CASA DO SER
Língua, Casa do Ser que lá não mora,
E, se chama, não está por morador,
Que só em nós o verbo se demora
Como a sombra de sol e eco de amor.
Abrigo sim, porém sem tecto, fora
De Torre ou porta, os muros no interior:
Assim a Casa essente rompe à aurora
Para se incendiar com o sol-pôr.
É a noite o seu rápido alicerce,
Enquanto Casa, que não Ser (aéreo
O que nem isso é ia eu dizer
No hábito verbal que corta cerce
A hastilha do jardim da casa, etéreo
Mensageiro de fogo. Pode ser).
Língua, Casa do Ser que lá não mora,
E, se chama, não está por morador,
Que só em nós o verbo se demora
Como a sombra de sol e eco de amor.
Abrigo sim, porém sem tecto, fora
De Torre ou porta, os muros no interior:
Assim a Casa essente rompe à aurora
Para se incendiar com o sol-pôr.
É a noite o seu rápido alicerce,
Enquanto Casa, que não Ser (aéreo
O que nem isso é ia eu dizer
No hábito verbal que corta cerce
A hastilha do jardim da casa, etéreo
Mensageiro de fogo. Pode ser).
Vitorino Nemésio, O Verbo e a Morte, Lisboa, Moraes Editora, 1959, p. 73.
TEXTOS DE APOIO
| LEITURA ORIENTADA
Texto 1
Presente e
recorrente em toda a poesia nemesiana, a dialética da Vida e da Morte, do Ser e do
não Ser, em conjugação com a interligação nominalista, já versada no
diálogo platónico Crátilo, e
retomada no nosso século por Höderlin e Heidegger, segundo os quais «A língua é
a casa do Ser», é, todavia, mais explicitamente glosada no livro O Verbo e a
Morte, fundamental
do par dominante metafísica e poética, já referenciado.
No soneto «Casa do Ser», as imagens audiovisuais
do eco e da sombra (1ª quadra), ou as de um abrigo sem tecto, de fora / De
Torre ou porta, dos muros no
interior, bem como a evocação do ciclo vida/morte na imagem do
movimento pendular do romper da aurora e
do incêndio do sol-pôr (2ª quadra) pretendem confirmar a
vacuidade da relação entre língua e
Casa do Ser, esboçada nos 1º e 2º versos: «Língua, Casa do ser que lá não mora, I E, se chama, não está por
morador».
O primeiro terceto reforça tal ilação
negativa ao identificar a noite como
o alicerce dessa casa do não Ser,
enquanto, em parênteses que continua no 2º terceto,
se deixa ficar a dúvida do poder ser, depois
de pôr em causa o hábito verbal de
diluir o verdadeiro significado das coisas, a partir da imagem hortícola do cortar cerce /
A hastilha do jardim da Casa. Ainda que se nomeie com o verbo, o
amor é cortado no jardim da casa do Ser, ficando
a ecoar, no hábito verbal, como um
etéreo /Mensageiro de fogo – mensagem pessimista que nem sempre seduzirá o
jovem leitor mas que não deixará de o fazer refletir.
António Moniz, “O Ser e o não Ser”
in Para uma leitura de sete poetas
contemporâneos,
Lisboa, Editorial Presença, 1997, pp. 78-79.
Texto 2
Voz
interior, palavra-terra, verbo-vida, são imagens que atravessam a poesia de
Vitorino Nemésio, um dos nossos poetas em quem a crença, metafísica e
religiosa, na possibilidade de transmutação da palavra em Verbo está mais
fortemente enraizada, em particular nesse livro abissal e denso de implicações
linguístico-teológicas que é O Verbo e a Morte (1959). Com um sentido
agudamente moderno da palavra e da língua, Nemésio joga-se num xadrez sem
xeque-mate, que é o da dialética entre palavra (humana) e Verbo (sagrado),
permanentemente em tensão criativa no trabalho poético com a língua. Se, quase
a abrir, escreve: "No lance do verbo jogo, / Mas, se vigio o meu lado, / A
boca sabe-me a fogo / Do sentido inesperado.", logo a seguir uma segunda
voz parece contradizê-lo: "Flato de voz é morte irreparável, / Só Verbo é
vida: / Aquele que tenta o inefável / Fala de voz proibida."
Neste jogo
entre ilusão de univocidade e real equivocidade na língua, esta está consciente
dos seus limites, mas sabe também que "só em nós o Verbo se demora",
que a língua, enquanto "palavra essencial", pode entrar no caminho de
uma sacralização do humano, ganhar alma, entrever o Verbo: "Chamo verbo ao
equívoco falado (...) / Mas o Verbo é unívoco e sagrado (...) / Desse Verbo que
falo, mal declino / O caso do meu nome, nele divino; / (...) Mas, chamem-no
vestígios da parábola, / E brilho como a pérola da fábula, / Homem, menos que
nada e mais que tudo."
A mesma
dialética negativo-positiva no poema "A Casa do Ser", onde se arrisca
a negação da ideia de abrigo na língua (do estar a salvo nela, da tradição
judaica), à luz de uma teologia negativa da língua, muito moderna, e que deixa
para trás, quer o idealismo de um Hölderlin (referido neste mesmo livro como o
poeta que "tocou fímbrias de lume nas palavras",), quer a ontologia
de Heidegger, o filósofo que, precisamente a exemplo de Hölderlin, viu a poesia
e a sua língua como casa do Ser. Em Nemésio, a língua é casa ‑ mas sem teto,
noite do nosso abandono existencial, abismo em que nos perdemos, interlocução
permanente da Morte: "Língua, casa do Ser que lá não mora, / E, se chama,
não está por morador, / Que só em nós o verbo se demora (...) // Abrigo sim,
porém sem teto, fora / De torre ou porta, os muros no interior: / (...) É a
noite o seu rápido alicerce, / Enquanto Casa, que não Ser (...)".
Em Nemésio a
questão da língua é indissociável de um pensamento teológico sobre a palavra,
que nele acontece no interior da própria poesia, e que nos levaria de volta aos
domínios da filosofia da linguagem, com que iniciei este artigo, dizendo que
não ia por aí. Também não concluirei nesse registo. Acrescentarei apenas que a
língua da poesia, como Nemésio a entende, é a língua de uma comunicação que se
quer "geral". Num texto que serviu de prefácio à edição da sua Poesia
(1935-1940), é o próprio Nemésio quem estabelece essa ponte, ao escrever
que "é a língua que lhe fixa [ao poema] irremediavelmente a órbita que lhe
permite entrar na comunicação geral".
João Barrento, “A língua
portuguesa na poesia portuguesa de hoje”,
in Revista de Cultura nº 30, Fortaleza,
São Paulo, novembro de 2002.
Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/ag30barrento.htm
SUGESTÃO
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/09/Casa.do.Ser.aspx]
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