terça-feira, 27 de setembro de 2016

Na minh’Alma há um balouço (Mário de Sá-Carneiro)











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O RECREIO

Na minh’Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar –
Balouço à beira dum poço,
Bem difícil de montar...

– E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar...

Se a corda se parte um dia
(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada...

– Cá por mim não mudo a corda
Seria grande estopada...

Se o indez morre, deixá-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...

– Mudar a corda era fácil...
Tal ideia nunca tive...

Mário de Sá-Carneiro

Indícios de Oiro, 1937


Os versos 3 e 4 correspondem à primeira fala, em discurso direto, da criança. Portanto, o travessão no final do segundo verso e o travessão no início do quinto verso demarcam o início e o fim da fala do menino de bibe.




Esgarçada – desfeita.
Folia – alegria, festa, dança, farra.


vv. 11-12 -  segunda fala do menino.

Estopada – maçada.

Indez -criança.






vv. 17-18 -  terceira fala do menino.





AUDIÇÃO DO POEMA:
Produção e voz de Luís Gaspar, Estúdio Raposa - audiocast, 30-01-2015

ANÁLISE FORMAL DO POEMA:
O poema é composto por seis estrofes, seguindo o esquema quadra + dístico. A rima é cruzada na quadras (abab) e em cada dístico há sempre um primeiro verso branco (versos 5, 11 e 17) e um outro que rima com os segundo e quarto da quadra imediatamente precedente, seguindo, pois, um esquema do tipo cb. Todos os versos têm sete sílabas métricas (heptassílabo ou redondilha maior).

PROPOSTA DE COMENTÁRIO DE TEXTO:
Elabore um comentário global do texto que acabou de ler, focando os seguintes tópicos:
  • significados da imagem que o poema desenvolve e sua ligação com o título
  • presença de elementos narrativos
  • registo de língua
  • recursos estilísticos e sua expressividade
  • ritmo e composição formal


CENÁRIO DE RESPOSTA:
Integrados no comentário global do texto, devem ser focados os seguintes tópicos:
  • Significado do “balouço” como imagem desenvolvida no poema e sua relação com o título
A visualização da Alma,·como sede·de um "balouço" (instabilidade), "à beira·dum poço" (situação de risco), com a corda “esgarçada” (perigo iminente) e utilizado por uma “criança” (inconsciência do perigo), compõe uma imagem que significa uma maneira insensata, insegura, ‘louca’ de estar na vida e a descrença na validade de uma atitude ponderada.
O título aponta para uma dupla dimensão: descritiva (o balouço, o menino a brincar) e irónica (a recusa da vida adulta, a aceitação da morte prematura).
  • Presença de elementos narrativos
A imagem nuclear do poema é desenvolvida como quem conta uma história, com as categorias próprias da narratividade: espaço – a “Alma” com seu “poço” e seu “balouço”; tempo – “sempre”, “um dia”; ação – “a balouçar”, “a brincar”; personagens – o “menino de bibe”; narrador.
Este caráter narrativo do desenvolvimento da imagem cria distanciação, sugerindo o desdobramento do “eu”.
  • Registo de língua
Marcas de oralidade e de registo familiar: frases interrogativas, inacabadas, e o uso do presente do indicativo, simulando a instabilidade do discurso oral; expressões típicas da linguagem familiar – “Era uma vez”; “Cá por mim”; “Grande estopada”.
O uso deste registo de língua coaduna-se com o tom de narração oral que o poema tem.
  • Recursos estilísticos e sua expressividade
   - imagem
   - aliteração e assonância
   - reiteração
   ………….
   (Deve ser comentado o efeito de intensificação expressiva dos recursos apontados.)
  • O ritmo e a composição formal
A alternância regular de três quadras e três dísticos gera um movimento rítmico, tradutor do movimento balanceado da imagem poética e, ao mesmo tempo, do desdobramento temático em duas instâncias: o narrador e a personagem (o “menino”).
Exame Nacional do Ensino Secundário nº 138. Prova Escrita de Português A, 12º Ano 
(plano curricular correspondente ao Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de Agosto)
Curso de Carácter Geral – Agrupamento 4. 1997, 2ª fase.

