver toda a vida.»
A ilha perdida e Margarida são, para o narrador, como a relação do «mais-que-perfeito» com o «perfeito» quando essa relação se estabelece no capítulo II de Mau Tempo no Canal. Ser para além do seu acabamento, a ilha perdida é a perfeição que não pertence ao mundo material. Margarida, pelo contrário, é um passado perfeito, «acabado» - aquela construção superior que o autor traz na mente -, mulher que traz nos olhos «um não sei quê que nem parece ser deste mundo» (cap. IV). Mas esse «acabamento», ou perfeição, de Margarida coloca-a, pelo próprio excesso, acima das coisas terrenas. Na verdade, Margarida - não escapando neste aspeto à lei geral de toda a personagem - é um texto, possivelmente um texto imortal. Arrancada ao real e ao sonho, é na simbiose da vida com a morte que adquire essa extraordinária e estranha dimensão. Ela é Vitorino Nemésio a contas com o futuro da obra escrita - a contas com o espírito de Vitorino Nemésio depurado de amores passageiros, do seu amor pela ilha na sua realidade física, da sua paixão pela terra e pelas gentes; depurado do efémero para ser letra, página, poema, enredo, cântico superior à morte.
[…]
José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Lisboa, Editora Arcádia, 1978, pp. 84-87)
   
    
*
    
À complexidade humana que a transforma num ser autêntico e vivo, lutando corajosamente contra os preconceitos, em luta pela sua liberdade individual, vem Nemésio acrescentar algumas dimensões artísticas da época. Tal atitude eleva a jovem à categoria de mulher universal, tornando-a ao mesmo tempo evocadora da realidade açoriana, que ela sintetiza de forma inequívoca. Mas o autor não se contenta em dar dela a imagem verdadeira de uma mulher de fibra; associa também aspetos míticos que lhe enriquecem o perfil psicológico - a pérola que o nome «Margarida» evoca (cf.margarita, em latim) e a serpente cega do seu anel de sonhos, que se torna de tragédia quando André Barreto lhe oferece uma réplica daquele, mas com as duas esmeraldas olhando o vazio que, doravante, será a vida de Margarida, e que, num gesto de desespero, o lança ao mar quando, após o casamento, empreendem uma viagem à Europa.
Margarida fora criada num ambiente cosmopolita, onde outras jovens, tal como ela, procuravam evadir-se às opressoras convenções insulares; o esquema do estilo de vida destas moças inconformistas, desempoeiradas e desportistas, surge na crítica escandalizada de personagens como D. Carolina Amélia e Januário Garcia «…o Faial tem mudado muito; já não há aquela distinção... muitos costumes soltos! Se até já há raparigas que tomam banho com fato de malha em Porto Peru!» (cap. VI).
Margarida Dulmo é, pois, uma jovem de 20 anos; bonita, vigorosa e esclarecida, modelo das aspirações femininas da classe rica açoriana de então.
Apesar de revelar ainda alguns acessos da «soberba dos Clark» (cap. I) - por exemplo, quando em conversa clandestina com João Garcia, ele lhe fala do Praetextado, e ela se lembra que ele é homossexual -, Margarida revela por palavras e atos que não venera as figuras de parentes ancestrais, só porque pertencem à família, não revela qualquer desdém aristocrático para com membros das outras classes sociais; esboça um namoro com João Garcia cuja continuação só ele foi responsável por não se tornar uma realidade; convive alegremente com os baleeiros do Pico, usando a sua própria linguagem; tem palavras de ternura para Cândia Furôa, cuja casa visita sem preconceitos. Por outro lado, faz trabalhos caseiros que lhe não competem - no dizer da mãe e das tias -, torna-se enfermeira do criado, Manuel Bana, (cap. XXII) e ambiciona empregar-se numa clínica em Londres.
Nestas atitudes de marcado individualismo, a jovem surge-nos como uma heroína romântica. E, no entanto, há nela também características «realistas» e «simbolistas» que a tornam uma síntese da época e da própria açorianidade.
Nas suas tendências de autoafirmação e rebeldia contra as convenções familiares e sociais, o isolamento e a melancolia com que chega ao final da obra são evidentemente a sua feição romântica. Desaparecida a sua última esperança de libertação com a morte de Roberto, Margarida abandona por fim a busca do seu ideal de felicidade: o amor livremente escolhido.
E, finalmente, revela claramente a intensidade da sua tragédia pessoal, nas últimas páginas do romance (cap. XXXVII, 2ª parte). Mas as características realistas desta personagem são também visíveis na forma dramatizada como «corta» com João Garcia, como se relaciona com Roberto, como pratica desporto e faz tarefas domésticas, fazendo dela sempre uma personagem que nos parece autêntica. Há também nela uma reserva emocional de uma grande dignidade, revelada com os seus pretendentes, que a torna quase inibida; por isso, não pode perdoar ao pai, de quem se distancia pelo seu autocontrolo, os seus desmandos sexuais e alcoólicos.
Esta é uma personagem que reúne em si todas as linhas de força do romance, ao mesmo tempo que se revela como a multifacetada realidade açoriana: um solo de vulcões (como vimos no Pico); o mar real de barcos e baleias, de tempestades e bonanças; a fauna e a flora com cenas pastoris de ordenha de vacas e cavalgadas desportivas...
Talvez possamos, então, concluir que Vitorino Nemésio concentrou nela um mundo de realidades insulares e universais que simbolizam a experiência pessoal da sua própria vida.
    
