domingo, 6 de outubro de 2019

Écrire, de Marguerite Duras – Crónica de Eduardo Prado Coelho



UM LIVRO ABERTO É TAMBÉM A NOITE

1. "Durante a noite, imaginar Duras na cama dela a dormir sozinha numa casa de quatrocentos metros quadrados".
É Duras quem escreve. Ou fala. Apesar de o livro se chamar "Ecrire". Porque é sem dúvida o mais oral dos livros de Duras. Como se não tivesse sido escrito. Como se fosse ditado. O modo como este livro "aparece" e depois se "constrói” poderá explicar a sua desarrumação interior. Um dia, o cineasta Benoit Jacquot foi visitar Marguerite Duras a Trouville. Ela levou-o a ver numa localidade próxima, Vauville, o túmulo de um jovem aviador inglês, supostamente chamado W. J. Cliffe, que nos últimos dias da guerra, talvez no último, porque não?, tinha sido abatido pelos alemães e viera ali cair. O avião desfez-se sobre uma árvore, e o jovem aviador ficou prisioneiro do avião. A população de Vauville fez uma espécie de vigília, com cantos e flores, orações e choros, durante várias noites, até que conseguiram tirar o corpo dele do avião. Foi uma operação difícil, porque o corpo ficara enredado numa rede de aço e ramos de árvore. Enterraram-no. Um ano depois, um homem já idoso veio visitar o túmulo do jovem aviador, e falou dele, indicando o seu nome. Durante oito anos, voltou regularmente. Até que desapareceu. Uma lápide, um nome de ressonâncias mais ou menos enigmáticas (duas iniciadas pelo meio), um destino secreto e uma fidelidade essencial, tudo isto tinha condições para que a figura velada pela morte pudesse entrar na galeria um pouco espectral das personagens durassianas. Benoit Jacquot filmou Duras a contar a história do jovem aviador. E depois surgiu a ideia de um segundo filme, em que Duras fala da escrita. E por isso que, mesmo se o texto foi reescrito para publicação em livro (o que não é certo), a escrita conserva todas as marcas da oralidade. Mas não da "nossa oralidade". Pelo contrário. De uma "oralidade" que apenas existe num entrecho de permanente oscilação entre o escrito e o falado, e que não podemos encontrar senão nos próprios textos de Duras, na sua sintaxe absolutamente inovadora na literatura francesa, capaz de se desenvolver segundo regras de construção e distorção que parecem surgir de um espaço de tipo analítico e transferencial.
O livro inclui mais três textos, oriundos de circunstâncias diversas: "Roma", "Le nombre pur" e "L'exposition de la peinture". Livro de circunstância, portanto. Frágil, menor, no seu estatuto. Livro em que a escrita tem uma espécie de fadiga íntima – como se hesitasse em cada passo, ou passagem. Contudo, livro em que Duras nos acompanha uma vez mais, com as suas obsessões, com a sua loucura, com a sua exigência desmedida. E por isso mesmo é um livro a que nos agarramos, frase a frase, aos pedaços de um texto desmantelado. Entre o naufrágio e o êxtase. E na expectativa de um outro livro, a sair esta semana na P.O.L., e que se intitula "Le Monde Extérieur". Livro, este, de que nada se sabe. Duras saberá? "Escrever livros ainda desconhecidos de mim e nunca ainda decididos por mim e nunca decididos por ninguém".