ilustração de Sónia Oliveira, 2013


QUESTIONÁRIO DE LEITURA:
1. Responde, no teu caderno, às alíneas seguintes, selecionando as opções corretas.
1.1. Ao afirmar que na sua alma "há um balouço/Que está sempre a balouçar" (vv. 1-2), o sujeito poético chama a atenção para…
     a. o seu temperamento instável.
     b. a sua incapacidade de crescer.
     c. a sua mente infantil.
1.2. Embora seja difícil subir para o "balouço", há um menino de bibe que brinca sempre nele. Isto revela, face ao perigo iminente, a sua...
         a. maturidade.     b. coragem.      c. inconsciência.
2. Foca a tua atenção nas primeiras três estrofes.
2.1. Por que motivo se pode considerar perigosa a atitude do menino? Fundamenta a tua resposta com elementos textuais.
2.2. Como reage o sujeito poético perante a possibilidade de afogamento?
3. Apresentam-se, abaixo, os assuntos abordados nas três últimas estrofes. Ordena-os, respeitando a progressão temática do poema.
    A. O sujeito poético conclui que mudar a corda era, afinal, fácil, mas admite não ter tido essa ideia.
    B. O sujeito poético afirma que não vale a pena mudar a corda, pois tal mudança exigiria um grande esforço da sua parte.
    C. O sujeito poético considera que o menino deve baloiçar, ou seja, divertir-se enquanto está vivo.
    D. O sujeito poético coloca a hipótese de o menino morrer afogado, mas não encara o facto como grave.
4. O sentimento que perpassa neste texto poético é facilmente captado pelo leitor, a partir da pontuação e outros sinais auxiliares de escrita e da sua estrutura estrófica.
4.1. Que sinais de pontuação mais contribuem para a sua expressividade?
4.1.1. Indica os valores discursivos que transmitem.
4.2. Descreve a estrutura estrófica do poema.
4.2.1. Que ideia poderá transmitir essa disposição estrófica? (Assinala, no teu caderno, a opção correta.)
     a. O ritmo inquieto e frenético do baloiço.
     b. O ritmo agitado e irregular do baloiço.
     c. O ritmo monótono e regular do baloiço.
5. O poema intitula-se "O recreio". Embora, no início do poema, o título transmita uma conotação positiva, a noção de recreio vai, progressivamente, adquirindo uma conotação negativa. Justifica.


(Para)Textos 9, Ana Paiva et alii. Porto Ed., 2013


quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Gostava de escrever com um fio de água



              ESCREVER





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Se eu pudesse havia de transformar as palavras
em clava.
Havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressonante, sem música.
Como um gesto, uma pancada brusca e sóbria.
Para quê todo este artifício da composição sintác-
tica e métrica?
Para quê o arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras, pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo.
Vejo, admiro, desejo?
Ou sim ou não.
E, como isto, continuando.

E gostava para as infinitamente delicadas coisas
do espírito…
Quais, mas quais?
Gostava, em oposição com a braveza do jogo da
pedrada, do tal ataque às coisas certas e negadas…
Gostava de escrever com um fio de água.
Um fio que nada traçasse.
Fino e sem cor, medroso.

Ó infinitamente delicadas coisas do espírito!
Amor que se não tem, se julga ter.
Desejo dispersivo.
Vagos sofrimentos.
Ideias sem contorno.
Apreços e gostos fugitivos.
Ai! o fio da água, o próprio fio da água sobre
vós passaria, transparentemente?
Ou vos seguiria humilde e tranquilo?

Irene Lisboa, Um Dia e outro Dia… Outono Havias de Vir Latente, Triste, 1936


NOTAS:

Clava (v.2): pau curto terminado em pera; cacete; moca.

Dispersivo (v. 26): que tem dificuldade em sem concentrar.

 


AUDIÇÃO DO POEMA: Produção e voz de Luís Gaspar, Estúdio Raposa - audiocast, 26-08-2013, http://www.estudioraposa.com/index.php/26/08/2013/irene-lisboa-escrever 

As



LEITURA ORIENTADA:


LEITURA ORIENTADA:

    O sujeito poético começa por formular o desejo de transformar as palavras em armas (paus e pedras), usando-as (atirando-as) sem artifícios, isto é, deseja tornar o significado das palavras o mais simples e direto possível, sem artifícios ou musicalidade. Cada palavra ficaria, assim, com um sentido claro e preciso. Se as palavras ficarem despidas de significados obscuros, complexos, é fácil responder à pergunta lançada pelo sujeito poético sobre o amor: “Amo?” – ou se ama ou não se ama.

    Ainda na primeira estrofe, o sujeito poético duvida da necessidade de respeitar, na escrita, alguns recursos próprios da literatura, como a sintaxe artificial (“artifício”, v. 6), a métrica, o “arredondamento linguístico” (v. 8) e o uso das palavras em sentido figurado (“Sentidos próprios em tudo”, v. 11). Aliás, na própria construção deste poema de Irene Lisboa também se abandonaram outras convenções versificatórias: ausência de rima e estrofes de tamanhos diferentes.