Maria da Conceição Coelho e Maria Teresa Azinheira, Apontamentos Europa-América explicam Vitorino Nemésio – Mau Tempo no Canal, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1995.
    
 
   *** 
    
    Constrói-se em Mau Tempo no Canal um mundo narrativo em que se conjugam vários componentes: personagens e objetos, espaços, valores e regras sociais, leis físicas e mentalidades. É nesse universo que Margarida Clark Dulmo se destaca como uma das personagens mais marcantes de toda a literatura portuguesa.  A sua singular configuração começa quando, logo no início, o relato dá conta do namoro semiclandestino da filha dos Clark Dulmo com João Garcia, ao que se segue a violenta reação de Diogo Dulmo, que agride a filha com uma verdasca.  

As  velhas razões de família que explicam aquela reação não anulam, em Margarida, uma sensualidade  modulada por um comportamento não isento de  maturidade.  É o olhar da personagem que alcança o cenário do canal e o navio que nele se desloca; João Garcia parte no Funchal e, desse modo, acentua uma fratura que inviabiliza a união entre famílias desavindas.  A partir daqui, acedemos a linhas de leitura que propõem trajetos autónomos, mas sempre religados pela personalidade feminina que escuta, olha e vive  o espaço envolvente, dominado pelo canal.  Uma das portas de acesso à história relatada é precisamente o conflito entre as famílias, um motivo literário nunca esgotado e retomado  em contexto açoriano.  Outra via de acesso: a história de amor, num percurso que parte da relação frustrada entre Margarida e João Garcia, mas que se diversifica noutros sentidos, incluindo a ambígua atração que a jovem sente pelo tio, Roberto Clark. Terceira (e a mais significativa, neste contexto): a afirmação da protagonista que, olhando o mundo, procura compreendê-lo e conquistá-lo, como heroína rebelde e problemática.

O mau tempo que se levanta no canal é também o das tensões a que ele serve, ao mesmo tempo, de pano de fundo e de incentivo para a disputa de poderes entre duas famílias. Uma delas é a de João Garcia, a personagem que, interagindo com Margarida, não exibe a densidade nem a complexidade da jovem.  De qualquer modo, é Garcia um dos motivos que conduzem à rebelde tentativa de libertação de Margarida, contra as barreiras impostas à mulher, num cenário povoado por preconceitos e por rancores. João Garcia, de resto, não entende a linguagem de Margarida, linguagem enquanto tal, mas também na aceção de maneira de ser e de estar. Lê-se, a certa altura:  João Garcia “tomara ao pé da letra aquela primeira carta e as evasivas dela, a conversa evitada no dia do passeio a cavalo… as ausências do muro, à tarde…” (Mau Tempo no Canal; 7ª ed., Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p144).  

Se João Garcia não entende a “linguagem viva” (p. 144) de Margarida, então as distâncias que entre ambos se vão cavando  aprofundam a impossibilidade de uma  relação amorosa.  Em última análise, mais do que uma personagem recortada com a nitidez de quem contesta os condicionalismos da família (os dois clãs, o dos Clarks e Dulmos e o dos Garcias, são praticamente personagens coletivas), João Garcia parece constantemente limitado por aquilo que são, no conservador cenário açoriano, as disfuncionalidades de que ele  se apercebe. A começar pela “situação do pai: despedido da casa Clark, difamado por Diogo Dulmo e toda a família levada aos soalheiros da Horta: a mãe expulsa de casa como adúltera, o tio Ângelo um maricas, o tio Jacinto boticário de aldeia e a avó Maria Florinda ‘uma velha de xaile e lenço, amiga do escrivão Severianino’. Então nascia-se chumbado a coisas que acontecem a todos?” (p. 104).  

Carlos Reis, “40 anos, 40 personagens. Figuras femininas: do canal à lagoa”, JL, 2021-01-27



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/15/Margarida.Dulmo.aspx
Última atualização: 2021-01-30]

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

VIEMOS DE VAGAR. VIM DE VAGAR (Vitorino Nemésio)







BARCAROLA
      
Viemos de vagar. Vim de vagar.
Vinde connosco de vagar,
Que temos tempo para ir
À ida e volta, e ainda tornar.
Se de vagar se vai ao longe,
Iremos,
Bem de nosso vagar,
À ilha verde, ah... sem luar,
Aonde o cabo é de acabar,
Pois morrer sim, mas de vagar!
Vaga da vida vácua a enche
O nosso vago divagar
Como maré cheia no mar.
Vagando em voga (barca é a morte).
Vamos com ela navegar,
De nave à neve e à nova nuvem:
Caronte a anda a acastelar
Com seu terrível vagar.
Então?
Mais baixo e mais de vagar!
      
