CORRESPONDÊNCIA AO
MAR
Quando penso no mar
A linha do horizonte é um fio de asas
E o corpo das águas é luar,
De puro esforço, as velas são memória
E o porto e as casas
Uma ruga de areia transitória.
Sinto a terra na força dos meus pulsos:
O mais é mar, que o remo indica,
E o bombeado do céu cheio de astros avulsos.
Eu, ali, uma coisa imaginada
Que o Eterno pica,
Vou na onda, de tempo carregada,
E desenrolo...
Sou movimento e terra delineada,
Impulso e sal de pólo a pólo.
Quando penso no mar, o mar regressa
A certa forma que só teve em mim ‑
Que onde acaba, o coração começa.
Começa pelo aro das estrelas
A compasso retido em mente pura
E avivado nos vidros das janelas.
Começa pelo peito das baías
A rosar-se e crescer na madrugada
Que lhe passa ao de leve as orlas frias.
E, de assim começar, é abstrato e imenso:
Frio como a evidência ponderada.
Quente como uma lágrima num lenço.
Coração começado pelos peixes,
És o golfo de todo o esquecimento
Na minha lembrança que me deixes,
E a rosa dos Ventos baralhada:
Meu coração, lágrima inchada,
Mais de metade pensamento.
Quando penso no mar
A linha do horizonte é um fio de asas
E o corpo das águas é luar,
De puro esforço, as velas são memória
E o porto e as casas
Uma ruga de areia transitória.
Sinto a terra na força dos meus pulsos:
O mais é mar, que o remo indica,
E o bombeado do céu cheio de astros avulsos.
Eu, ali, uma coisa imaginada
Que o Eterno pica,
Vou na onda, de tempo carregada,
E desenrolo...
Sou movimento e terra delineada,
Impulso e sal de pólo a pólo.
Quando penso no mar, o mar regressa
A certa forma que só teve em mim ‑
Que onde acaba, o coração começa.
Começa pelo aro das estrelas
A compasso retido em mente pura
E avivado nos vidros das janelas.
Começa pelo peito das baías
A rosar-se e crescer na madrugada
Que lhe passa ao de leve as orlas frias.
E, de assim começar, é abstrato e imenso:
Frio como a evidência ponderada.
Quente como uma lágrima num lenço.
Coração começado pelos peixes,
És o golfo de todo o esquecimento
Na minha lembrança que me deixes,
E a rosa dos Ventos baralhada:
Meu coração, lágrima inchada,
Mais de metade pensamento.
Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso, Coimbra, Revista de Portugal, 1938
TEXTO DE APOIO
| LEITURA ORIENTADA
Na «Correspondência
ao Mar», em onze tercetos de métrica irregular, a onda de imagens
repercutidas pelo sujeito, a partir da oração temporal «Quando penso no mar»,
uma vez repetida, tem o condão de envolver o leitor numa sequência sensorial e
emotiva quase imparável.
Esta envolvência do imaginário é, logo na 1ª estrofe, simbolizada através das
imagens do fio de asas e do luar associadas à linha do
horizonte e do corpo das águas. Na
2ª estrofe, os elementos metonímicos das velas, do porto e
das casas, representativos dos barcos, da atividade náutica e da dialética
nomadismo/sedentarismo, acrescentam a essa envolvência a dimensão do tempo, nas
metáforas erosivas e efémeras da memória e de uma ruga de areia transitória.
A 3ª estrofe, reunindo os quatro
elementos de Empédocles,/erra, fogo ou energia (força dos meus
pulsos), água (mar) e ar (céu e astros), continua a
linguagem metonímica e simbólica da náutica através da deíxis ou sinal
indicador do remo e da atividade de bombear. Na dialética dos
elementos, a terra cinge-se ao labor energético do sujeito, às tarefas
do seu quotidiano, em oposição à largueza imensa do mar e do céu, evocativa
do sonho.
As restantes
estrofes concretizam esta envolvência do imaginário a partir de uma
identificação anímica, picada pelo Eterno, entre o sujeito e o mar em
diálogo com a terra, num movimento de fluxo e refluxo, de pólo a
pólo, numa sinestesia que contempla o ritmo do impulso e do compasso
retido em mente pura, o gosto a sal, a temperatura das orlas
frias e do calor (quente como uma lágrima num lenço) e a visão da terra
delineada, do aro das estrelas e dos vidros das janelas. Então,
o regresso do mar às formas únicas. Do imaginário («A certa forma
que só teve em mim») provoca a expressão anafórica do início («começa») da atividade
do coração, metonimicamente dispersa pelo aro das estrelas (céu),
pelo peito das baías e pelos peixes (mar).
Nas últimas
duas estrofes, o destinatário do poema é o próprio coração, sede da
atividade espiritual da memória, das emoções e do pensamento, nas metáforas do golfo
de todo o esquecimento e da lembrança e da Rosa dos Ventos
baralhado, a indiciar a desorientação da lágrima inchada e de Mais
de metade pensamento.
António Moniz, “A temática marítima”
in Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, Lisboa, Editorial Presença, 1997, pp. 74-75.
in Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, Lisboa, Editorial Presença, 1997, pp. 74-75.
SUGESTÃO
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/12/correspondencia.ao.mar.aspx]
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