    Na segunda estrofe, o eu lírico manifesta o desejo de utilizar uma outra forma de escrever reservada para as “infinitamente delicadas coisas / do espírito” (vv. 16-17). Nessa outra escrita utilizaria “um fio de água” (v. 21) que “nada traçasse. / Fino e sem cor, medroso” (vv. 23-23) - esta metáfora significa escrever de uma forma leve, menos marcante, menos agressiva. As “delicadas coisas do espírito” de que o sujeito poético gostaria de escrever surgem enumeradas na terceira estrofe: o amor, o desejo, os sofrimentos, as ideias, os apreços e os gostos (cf. vv. 29 a 33). Contudo, o sujeito poético tem dificuldade em definir essas “coisas do espírito” (“Quais? Mas quais?”, v. 18) pelo facto de serem vagas, imprecisas, fugidias:

Amor que se não tem, se julga ter.

Desejo dispersivo.

Vagos sofrimentos.

Ideias sem contorno.

Apreços e gostos fugitivos.

    As perguntas finais (vv. 30-32) revelam a incerteza relativa ao ato de escrever: como o sujeito poético gostaria de escrever as “infinitamente delicadas coisas do espírito” (v. 24) com um fio de água, ele não está certo se as conseguiria registar com o fio a passar por cima delas, ou se o fio as teria de seguir, ficando, também ele, impreciso e vago.

 

Adaptado de: Conto Contigo 9, Conceição Monteiro et alii. Areal Editores, 2013; Diálogos 9, Fernanda Costa et alii. Porto Editora, 2013; Letras & Companhia 9, Carla Marques e Inês Silva. Edições ASA, 2013.

 

QUESTIONÁRIO: 

1. Caracteriza o tipo de escrita que o sujeito poético defende na primeira estrofe.

2. Identifica os recursos expressivos que o sujeito poético utiliza para caracterizar esse tipo de escrita.

3. Na segunda estrofe, o sujeito poético apresenta outro tipo de escrita para outras realidades.

3.1. Justifica a dificuldade em as identificar.

3.2. Transcreve a enumeração através da qual as identifica.

4. Descreve como se propõe a abordar essas e outras realidades.

4.1. Explica como justifica essa abordagem.

 

Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 54 de Português – 9.º ano, sobre o poema “Escrever”, de Irene Lisboa, disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7822/e546369/portugues-9-ano, 2021-05-24


Professora Tereza Cadete Sampainho, #EstudoEmCasa, 2021


     Poderá também gostar:

 

“Cai um pássaro do ar, devagar, muito devagar”, de Irene Lisboa. In Guia de aprendizagem. Disciplina de Português. Unidade 4. Ensino Secundário Recorrente; Lisboa, Ministério da Educação – Departamento do Ensino Secundário, 1997. Apud “Lisboa” in Folha de Poesia, José Carreiro, 2013-07-04.

 

Irene Lisboa, Monotonia” in Folha de Poesia, José Carreiro, 2022-06-30.

 

Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma, Irene Lisboa. Lisboa, Portugália Editora, 1955.


[Última atualização em 2022-06-30]

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Nuno Júdice: a infância, a vida e o ser, o amor



Segundo Arnaldo Saraiva, a poesia de Nuno Júdice surge integrada na tradição literária romântica e simbolista. A escrita deste poeta apresenta como características fundamentais: o eu hiperbolizado e atrofiado; a poética do desassossego e da inspiração; a analogia universal (sentimentos humanos/sentimentos do universo); cenários outonais, arruinados ou crepusculares.
Noémia Jorge, Preparação para o Exame Nacional Português 10, Porto, Porto Editora, 2013






Características temáticas e discursivas da poesia de Nuno Júdice

  • A infância


A TERRA DO NUNCA

Se eu fosse para a terra do nunca,
teria tudo o que quisesse numa cama de nada:

os sonhos que ninguém teve quando
o sol se punha de manhã;

a rapariga que cantava num canteiro
de flores vivas;

a água que sabia a vinho na boca
de todos os bêbedos.

Iria de bicicleta sem ter de pedalar,
numa estrada de nuvens.

E quando chegasse ao céu, pisaria
as estrelas caídas num chão de nebulosas.

A terra do nunca é onde nunca
chegaria se eu fosse para a terra do nunca.