Vitorino Nemésio, Nem Toda a Noite a Vida (1953)
      
      
Vocabulário:
Barcarola: canção de barqueiros.
Vácua: vazia.
Divagar: caminhar ao acaso; vaguear; devanear (sonhar).
Caronte: figura da mitologia clássica: é o barqueiro dos Infernos, é ele quem transporta, na sua barca, as almas dos mortos, mediante o pagamento de uma moeda.
      

      
LEITURA ORIENTADA
      
A elaboração deste poema assenta em jogos de palavras, sendo o primeiro a relação de som e de grafia entre «devagar» e «de vagar».
1. Identifica outros jogos de palavras.
2. Encontra no poema exemplos de homofonia, homonímia e paronímia.
3. Procura no dicionário os diferentes significados das palavras «vaga», «vagar», «vago», «voga» «vogar».
4. O poema apresenta a viagem marítima como uma metáfora da vida humana e da morte. Concordas com esta afirmação? Justifica a tua resposta com exemplos de versos ou expressões.
         
      

CHAVE DE RESPOSTAS
       
1. Alguns exemplos de jogos de palavras constam nos versos 5, 9, 11, 12, 14, 16.
2. Homofonia: «de vagar»/[devagar]. Homonímia: «vagar»; «vagar». Paronímia: «vaga»/«vácua»; «de vagar»/«divagar»; «nave»/«neve».
3. …
4. …

Brígida Trindade, Cristina Duarte, Fátima Rodrigues, Lúcia Lemos, Madalena Dine, Português Dez. Caderno de Exercícios de português, Lisboa Editora, 2010.
    

    
SUGESTÃO
       

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/14/barcarola.aspx]

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O BICHO HARMONIOSO (Vitorino Nemésio)






O BICHO HARMONIOSO

Eu gostava de ter um alto destino de poeta,
Daqueles cuja tristeza agrava os adolescentes
E as raparigas que os leem quando eles já são tão leves
que passam a tarde numa estrela,
A força do calor na bica de uma fonte
E a noite no mar ou no risco dos pirilampos.

Assim, gloriosos mas sem porta a que se bata;
Abstratos mas vivos;
Rarefeitos mas com o hálito nebuloso nas narinas dos animais,
Insinuado nos lenços das mulheres belas, cheios de lágrimas,
Misturado às ervas grossas da chuva
E indispensável aos heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco!

Ser a vida e não ter já vida ‑ era um destino.

Depois, dar a minha Mãe a glória de me ter tido;
A meu Pai, vendado de terra, um halo da minha luz; e tocar tudo,
Onde eu houvesse estado, de uma sagração natural; ‑
Não digo como as Virgens Aparecidas,
Que tornam imbecis e radiosos os pastorinhos,
Mas como certo orvalho de que me lembro, em pequeno –
Para lá da janela a luz cortada por chuva,
E uma prima que amei, a rir, molhada, chegando;
Mar ao fundo.

Tudo isto, e vontade de dormir, também em pequenino,
E logo uma mão de mulher pronta a fingir de asa aberta,
E preguiça,
Impressão de morrer do primeiro desgosto de amor
E de ir, vogando, num negrume que afinal é toda a luz que nos fica
Desse amor forrado de desgosto,
Como as estrelas encobertas,
Que, depois de girar a nuvem, mostram como estão altas:

Tudo isto seria aquele poeta que não sou,
Feito graça e memória,
Separado de mim e do meu bafo individualmente podre,
Livre das minhas pretensões e desta noite carcomida
Pelo meu ser voraz que se explora e ilumina.

Mas não. Do canto necessário
Para me diluir em som e no ar que o guardasse
(Como o nervo do degolado alonga em tremor seu pasmo)
Não chego a soltar senão uma vaga nota,
E a noite faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos
No  meu buraco vil de bicho harmonioso.

Deixarei, estampada pelo silêncio definitivo,
A ramagem fremente dos meus dedos num pouco de terra
Estranho fóssil!
     
Vitorino Nemésio
Escrito em Boulogne-sur-Seine, Páscoa de 1935
Publicado em O Bicho Harmonioso, Coimbra, Revista de Portugal, 1938.
     
     



TEXTOS DE APOIO | LEITURA ORIENTADA
     
TEXTO 1
     
Em oito estrofes desiguais, o poema «O Bicho Harmonioso» apresenta a imagem simbólica que dá suporte ao título do livro e sugere a harmonia poética.

Começa com a expressão de um desejo de sublimidade artística: «Eu gostava de ter um alto destino de poeta.» Mas, na 6ª estrofe, o sujeito procede à autodesmistificação serena e realista do seu destino: «Mas não. Do canto necessário / Para me diluir em som e no ar que o guardasse, / Não chego a soltar senão uma vaga nota.» Em face da conformação resignada perante tal incapacidade, proclama-se o autorreconhecimento como um vil bicho harmonioso, na sua gruta sem ecos, deixando à posteridade no silêncio definitivo apenas a «ramagem fremente dos meus dedos, num pouco de terra». Apesar de harmonioso, o bicho, pelo simples facto de não ser aceite; torna-se paradoxalmente vil, um estranho fóssil. É a eterna luta entre o Poeta e o seu destinatário, indiferente à sua voz e à sua mensagem.