2. O grande motivo deste livro é simples de enunciar, e talvez assustadoramente banal: a escrita implica isolamento, mais do que "isolamento", porque a palavra é excessivamente "física", implica "solidão", isto é, a desertificação do espaço em volta, mas uma desertificação que só pode ser passional, que só pode exigir uma espécie de inflexibilidade da paixão (nada mostrar do que se escreve aos amantes que estão de passagem), e esta clausura do espaço é também uma linha de separação que se introduz no interior da própria linguagem, não entre as palavras-da-literatura e as palavras-não-literárias, mas uma linha que atravessa todas as palavras, fazendo que haja uma espécie de dia sociabilizado de cada palavra, e de noite intratável dessa mesma palavra, e escrever é assim convocar a noite de cada palavra, a noite do mundo exterior, as mil e uma noites das palavras, o sono aceso das palavras, e a noite à volta delas como um firmamento inamovível.
Um dia, Raymond Queneau, tendo lido um manuscrito de Duras, disse-lhe: "Ne faites rien d'autre que ça, écrivez". Samuel Beckett, em resposta famosa a um inquérito do "Libération", em que se perguntava: "Porque escreve?", respondeu: "Bon qu'à ça". Apenas.
A grande interrogação é esta: que distingue as pessoas que somente usam no seu quotidiano a mais funcional e utilitária das escritas, ou mesmo aquelas que, por profissão escrevem, como são os jornalistas, cumprindo as voltas da universal reportagem de que fala Mallarmé, das outras pessoas, daquelas um pouco raras para quem escrever é a única determinação essencial do seu próprio destino? E que nos liga, a alguns de nós também, não a todos, ao destino dessas personagens, de tal forma que nos agarramos como órfãos aos restos das suas frases, às ruínas dos seus textos, como que na convicção de que mesmo na palavra em desastre poderemos descobrir por entre os escombros a frase decisiva e essencial da nossa existência?
3. O mais apaixonante deste livro de Duras é seguirmos a deslocação da pergunta. Porque a pergunta sobre a escrita é uma pergunta que viaja pelo mundo. "A minha escrita levei-a sempre comigo onde quer que fosse. A Paris. A Trouville. A Nova Iorque. Foi em Trouville que me detive na loucura de me tornar LoIa Valérie Stein. Foi também em Trouville que surgiu o nome de Yann Andréa Steiner. Há um ano". Vemos assim que a escrita está ligada a outros enigmas. Eu gostaria de falar de casas. Como escreveu Herberto Helder, "Falemos de casas, da morte. Casas são rosas / para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança / nos abandona para sempre. / Casas são rios, diuturnos, noturnos rios / celestes que fulguram lentamente / até uma baía fria – que talvez não exista, / como uma secreta eternidade. / Falemos de casas como quem fala da sua alma / entre um incêndio / junto ao modelo das searas, / na aprendizagem da paciência de vê-las erguer / e morrer com um pouco, um pouco / de beleza". Em Duras, as casas são fundamentais. Ela começa o livro desta maneira soberba: "É numa casa que se está só. E não fora dela, mas dentro dela". E por isso nos fala incessantemente da casa de Deauville, ou da casa de Neauphle-Ie-Château, paga apenas com dinheiro da escrita, "dinheiro à vista", sublinha Duras (Saramago, numa entrevista à "Visão", dirá aproximadamente o mesmo da sua casa em Lanzarote). A escrita de Duras vai de casa em casa, passando pelo "apartamento de Paris" (onde Benoit Jacquot a filmou). Tal como vai de nome em nome.
Porque, no fio dos enigmas com que se vai tecendo a loucura do dia, existe ainda o nome, que é sempre, na definição exígua do que nos é próprio, a palavra que se fecha sobre nós e traça o lugar da nossa solidão irredutível. Isso é mais visível (isto é: torna-se mais gritante) quando se trata de um nome próprio numa lápide: W. J. Cliffe. Mas é uma condição partilhada (mesmo por aqueles que sempre pensam noutra coisa). A escrita de Duras é feita de lugares, isto é, de pontos do mundo em que existe um vínculo entre um nome e uma clausura do espaço. Ou, se preferirem, entre um nome e a sua noite. É por isso que um livro aberto é também a noite. Uma vez que um espaço se fecha, na clausura da escrita, tudo o que dele ficou de fora pertence ainda ao seu dentro. Da noite da escrita não há exterior, a não ser que tudo se tenha tornado definitivamente exterior sem mais nada.

Um livro aberto é também a noite”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sexta-feira, 06 de outubro de 1993.





Marguerite Duras - "Écrire" (ARTE)
Assise face à la caméra, dans sa maison de Neauphle-le-Château, Marguerite Duras s'entretient avec Benoit Jacquot sur son rapport à l'écriture, à la solitude, et à cette maison de la banlieue parisienne où elle écrivit "Le vice-consul" et "Le ravissement de Lol V. Stein".


Duras, c'est tout”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 14 de outubro de 1995, p. 12.