E é por isso que a apanho do chão,
e a meto em sacos de terra do nunca.

Um dia, quando alguém me pedir a terra do nunca,
despejarei todos os sacos à sua porta.

E a rapariga que cantava sairá da terra
com um canteiro de flores vivas.

E os bêbedos encherão os copos
com a água que sabia a vinho.

Na terra do nunca, com o sol a pôr-se
quando nasce o dia.

Nuno Júdice, As coisas mais simples, Lisboa, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2006

«Se eu fosse para a terra do nunca», começa assim o poema “A terra do nunca”, de Nuno Júdice. Verso que nos transporta, automaticamente, para a nossa infância, para a ilha fictícia de Peter Pan, personagem do ideário infantil que se recursou a crescer. A conjunção subordinativa condicional que inicia o poema remete-nos para o mundo do sonho, para o facto de estarmos perante uma situação hipotética, pois não é possível o regresso físico à nossa infância. Contudo, através da imaginação, e se tal fosse realmente possível, o que faria o sujeito poético? Como seria a terra do nunca? A resposta é dado ao longo do poema, com a apresentação de situações impossíveis - «teria tudo o que quisesse numa cama de nada:/ os sonhos que ninguém teve quando/ o sol se punha de manhã» (vv. 2-3); «Iria de bicicleta sem ter de pedalar,/numa estrada de nuvens.» (vv. 9 e 10); «teria (…) a água que sabia a vinho na boca/ de todos os bêbados» (vv. 7 e 8); «(…) pisaria/ as estrelas caídas num chão de nebulosas.» (vv. 11 e 12) - e com a presença de vocábulos e de expressões que contribuem para a caracterização deste mundo imaginado e com conotação positiva: «cantava» (v. 5), «nuvens» (v. 10), «céu» (v. 11), «estrelas» (v. 12), «flores vivas» (v. 20).
O seguinte dístico encerra o poema «Na terra do nunca, com o sol a pôr-se/ quando nasce o dia.», descrevendo uma situação impossível e contrária à realidade e reportando-se, possivelmente, à entrada no mundo da fantasia.

ASTRONOMIA

Vou buscar uma das estrelas que caiu
do céu, esta noite. Ficou presa a um
ramo de árvore, mas só ela brilha,
único fruto luminoso do verão passado.

Ponho-a num frasco, para não se
oxidar; e vejo-a apagar-se, contra
o vidro, à medida que o dia se
aproxima, e o mundo desperta da noite.

Não se pode guardar uma estrela. O
seu lugar é no meio de constelações
e nuvens, onde o sonho a protege.

Por isso, tirei a estrela do frasco e
meti-a no poema, onde voltou a brilhar,
no meio de palavras, de versos, de imagens.

Nuno Júdice, O Breve Sentimento do Eterno, Lisboa, Edições Nelson de Matos, 2008

No soneto “Astronomia”, a evasão para a infância dá-se através de um mundo de fantasia que é construído à volta do “eu” poético.
Apesar de, no final do poema, conseguirmos compreender que estamos diante de uma reflexão sobre arte poética, todo o poema nos faz lembrar brincadeiras de criança, onde o impossível se torna possível: «Vou buscar uma das estrelas que caiu/ do céu, esta noite. » (vv. 1 e 2). O sujeito poético guarda esta estrela num «frasco», contudo, percebe que «Não se pode guardar uma estrela.» (v. 9), pois ela pertence ao céu, «onde o sonho a protege.» (v. 11).
Constatando este facto, o que faz o sujeito lírico com a estrela que apanhou? A resposta é dada no terceto final, onde tudo se desvenda: «meti-a no poema, onde voltou a brilhar, / no meio de palavras, de versos, de imagens.».
De forma muito simples, como se de uma brincadeira se tratasse, Nuno Júdice revela-nos como se produz um poema, num jogo de metáforas que aludem ao mundo do sonho.

  • A vida e o ser

Numa entrevista para o programa “Ler +, Ler melhor” (RTP Informação, 2012. Programa integrado no Plano Nacional de Leitura), Nuno Júdice afirmou, a propósito da sua poesia, que esta era “no fundo (…) uma reflexão sobre o mundo, sobre a vida, e sobre os homens, sobre todos nós.” De facto, os temas tratados em Nuno Júdice são transversais à condição humana, o que os torna intemporais.


TORRE DE BABEL

Antes de Babel,
todos os tradutores estavam no desemprego.

Antes de Babel,
a indústria dos dicionários estava falida.

Antes de Babel,
não havia Cervantes, nem Goethe, nem Alliance Française.