Ainda na 1ª e 2ª estrofes, a ironização do destino glorioso do Poeta, capaz de tocar a tristeza dos adolescentes, o sonho das raparigas e as lágrimas das mulheres, tem o sabor amargo de uma desilusão, enquanto no início da 4ª estrofe, se lamenta a impossibilidade de causar uma natural alegria aos pais, num halo de luz, como numa aparição sobrenatural. Na mesma estrofe, as imagens dessa sublimidade artística e social sugerem a sensação mítica de uma hierofania, não à semelhança das aparições das Virgens, repudiadas pelo sarcasmo («Que tornam imbecis e radiosos os pastorinhos»), mas de uma presença mágica da Natureza, em forma de orvalho, marcadamente sensual na figura amada de uma prima molhada.

A 3ª estrofe, em verso único, e a sexta exprimem o dilema entre o desejo de ser e a realidade que se é, na imagem de um cenário noturno propício à exploração de um sujeito autofágico: «Ser a vida e não ter já vida ‑ era um destino. Tudo isto seria aquele poeta que não sou, / Feito graça e memória, / Separado de mim, / Livre das minhas pretensões...» A 5ª estrofe continua a expressão desse rol de desejos não realizados, agora numa esfera acomodada de baixo voo, embalado pela inércia, ainda que do bafo morno da infância, e pela «impressão de morrer do primeiro desgosto de amor».

António Moniz, “A harmonia da Palavra”
in Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, Lisboa, Editorial Presença, 1997, pp. 72-73.
     
     



TEXTO 2
     
Num volume que reúne tantos poemas a respeito da arte da poesia, o poema que dá título ao livro aparece numa posição muito significativa. Isso porque o poema “O bicho harmonioso” (p. 129-130), o primeiro da recolha, já se inicia pela tematização do ser poeta, por meio da afirmação que constitui o verso inicial: “Eu gostava de ter um alto destino de poeta”. Esse é um poema dedicado a uma definição da arte de seu poeta, que primeiro nos mostra o que hipoteticamente gostaria de ser em poesia, para só mais tarde nos dizer o que efetivamente é, procedimento que já denota uma reflexão a respeito do assunto, uma reflexão que levou em conta não só a questão da própria escrita, mas também a leitura da obra de outros poetas.

Há um desacordo inamovível entre as conceções de poeta que aparecem em “O bicho harmonioso”, ou seja, o poeta hipotético, que talvez possamos mesmo chamar de o poeta ideal, e o poeta real. O primeiro, a quem se destinam honras que aparentemente atraem o eu-lírico, tais como a altura que seu nome alcança, representada no verso “passam a tarde numa estrela”; a influência sobre as novas gerações e as mulheres, que se vê nos versos “Daqueles cuja tristeza agrava os adolescentes / E as raparigas que os leem quando eles já são tão leves”; a alegria de retribuir com a glorificação de seu nome a vida que a mãe lhe deu — prazer que, no caso de Nemésio, significaria dar glória a Glória, já que esse era o nome de sua mãe —; a luz própria que poderia ser compartilhada com o pai, tirando-o da espécie de cegueira em que se encontra; a sagração de sua própria figura, que por seu turno sagraria tudo o que tocasse; a capacidade de voltar a um estado de eterna infância, sempre protegida, talvez a alternar com a inocência própria de uma juventude idílica mesmo em momentos de tristeza.

Mas esse primeiro poeta apresentado em “O bicho harmonioso” não foi feito para durar: ele parece ser constituído pelo mais inapreensível dos elementos, o ar, evolando assim para longe. A sua própria leveza, aludida no verso “E as raparigas que os leem quando eles já são tão leves”, anuncia isso. O mesmo acontece em outros versos que afirmam a distância que há entre esse poeta e a terra, insinuando uma sua ausência de ligação com os aspetos mais concretos, mais “pesados” da vida, como nos seguintes exemplos:

a) “Que passam a tarde numa estrela,
A força do calor na bica de uma fonte
E a noite no mar ou no risco dos pirilampos.”
     
b) “Assim, gloriosos mas sem porta a que se bata”
     
c) “Rarefeitos mas com o hálito nebuloso nas narinas dos animais”
     
d) “E indispensável aos heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco.” (indispensável, aqui, é o “hálito” citado no exemplo c)
     
e) “Ser a vida e não ter já vida — era um destino.”
     

Dada essa constituição inconsistente do “poeta ideal” é que se manifesta a passageira aparência gloriosa de seus atributos e se impõe o divórcio do poeta real com ele. Pois o poeta que Nemésio passa a descrever em seguida — e o faz com brevidade, em apenas doze versos, quando dedicara trinta e quatro ao primeiro — busca não o ar, mas a terra e por isso pode dizer do outro: “Tudo isso seria aquele poeta que não sou”.