Écrire, de Marguerite Duras – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 06-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/marguerite-duras-ecrire.html



sábado, 5 de outubro de 2019

Na órbita de Saturno, de Fernando Pinto do Amaral – Crónica de Eduardo Prado Coelho




NINGUÉM FICA DE FORA

1. Dum modo discreto, o ensaísmo português vai-nos dando trabalhos de grande qualidade. Alguns de formato mais universitário, como o magnífico estudo de Mário Vieira de Carvalho sobre o São Carlos e a cultura da ópera em Portugal. Outros apresentam-se como Investigações transfiguradas pelo sentido estético e o prazer da escrita: é o caso de um pequeno volume extremamente interessante de Rosa Alice Branco intitulado "O que falta ao mundo para ser quadro" (Limiar).
Voltando de novo às edições da Hiena, gostaria de chamar a atenção para um livro que surgiu ainda em 92, mas que não teve, tanto quanto sei, as repercussões que se justificavam. Refiro-me a "Na órbita de Saturno", da autoria de Fernando Pinto Amaral. Como se sabe, Pinto do Amaral tem desenvolvido uma tripla atividade de poeta, tradutor (recorde-se o sucesso que obteve a sua tradução de "Les Fleurs du Mal", de Baudelaire) e crítico. Neste último domínio, tem sido, juntamente com Joaquim Manuel Magalhães, Fernando Guimarães, Maria de Fátima Marinha, Fernando J. B. Martinho e António Guerreiro, uma das pessoas que melhor têm acompanhado a mais recente produção poética portuguesa, a que dedicou um importante ensaio intitulado "O Mosaico Fluido". No plano teórico, tem sido a noção de pós-modernidade que mais o tem interessado, com o resultado paradoxal de vermos a teoria desenvolver-se numa relação com o que resiste à teoria (a dramaturgia deste combate está bem presente nas páginas de "Na Órbita de Saturno"). Como seria fácil de prever, a pós-modernidade corresponde de um modo privilegiado ao afeto fundamental que parece envolver toda a sua atividade literária, e que vai da "Acédia", título do seu primeiro livro de poesia, até à melancolia dos seus mais recentes textos publicados (recentes, pelo menos, na data de publicação).
2. Contudo, lembro-me ainda muito bem da convicção e veemência com que, em dado momento, me apareceu um jovem estudante que queria passar para os cursos de Letras, e abandonar a orientação escolar que inicialmente tomara, e que suponho que era a Medicina (o que explica que Pinto do Amaral fale das suas "afinidades biográficas" com Starobinski). Habitualmente, estes quadros entusiásticos de pessoas que não resistem ao apelo das artes provocam-me reações de suspeita e prudência. No caso de Pinto do Amaral, essa atitude durou muito pouco. A solidez da sua informação, a maturidade da sua escrita e a paixão com que se entregou às novas realidades escolares, provaram-me rapidamente que se tratava de um caso à parte. Texto a texto, tenho vindo a confirmar essa intuição.