Antes de Babel,
a tradução simultânea estava entregue a papagaios.

Antes de Babel,
não havia: «Tens muito jeito para línguas.»

Antes de Babel,
até a serpente assobiava na língua de Eva.

Depois de Babel,
é que ninguém se entende.

Depois de Babel,
só o que os olhos dizem é o mesmo em todas as línguas.

Nuno Júdice, Guia de Conceitos Básicos, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2010


Em “Torre de Babel”, Nuno Júdice abre-nos uma janela de reflexão para a nossa vida em sociedade. Ao longo de oito dísticos, é-nos descrito o mundo antes de se ter construído a torre bíblica: «todos os tradutores estavam no desemprego», «a indústria de dicionários estava falida», «as escolas de línguas estavam fechadas», (…). Júdice parece entrar numa paródia, onde a descrição do antes nos permite caracterizar o presente.
No final do poema o poeta dá-nos o que faltava para o compreendermos na totalidade, descreve-nos, em dois dísticos, o que aconteceu «Depois de Babel»: «ninguém se entende» e «só o que os olhos dizem é o mesmo em todas as línguas». O poema permite uma discussão acerca da nossa sociedade contemporânea, refletindo acerca de valores e prioridades, levantando, ainda, questões éticas. Permite-nos uma reflexão, ainda, a respeito da dicotomia “ser” vs “parecer”, uma vez que os olhos nos são apresentados, no último verso, como o reflexo da realidade, a linguagem que fala a verdade.

  •  O amor
Justin Mulder

ANUNCIAÇÃO

Esperas que o anjo pouse, e te abrace
com o seu tédio de asas. Entregas-lhe
os teus lábios abertos como a flor
saciada de água. Abres-lhe o teu corpo,

para que ele pouse no copo dos teus
seios, e beba o licor da primavera.
«Quem és tu?» perguntas-lhe, «anjo
ou demónio?» E não te responde;

segura-te a mão; puxa-te para o
canto. Vais atrás dele, sem saber se
há regresso. Pedes-lhe que não olhe

para trás, que se esqueça do mundo.
E ambos se afastam, sem dar resposta,
como tivessem decidido, e o soubessem.

Nuno Júdice, O Breve Sentimento do Eterno, Lisboa, Edições Nelson de Matos, 2008

No soneto “Anunciação”, Júdice remete-nos, inevitavelmente, para a dicotomia romântica “mulher-anjo” - “mulher-demónio”, que tanta tinta fez correr. O exagero das emoções e o tom confessional tão típicos da poesia romântica agradam ao público mais jovem, pois estamos perante uma fase de desenvolvimento de alguma hiperbolização.
O sujeito poético descreve a presença de um «anjo» que se aproxima de alguém, a quem esse alguém entrega os seus lábios «abertos como a flor/ saciada de água» (vv. 3 e 4) e, posteriormente, todo o seu corpo.
Na segunda quadra, é questionada a identidade deste «anjo»: «’Quem és tu?’ perguntas-lhe, ‘anjo/ ou demónio?’», não havendo qualquer resposta por parte deste interveniente misterioso. O «anjo» apodera-se deste ser (apresentado vulnerável perante esta figura soberba) e afastam-se, «…sem dar resposta./ Como tivessem decidido, e o soubessem.».
O poema retrata, na perfeição, a entrega sem limites e sem hesitações de dois seres que se amam. Não pensam nas consequências, esquecem o mundo circundante - «Pedes-lhe que não olhe/ para trás, que se esqueça do mundo» (vv. 11 e 12) – e vivem inteiramente um para o outro. Não é este o mundo em que mergulhamos quando a palavra de ordem é “paixão”, tão típica dos amores adolescentes?


AUSÊNCIA

Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
Ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
Magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
Por isso, de deixar alguns sinais — um peso
Nos olhos, no lugar da tua imagem, e
Um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
Tivessem roubado o tacto. São estas as formas
Do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
As coisas simples também podem ser complicadas,
Quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz a tua memória; e a
Realidade aproxima-me de ti, agora que
Os dias correm mais depressa, e as palavras
Ficam presas numa refração de instantes,
Quando a tua voz me chama de dentro de
Mim — e me faz responder-te uma coisa simples,
Como dizer que a tua ausência me dói. 

Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001

O poema “Ausência” é, também, um poema de amor (se podemos assim o classificar, de forma simples e concreta). Conquanto, como o próprio título deixa antever, os sentimentos aqui ilustrados advêm da ausência de um “tu” poético, dando o amor lugar a sofrimento.
O sujeito poético, perante a ausência do “tu”, apercebe-se da diferença entre sonho e realidade, pertencendo o “tu” da enunciação a um passado que agora só se realiza em sonho, diante, no entanto, da consciência da realidade: «… quando nos damos conta da/ diferença entre sonho e a realidade. Porém, / é o sonho que me traz a tua memória; e a realidade aproxima-me de ti, agora que/ os dias correm mais depressa» (vv. 11 e 12).
O poema termina exatamente como começou: «dizer que a tua ausência me dói». De forma muito assertiva, o “eu” poético afirma que tem um objetivo principal: «Quero dizer-te uma coisa simples: a tua/ ausência dói-me» (vv. 1 e 2). É «simples» de compreender e «simples» de anunciar, mas complexo em todo o sentimento que desencadeia, como é a própria definição do amor (Recorde-se, a este propósito, a tentativa de definição do Amor no soneto camoniano “Amor é fogo que arde sem se ver”.)
“Ouvimos”, na epopeia camoniana, os apelos de Inês de Castro e a declaração do seu amor por D. Pedro e pelos filhos de ambos; “ouvimos” as reflexões do poeta e deixamo-nos comover por esta história de amor, tomando o partido de D. Pedro aquando da vingança contra os «terríficos algozes». Júdice não nos apresenta o D. Pedro justiceiro, apresenta-nos o D. Pedro apaixonado, investe o “Cru” da sensibilidade que o levou a tomar determinadas atitudes. É este D. Pedro que existe em cada homem apaixonado, pelo que o poema não se reporta apenas ao tempo histórico que evoca, investe-se de uma intemporalidade perfeita, resumindo o amor àquilo que é, na sua essência, independentemente dos contextos socioculturais: «Mas é isto o amor: / ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua/ voz que abre as fontes de todos os rios» (vv. 9 – 11).
A parte final do poema é, nitidamente, uma declaração de amor (do “eu” para o “tu”, de forma direta, e do “tu” para o “eu” de forma indireta), revestindo-se de universalidade e transpondo por completo o tempo histórico evocado pelo título da composição: «Tu: / a primavera luminosa da minha expetativa, / a mais certa certeza de que gosto de ti, como / gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.».

A Receção do Texto Poético: Nuno Júdice nas aulas de Português, Sandra Macedo Santos Ferreira.  Dissertação de Mestrado em Estudos Portugueses, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2014.





domingo, 24 de julho de 2016

Bailado da Garça



Olha o bailado da garça
Numa toada de vento
O bailado da garça
Em movimento

Olha o bailado da garça
No seu voar prisioneiro
O bailado da garça
No nevoeiro

Ah, corações tão cativos
Do ventre de uma cratera
Ai, corações adiados nos fados
De uma tão longa espera

Se a noite é um xaile negro
Vamos cantar essas loas
Ai, Espantar os segredos e os medos
Que repousam nas lagoas
Que repousam nas lagoas

José Medeiros


Bailado da Garça
do programa "Deixem Passar a Música" - Toadas do Vento Ilhéu
Realização: José Medeiros
Ano: 1986
Direcção Musical: Luís Gil Bettencourt
Gravação: Angel Studio/ Lisboa
Tema Contemporâneo Açoriano /Zeca Medeiros
Música e Letra: José Medeiros
Músicos: Susana Coelho - Voz; Álvaro Melo - Acordeão; Luís Gil Bettencourt - Viola da Terra; José Medeiros - Piano


         

sábado, 23 de julho de 2016

Poemas de amor do antigo Egipto


CONVERSAS NA CORTE

DIZ ELE:

Amada, és única, de ti não se fez duplicado,
Com mais encanto do que todas as mulheres,
luminosa, perfeita,
Uma estrela que desce sobre o horizonte pelo novo ano,
um bom ano,
Esplêndida nas cores que traz
e de sedução a cada olhar.
Os seus lábios são encantamento,
o seu pescoço tem o tamanho certo e os seios uma maravilha;
O seu cabelo lápis-lazúli a brilhar,
os seus braços de mais esplendor que o oiro.
Os seus dedos fazem-me ver pétalas,
as do lótus são assim.
As suas ancas foram modeladas como deve ser,
as suas pernas acima de outra beleza qualquer.
Nobre a forma como anda
(vera incessu)
Meu coração seu escravo ficaria se a mim se abrisse.
As cabeças voltam-se — por culpa sua
para a seguirem com o olhar.
Afortunado o que a puder abraçar plenamente;
será o número um entre todos os jovens amantes.
Deo mi par esse
Todo o olhar a vai seguindo mesmo quando desapareceu fora do alcance.
Singular deusa, sem igual.