Isso se compreende ao se notar como contrasta já o próprio ar do poeta que o eu-lírico é com o do poeta que ele sabe que não é: o seu é um “bafo individualmente podre”.

Além disso, se para aquele era possível colocar-se à margem do tempo (“Ser a vida e não ter já vida — era um destino”), para este isso não existe: o tempo é para ele uma realidade que se impõe, que o marca e que se gasta, se lhe escapa inexoravelmente: é o que se revela de maneira perfeita e angustiante nessa “noite carcomida” de que fala o verso citado no exemplo f, acima.

Também, ao contrário do outro — que não tem “porta a que se bata” —, este poeta tem seu endereço, sua morada demarcada, delimitada no mundo: o seu “buraco vil de bicho harmonioso”.

E o canto deste poeta não pode se rarefazer e vogar nos céus nem busca a influência sobre gerações e corações: é de sua natureza — “muito bem”, diz o poema em relação à violenta atitude que atribui à “noite” usando um verbo significativamente ligado ao campo semântico do conceito de “peso” e não do de “leveza” — não fazer eco:

“Mas não. Do canto necessário
Para me diluir em som e no ar que o guardasse
(...)
Não chego a soltar senão uma vaga nota,
E a noite faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos
No meu buraco vil de bicho harmonioso.”
     
A ligação com a terra é também decisiva para a definição do poeta que o eu-lírico reconhece ser. Pois é dela que ele lança mão para simbolizar a marca que sua obra pode almejar deixar para além de sua própria existência no tempo e no mundo. Ao “silêncio definitivo”, claro sinal da morte, contrapõe o poeta o desenho de seu movimento sobre a terra, que, depurado até a ossatura, poderá, quem sabe, desafiar futuros decifradores.

E o que encontrarão eles? De que matéria se faz o “fóssil” do poeta real de Nemésio?

A matéria-prima dessa poesia que se quer terrena, individual, delimitada no tempo e no espaço, é o próprio ser do poeta. Isso nos foi dito pelo eu lírico logo que o poema deixa de focalizar o poeta do “gostava” para atentar no poeta do “sou”, quando vemos que a noite em que vive o eu-lírico é “carcomida”, é gasta “Pelo meu ser voraz que se explora e ilumina”.

Temos no poema “O bicho harmonioso”, portanto uma poderosa definição da arte poética de Vitorino Nemésio: uma poética do conhecimento, da pesquisa, da exploração dos meandros do ser. Uma poética, no seu caso particular, que se quer marcadamente plantada no corpo da terra e no colo do tempo, individual, concreta, pesada, vorazmente indo até as profundezas. Essa é uma definição da poesia praticada por Nemésio ao longo de sua carreira e registrada também na teoria do “Prefácio: da Poesia”, em que apresenta o poeta como um pesquisador do real:

“(...) a poesia irmana-se à metafísica e à mística. Poetas e filósofos falam fundamentalmente do mesmo; e Platão, que desconfiava dos poetas, deu-lhes afinal o ponto de partida noético para uma poesia do Ser. Nem o privilégio do conceito, como órgão do conhecimento, chega a dar ao filósofo o exclusivo do acerto na interrogação do mundo. A reminiscência platónica autoriza por igual uma especulação pelo juízo e outra pela imagem e a alusão. O universo inteligível é tão conceptual como alegórico. Na própria perspetiva platónica o mundo das ideias se converte na alegoria de uma ordem superior de que o homem fosse degradado e de que conservasse virtualmente os lineamentos da figura que tem de reconstruir. Assim de um mito comum nascem as duas estirpes de pesquisadores do real: poetas e metafísicos.” (NEMÉSIO, V. - Obras completas. Vol. I e II - Poesia. Lisboa, INCM, 1989, p. 705-706)
     
“A obra poética de Vitorino Nemésio”, Carlos Francisco de Morais,
Todas as Musas, ISSN 2175-1277, Ano 01, Número 02, Janeiro-Julho de 2010, pp. 189-192. Disponível em
http://www.todasasmusas.org/02Carlos_Francisco.pdf
    

the hangover

    
SUGESTÃO
      

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quarta-feira, 12 de setembro de 2012

CORRESPONDÊNCIA AO MAR (Vitorino Nemésio)







CORRESPONDÊNCIA AO MAR


Quando penso no mar
A linha do horizonte é um fio de asas
E o corpo das águas é luar,

De puro esforço, as velas são memória
E o porto e as casas
Uma ruga de areia transitória.

Sinto a terra na força dos meus pulsos:
O mais é mar, que o remo indica,
E o bombeado do céu cheio de astros avulsos.

Eu, ali, uma coisa imaginada
Que o Eterno pica,
Vou na onda, de tempo carregada,

E desenrolo...
Sou movimento e terra delineada,
Impulso e sal de pólo a pólo.

Quando penso no mar, o mar regressa
A certa forma que só teve em mim ‑
Que onde acaba, o coração começa.

Começa pelo aro das estrelas
A compasso retido em mente pura
E avivado nos vidros das janelas.

Começa pelo peito das baías
A rosar-se e crescer na madrugada
Que lhe passa ao de leve as orlas frias.

E, de assim começar, é abstrato e imenso:
Frio como a evidência ponderada.
Quente como uma lágrima num lenço.

Coração começado pelos peixes,
És o golfo de todo o esquecimento
Na minha lembrança que me deixes,

E a rosa dos Ventos baralhada:
Meu coração, lágrima inchada,
Mais de metade pensamento.
      
Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso, Coimbra, Revista de Portugal, 1938
     


     
TEXTO DE APOIO | LEITURA ORIENTADA
     
Na «Correspondência ao Mar», em onze tercetos de métrica irregular, a onda de imagens repercutidas pelo sujeito, a partir da oração temporal «Quando penso no mar», uma vez repetida, tem o condão de envolver o leitor numa sequência sensorial e emotiva quase imparável.
Esta envolvência do imaginário é, logo na 1ª estrofe, simbolizada através das imagens do fio de asas e do luar associadas à linha do horizonte e do corpo das águas. Na 2ª estrofe, os elementos metonímicos das velas, do porto e das casas, representativos dos barcos, da atividade náutica e da dialética nomadismo/sedentarismo, acrescentam a essa envolvência a dimensão do tempo, nas metáforas erosivas e efémeras da memória e de uma ruga de areia transitória. A 3ª estrofe, reunindo os quatro elementos de Empédocles,/erra, fogo ou energia (força dos meus pulsos), água (mar) e ar (céu e astros), continua a linguagem metonímica e simbólica da náutica através da deíxis ou sinal indicador do remo e da atividade de bombear. Na dialética dos elementos, a terra cinge-se ao labor energético do sujeito, às tarefas do seu quotidiano, em oposição à largueza imensa do mar e do céu, evocativa do sonho.
As restantes estrofes concretizam esta envolvência do imaginário a partir de uma identificação anímica, picada pelo Eterno, entre o sujeito e o mar em diálogo com a terra, num movimento de fluxo e refluxo, de pólo a pólo, numa sinestesia que contempla o ritmo do impulso e do compasso retido em mente pura, o gosto a sal, a temperatura das orlas frias e do calor (quente como uma lágrima num lenço) e a visão da terra delineada, do aro das estrelas e dos vidros das janelas. Então, o regresso do mar às formas únicas. Do imaginário («A certa forma que só teve em mim») provoca a expressão anafórica do início («começa») da atividade do coração, metonimicamente dispersa pelo aro das estrelas (céu), pelo peito das baías e pelos peixes (mar).
Nas últimas duas estrofes, o destinatário do poema é o próprio coração, sede da atividade espiritual da memória, das emoções e do pensamento, nas metáforas do golfo de todo o esquecimento e da lembrança e da Rosa dos Ventos baralhado, a indiciar a desorientação da lágrima inchada e de Mais de metade pensamento.
        
António Moniz, “A temática marítima”
in Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, Lisboa, Editorial Presença, 1997, pp. 74-75.
    


    
SUGESTÃO
       

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terça-feira, 11 de setembro de 2012

AQUELE CAIS ALI, AGUDO E NU (Vitorino Nemésio)


Cais da Praia da Vitória (ilha Terceira, Açores)


Aquele cais ali, agudo e nu,
Que o mar percute e coroa de asas,
Sabes? pareces-me tu,
Adiada ‑ e, no fundo, casas.

Tu, não mulher salva ou perdida,
Nem tu, esperança de pedra,
Mas terra da minha vida
Onde o mar alto medra.

O cais vazio!
O que eu deixei no cais, despachado e chorando!
Meu vulto de menino frio
Que mal aquece um «até quando?».

A linha gris, rasa e arredada
Em minhas lágrimas tão nuas,
E minha ausência procurada
(Um pouco tarde) pelas tuas.

Assim um «teu» num «meu» insiste.
Que mãe anónima adianta
Cabelo longo e riso triste
À filha feita de tanta
Coisa que não existe?

Ao cais que eu penso
Não chega vela, nem jamais
Asa ou ponta de lenço
Ensina porto ou saudade
‑ Que é pura pedra idade sem idade,
Dentro de mim, o cais.
          
Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste, Lisboa, Revista de Portugal, 1940.
     
     


TEXTO DE APOIO | LEITURA ORIENTADA
     
No poema «Aquele Cais Ali, Agudo e Nu», em quatro quadras, uma quintilha e uma sextilha de versos irregulares, dirigido a um tu ambíguo, aparentemente feminino, consubstancia-se a vivência dramaticamente lacunar de um amor que não existe. O cenário insular de um cais vazio (3ª estrofe) e, por isso, agudo e nu (1ª estrofe) começa por parecer o destinatário singular do poema («tu, / Adiada»). No entanto, não se trata de uma mulher salva ou perdida, nem de uma esperança de pedra, mas do próprio Eu, narcisicamente desdobrado em diálogo: «Mas terra da minha vida / Onde o mar alto medra» (2ª estrofe).