[…]

DIZ ELA:

O meu coração rebenta quando penso em como o amo,
Não sou capaz de me comportar como outra pessoa qualquer.
Ele, o coração, está em desordem
Não me deixa escolher um vestido
ou esconder-me atrás de um leque.
Não consigo pôr pintura nos olhos nem optar por um perfume.
«Não páres, entra dentro da casa
Foi o que disse o coração uma vez,
E ainda diz sempre que penso no amado.
Não me faças fazer figuras, coração meu. Por que és tão idiota?
Aquieta-te! Mantém-te calmo
e ele há-de vir ter contigo.
A minha cautela não permitirá que as pessoas digam:
A rapariga está perturbada de amor.
Quando te lembrares dele
firme e forte, não me abandones.

Conversas na corte in Poemas de amor do antigo Egipto
Lisboa, Assírio Alvim, 1998, Tradução de Hélder Moura Pereira


Flor de Lotus (National Papyrus Center, Giza, Egipto)


CANÇÕES DE ALEGRIA DA AMADA QUE SE VAI ENCONTRAR CONTIGO NOS CAMPOS

I

Tu, minha és, meu amor,
O meu coração esforça-se para alcançar o cimo do teu amor.

, encanto, a armadilha que montei com as minhas
próprias mãos.

os pássaros de Punt,
Perfume de asas
Como chuva de mirra
Caindo sobre o Egipto.

Vamos ver o trabalho que as minhas mãos fizeram,
Vamos os dois, juntos por esses campos.

II

O guincho do ganso selvagem
Incapaz de resistir
À tentação do meu isco.

Enquanto eu, na confusão do amor,
Incapaz de o apanhar, Fico a ver a ave levar as redes com ela.

E quando a minha mãe voltar, carregada de aves,
E me vir de mãos vazias,
Que lhe vou dizer?

Que não apanhei ave alguma?
Que fui eu a ficar apanhada nas tuas redes?

III

Mesmo quando as aves levantam voo
Em ondas e ondas de grande debandada
Eu nada vejo, fico cega
Apanhada como estou e ausente
Dois corações obedientes no seu bater
A minha vida ligada à tua
A tua beleza o elo.

IV

Sem o teu amor, o meu coração não bateria mais;
Sem o teu amor, um bolo doce parece salgado;
Sem o teu amor, o doce «shedeh» sabe a fel.
Ó, amado, a vida do meu coração precisa do teu amor.
Pois quando respiras, meu é o coração que bate.

V

Com sinceridade confesso o meu amor;
Amo-te, sim, e desejo amar-te ainda mais de perto;
Como dona da tua casa,
O teu braço posto sobre os meus.

Ai de mim por teus olhos vagos.
Digo ao meu coração: «O meu amo
Partiu. Durante
A noite partiu
E deixou-me. Sinto-me um túmulo».
E a mim própria pergunto: Não fica nenhuma sensação,
quando vens até mim?
Mesmo nenhuma?

Ai de mim por esses olhos que te afastaram do caminho,
Sempre tão vagos.
E apesar disso confesso com sinceridade
Que andem eles por onde andarem
Se vierem ter comigo
Eu reentro na vida.

VI

A andorinha canta: «Aurora,
Para onde se foi a aurora

Assim se vai também a minha noite feliz
O meu amor na cama ao meu lado.

Imagine-se a minha alegria ouvindo o seu murmúrio:
«Jamais te deixarei», disse-me.
«Com a tua mão na minha passearemos
Por todos os mais belos caminhos».

Demais a mais ele quer que o mundo saiba
Que de entre todas as mulheres sou a primeira
E que o meu coração nunca mais há-de ficar triste.

VII

A cabeça assomando à porta
Será ele que vem?

Ouvidos à escuta dos seus passos,
E um coração que nunca pára de falar dele.

Um mensageiro:
«Não me sinto bem...»
Porque não vem ter comigo
E me diz
Que encontrou outra rapariga?
Outro coração que há-de sofrer.

VIII

Assim sofro pelo amor perdido
O desgosto fez-me perder metade do cabelo.

Vou pô-lo aos caracóis e arranjá-lo,
Pronta para o que der e vier...

Canções de alegria da amada que se vai encontrar contigo nos campos
 in Poemas de amor do antigo Egipto
Lisboa, Assírio Alvim, 1998, Tradução de Hélder Moura Pereira


CANÇÕES ALEGRES

Ó flores de Mekhmekh, dai-nos a paz!
Por ti seguirei o que o coração ditar.