As 3ª e 4ª estrofes confirmam esta interpretação individualista: o cais tanto evoca o vulto de menino frio partindo, despachado e chorando, sem se saber quando voltaria à terra («Que mal aquece um "até quando?"») como a sua ausência saudosa, simbolizada na linha gris, rasa e arredada.

Mas, apesar dessa procura «(Um pouco tarde)», apesar da insistência de um «teu» num «meu», não se realiza qualquer encontro interpessoal, já que a resposta subentendida à pergunta retórica, formulada na 5ª estrofe, assim o sugere: «Que mãe anónima adianta / Cabelo longo e riso triste / À filha feita de tanta / Coisa que não existe?»

Com efeito, a última estrofe confirma a frustração de um cais puramente pensado dentro do sujeito («Dentro de mim»), pura pedra sem idade, onde não se realiza qualquer encontro amoroso, nem se verifica qualquer partida saudosa, já que a esse cais «Não chega vela, nem jamais / Asa ou ponta de lenço / Ensina porto ou saudade».

Perante a nudez dramática de uma alma em autoexposição afetiva, o jovem leitor poderá recriar o percurso da sua própria experiência lacunar e registar poeticamente as impressões emotivas de tal percurso.
        
António Moniz, “A temática marítima”in Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, Lisboa, Editorial Presença, 1997, pp. 76-77.
    
    


SUGESTÃO
      


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segunda-feira, 10 de setembro de 2012

A VIDA É TEMPO (Vitorino Nemésio)




Eme Line, sismo em Itália, 2012



A VIDA É TEMPO

Com alma, ideias, tempo, luta
Componho um homem, sou sujeito:
Penso-me livre numa gruta
Como pretérito imperfeito.

De era se faz o meu futuro,
Será será o meu passado
Como da hera se faz o muro
Mais que da pedra levantado.

Se horas a nada levam tudo,
Nada nasceu, tudo é que é,
Haja ou não haja Sartre e o mundo
Deus Tudo-Nada havido em fé.

Que ele é Deus mesmo no absoluto
Ser contestado, tão assente
Que se faz Deus na voz que escuto,
Mesmo que o negue, e me desmente.

     
Vitorino Nemésio, O Verbo e a Morte, Lisboa, Moraes Editora, 1959, p. 22.
    


    
TEXTO DE APOIO | LEITURA ORIENTADA
     
Em «A Vida É Tempo», em quatro quadras octossilábicas, a dialética Tudo-Nada, independentemente do niilismo existencialista de Jean-Paul Sartre, assume particular significado.
Nas duas primeiras quadras, após a carac
terização elementar do homem em termos que articulam o idealismo ao dinamismo da luta («Com alma, ideias, tempo, luta»), o sujeito proclama a sua liberdade imperfectiva, expressa quer através da imagem críptica da gruta, quer a partir da comparação gramatical do pretérito imperfeito, que exprime uma ação inacabada. Então, o futuro constrói-se com a luta nunca terminada («De era se faz o meu futuro»), assumindo o jogo da homofonia (era/hera) um trocadilho surpreendente, já que na comparação entre hera e muro aquela adquire paradoxalmente maior valor, talvez para indiciar a relevância, aparentemente pouco significativa, do passado em ordem ao futuro.
Nas restantes duas quadras, a noção desconcertante da erosão do Tempo, simbólica da Morte, é caminho para a descoberta do Absoluto, como Tudo-Nada, independentemente de ser admitido ou negado, escutado ou contestado, já que a Sua essência permanece.
        
António Moniz, “O Ser e o não Ser”
 in Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, 
Lisboa, Editorial Presença, 1997, p. 79.
    
         
Nabucodonosor II, Rei de Babilónia. Pintura de William Blake, c. 1805.
Nabucodonosor II, rei da Babilónia, visto por William Blake, 1805


SUGESTÃO

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domingo, 9 de setembro de 2012

CASA DO SER (Vitorino Nemésio)



       
       


CASA DO SER


Língua, Casa do Ser que lá não mora,
E, se chama, não está por morador,
Que só em nós o verbo se demora
Como a sombra de sol e eco de amor.

Abrigo sim, porém sem tecto, fora
De Torre ou porta, os muros no interior:
Assim a Casa essente rompe à aurora
Para se incendiar com o sol-pôr.

É a noite o seu rápido alicerce,
Enquanto Casa, que não Ser (aéreo
O que nem isso é ia eu dizer

No hábito verbal que corta cerce
A hastilha do jardim da casa, etéreo
Mensageiro de fogo. Pode ser).
     

Vitorino Nemésio, O Verbo e a Morte, Lisboa, Moraes Editora, 1959, p. 73.
     



     
TEXTOS DE APOIO | LEITURA ORIENTADA
     
Texto 1
       
Presente e recorrente em toda a poesia nemesiana, a dialética da Vida e da Morte, do Ser e do não Ser, em conjugação com a interligação nominalista, já versada no diálogo platónico Crátilo, e retomada no nosso século por Höderlin e Heidegger, segundo os quais «A língua é a casa do Ser», é, todavia, mais explicitamente glosada no livro O Verbo e a Morte, fundamental do par dominante metafísica e poética, já referenciado.

No soneto «Casa do Ser», as imagens audiovisuais do eco e da sombra (quadra), ou as de um abrigo sem tecto, de fora / De Torre ou porta, dos muros no interior, bem como a evocação do ciclo vida/morte na imagem do movimento pendular do romper da aurora e do incêndio do sol-pôr (2ª quadra) pretendem confirmar a vacuidade da relação entre língua e Casa do Ser, esboçada nos e 2º versos: «Língua, Casa do ser que lá não mora, I E, se chama, não está por morador».

O primeiro terceto reforça tal ilação negativa ao identificar a noite como o alicerce dessa casa do não Ser, enquanto, em parênteses que continua no terceto, se deixa ficar a dúvida do poder ser, depois de pôr em causa o hábito verbal de diluir o verdadeiro significado das coisas, a partir da imagem hortícola do cortar cerce / A hastilha do jardim da Casa. Ainda que se nomeie com o verbo, o amor é cortado no jardim da casa do Ser, ficando a ecoar, no hábito verbal, como um etéreo /Mensageiro de fogo mensagem pessimista que nem sempre seduzirá o jovem leitor mas que não deixará de o fazer refletir.
        
António Moniz, “O Ser e o não Ser” 
in Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, 
Lisboa, Editorial Presença, 1997, pp. 78-79.
    
         


Texto 2
       
Voz interior, palavra-terra, verbo-vida, são imagens que atravessam a poesia de Vitorino Nemésio, um dos nossos poetas em quem a crença, metafísica e religiosa, na possibilidade de transmutação da palavra em Verbo está mais fortemente enraizada, em particular nesse livro abissal e denso de implicações linguístico-teológicas que é O Verbo e a Morte (1959). Com um sentido agudamente moderno da palavra e da língua, Nemésio joga-se num xadrez sem xeque-mate, que é o da dialética entre palavra (humana) e Verbo (sagrado), permanentemente em tensão criativa no trabalho poético com a língua. Se, quase a abrir, escreve: "No lance do verbo jogo, / Mas, se vigio o meu lado, / A boca sabe-me a fogo / Do sentido inesperado.", logo a seguir uma segunda voz parece contradizê-lo: "Flato de voz é morte irreparável, / Só Verbo é vida: / Aquele que tenta o inefável / Fala de voz proibida."

Neste jogo entre ilusão de univocidade e real equivocidade na língua, esta está consciente dos seus limites, mas sabe também que "só em nós o Verbo se demora", que a língua, enquanto "palavra essencial", pode entrar no caminho de uma sacralização do humano, ganhar alma, entrever o Verbo: "Chamo verbo ao equívoco falado (...) / Mas o Verbo é unívoco e sagrado (...) / Desse Verbo que falo, mal declino / O caso do meu nome, nele divino; / (...) Mas, chamem-no vestígios da parábola, / E brilho como a pérola da fábula, / Homem, menos que nada e mais que tudo."

A mesma dialética negativo-positiva no poema "A Casa do Ser", onde se arrisca a negação da ideia de abrigo na língua (do estar a salvo nela, da tradição judaica), à luz de uma teologia negativa da língua, muito moderna, e que deixa para trás, quer o idealismo de um Hölderlin (referido neste mesmo livro como o poeta que "tocou fímbrias de lume nas palavras",), quer a ontologia de Heidegger, o filósofo que, precisamente a exemplo de Hölderlin, viu a poesia e a sua língua como casa do Ser. Em Nemésio, a língua é casa ‑ mas sem teto, noite do nosso abandono existencial, abismo em que nos perdemos, interlocução permanente da Morte: "Língua, casa do Ser que lá não mora, / E, se chama, não está por morador, / Que só em nós o verbo se demora (...) // Abrigo sim, porém sem teto, fora / De torre ou porta, os muros no interior: / (...) É a noite o seu rápido alicerce, / Enquanto Casa, que não Ser (...)".

Em Nemésio a questão da língua é indissociável de um pensamento teológico sobre a palavra, que nele acontece no interior da própria poesia, e que nos levaria de volta aos domínios da filosofia da linguagem, com que iniciei este artigo, dizendo que não ia por aí. Também não concluirei nesse registo. Acrescentarei apenas que a língua da poesia, como Nemésio a entende, é a língua de uma comunicação que se quer "geral". Num texto que serviu de prefácio à edição da sua Poesia (1935-1940), é o próprio Nemésio quem estabelece essa ponte, ao escrever que "é a língua que lhe fixa [ao poema] irremediavelmente a órbita que lhe permite entrar na comunicação geral".
       

João Barrento, “A língua portuguesa na poesia portuguesa de hoje”, 
in Revista de Cultura nº 30, Fortaleza, São Paulo, novembro de 2002. 
    
    


SUGESTÃO
       

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/09/Casa.do.Ser.aspx]