Quando me abraças
A luz que de ti vem brilha tanto
Que até preciso de bálsamo nos olhos.

Tendo a certeza que me amas
Aconchego-me junto a ti.

O meu coração está seguro de que entre todos
Os homens tu és o mais importante.

O mundo todo brilha
O meu desejo é podermos dormir juntos,
Como agora, até ao fim da eternidade.

II

São tão pequenas as flores de Seanu
Que quem as olha se sente um gigante.

Sou a primeira entre os teus amores,
Como jardimpouco regado de ervas e perfumadas flores.

Ameno é o canal que tu cavaste
Pela frescura do vento norte.

Tranquilos os nossos caminhos
Quando a tua mão descansa na minha em alegria.

A tua vozvida, como o néctar.

Ver-te é mais do que alimento e bebida.

III

flores de Zait no jardim.
Corto e junto flores para ti,
Faço-te uma grinalda,
E quando ficares ébrio
E te deitares com esse sono,
Sou eu quem te lava os pés para lhes tirar o .

Canções alegres”,  in Poemas de amor do antigo Egipto
Lisboa, Assírio Alvim, 1998, Tradução de Hélder Moura Pereira



CANÇÕES DO JARDIM

I

Fala a romãzeira:
As minhas folhas são como os teus dentes
Os meus frutos como os teus seios.
Eu, o mais belo dos frutos,
Estou presente em cada tempo que fizer, em todas as estações.

Tal como o amante junto da amada para sempre,
Ébrio de «shedeh» e vinho.

Todas as árvores perdem as folhas, todas
Excepto a romãzeira.
Eu sozinha em todo o jardim não perco a beleza,
Permaneço firme.
Quando as minhas folhas caem,
outras folhas nascem dos botões.

Sendo a primeira entre os frutos
Exijo que essa posição seja reconhecida,
Não aceitarei um segundo lugar.

E se houver de novo algum insulto
Não haveis de ouvir dele o seu final.

……………….........
Com os lótus em flor
E os lótus em botão,
E óleos e doce mirra de toda a espécie,
Estarás entre os mais contentes
Poisquem se lembre do pavilhão das rosas
E cuide bem dele.

..................
está ele!
Subamos para o abraçar
E fazer com que aqui fique o dia todo.

II

Ouve a voz da figueira:
Saudações à minha amada.
Quem mais digno do que eu?
Porque não eu teu servo, se não tens nenhum?
Trouxeram-me da Síria
Para prémio dos amantes.

Bebo todo o dia, não água do odre, mas beleza.

III

O pequeno sicômoro que com as tuas próprias mãos plantaste
Move a boca para falar.

Como são graciosos os seus ramos, graciosos
Quando abanam e, ao abanar, murmuram
Um murmúrio tão doce como o mel.

Os ramos dobram-se pesados de frutos
Mais vermelhos do que o jaspe de vermelho-sangue,
De folhas como a malaquite.

Trazem-tos de muito longe
Para ti que não estás ainda em tua fresca sombra.
Recebes a sedutora carta de amor
Das mãos daquela jovem rapariga,
Filha do chefe dos jardineiros,
Vai a correr ter com o amado, diz-lhe
«Vamos para um sítio mais sossegado».

O jardim está em pleno esplendor,
Com os seus pavilhões de tendas;
E tudo para ti.

Os meus jardineiros ficam contentes por te ver.

Manda aos teus escravos que tragam os instrumentos musicais,
Prepara-te para a festa.

Ir a correr ao teu encontro é água fresca
Para um homem que está com sede.

Os teus servos estão a chegar com cerveja de todas as qualidades,
Bolos, pastéis, flores frescas a extravasar
dos cestos, e fruta fresca acabada de colher.

Fica um dia, um dia de felicidade,
E amanhã, e depois de amanhã,
Três dias inteiros à minha sombra.

O que foi escolhido senta-se à sua direita,
Enche-a de licores
Até estar pronta para o que ele lhe disser.

Com toda a gente ébria, aos tombos,
Ninguém suspeitando do que se está a passar,
Ele prossegue com zelo o caminho que traçou.

E é tudo o que posso dizer:
A minha discrição é tal
Que do que se passou a seguir
Nem uma sugestão deixarei.

Canções do jardim”,  in Poemas de amor do antigo Egipto
Lisboa, Assírio Alvim, 1998, Tradução de Hélder Moura Pereira