3. "Na Órbita de Saturno", título talvez demasiado "cultural", é uma curiosa encenação em torno de uma espécie de trauma, de uma ferida aberta, um vazio emocional de infinitas repercussões. Logo de entrada, percebemos que o autor encontrou a sua estratégia, precisamente em Starobinski: o remédio para o mal encontra-se na própria causa que provocou o mal, embora os efeitos desse remédio nunca permitam que as coisas voltem a ser o que tinham sido antes, não há regresso possível, e a perda é irremediável, incurável no processo da própria cura, porque declinando sempre uma diferença que se refrata em todos os patamares da existência, "essa luz cor-de-sangue a pulsar toda a noite, como uma ferida aberta no espaço mais negro, como esta ferida que nunca deixei de sentir e continua ainda aqui, sem cura".
Entramos depois numa das zonas enciclopédicas deste livro, aquela que nos convida para uma travessia do destino da teoria literária (a outra zona aparecerá mais tarde, no ensaio final, a propósito do próprio tema da melancolia). Aqui devemos dizer que as qualidades didáticas de Fernando Pinto do Amaral são notáveis e que existe um enorme equilíbrio no modo como se posiciona perante esta área de estudos. Como ele próprio reconhece, à partida achava a teoria "entediante e desnecessária". Mas procurou não ter a atitude algo histérica dos que rejeitam toda a teoria em nome de uma espécie de intocabilidade do objeto literário, o que os leva a rejeitar esbracejantemente aquilo que desconhecem, levando-nos a supor que rejeitam para poderem ter a posição confortável de continuarem a desconhecer. Por outro lado, Pinto do Amaral, ao "descobrir" a teoria e os seus prazeres específicos, não entrou naquela insensata euforia de pensar que todos os problemas do mundo se tinham resolvido e que os restantes não passavam de absurdas quimeras. E por isso nos diz: "Cada vez estou mais convencido de que são sobretudo as perguntas mais irrespondíveis aquelas que têm de continuar a fazer-se ouvir – ao menos para sentirmos na sua ausência de resposta essa contradição, afinal tão humana, de algo que só se torna presente na medida em que parece mais distante ou inacessível”.
Não teria grande interesse resumir em poucas linhas um percurso de problemas e autores que, no próprio texto do autor, já é forçosamente rapsódico. Digamos apenas que a contribuição mais aliciante se situa, do meu ponto de vista, no modo como Pinto do Amaral nos mostra o inevitável enredamento entre estruturalismo e pós-estruturalismo, e a correlação profunda entre pós-estruturalismo e pós-modernidade, com a sua permanente instabilização de todas as referências e o seu gosto pelos aspetos mais "voláteis e intersticiais”. Gostaria de sublinhar que o grande mérito de Fernando Pinto do Amaral consiste em não pretender precipitar-se para um juízo de valor, mas procurar antes do mais compreender e analisar. Neste plano, estou inteiramente de acordo com o autor quando ele nos diz que "o pós-estruturalismo tenderá, em geral, a manter uma certa consciência estrutural do texto, mas que, no seio dessa topologia, aumentarão de importância as fluidas relações que a perturbam e envolvem, em detrimento da simples descrição dessa topologia. Ou, dito doutro modo, interessará acima de tudo darmo-nos conta do que se move entre as estruturas ligando-as ou desligando-as umas às outras, em prejuízo da simples análise dessas mesmas estruturas. Na verdade, a maioria das novas correntes teóricas tem vindo a definir-se por graduais alterações de centros de gravidade, mais do que propriamente por grandes rupturas em relação ao panorama anterior".
4. Gostaria de voltar a citar a frase: "algo que só se torna presente na medida em que parece mais distante e inacessível". Como acontece em múltiplas formulações aparentemente "científicas" do texto de Fernando Pinto do Amaral, um leitor mais atento poderá sublinhar que elas são suscetíveis de múltiplas leituras em planos muito diversos da nossa vida pessoal. Ao duplicar o seu texto por um "texto de rodapé" de aparência "autobiográfica" (mas as fronteiras são aqui bastante indecidíveis), Pinto do Amaral sabia que corria o risco de lhe dizerem que imitava "o J.D.", isto é, Jacques Derrida, mas ao mesmo tempo aceitou a inevitabilidade desse risco para poder dar o reverso afetivo de cada fórmula ou conceito (da "teoria" enquanto contemplação até à "introdução aos estudos literários", que é uma introdução que não nos introduz em nenhum espaço, não há um "dentro" e um "fora", mas somente um processo de sedução em que tudo se move desde sempre no interior das palavras): "Quem se ri fica sempre de fora, mas não existe fora, ninguém fica de fora.”

Ninguém fica de fora”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sexta-feira, 17 de setembro de 1993.




Na órbita de Saturno, de Fernando Pinto do Amaral – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 05-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/fernando-pinto-do-amaral-por-eduardo.html



quinta-feira, 3 de outubro de 2019

A literatura portátil de Adília Lopes – Crónica de Eduardo Prado Coelho



A LITERATURA PORTÁTIL

1. Numa das páginas belíssimas do último número da revista "Ler", aquele que traz a indicação de Inverno-93, encontramos, numa galeria de novos "escritores para a década", uma fotografia e um texto sobre Adília Lopes, pseudónimo muito discreto de uma autora de livros breves, alguns brevíssimos, e com títulos insólitos. O último que ali se assinala chama-se Maria Cristina Martins e é uma estranhíssima e curiosíssima produção poética editada pelos Black Son Editores.
Mas fiquemos, por agora, pela fotografia. Adília Lopes, pseudónimo deliberadamente baço de Maria José Oliveira, senta-se num banquinho que supomos minúsculo, tendo à sua volta cadeirões minúsculos e outros móveis de tamanho condizente. Há nesta pose uma provocação, é claro, mas uma provocação pela negativa, contra os grandes autores, contra aqueles que tomam as poses de grandes autores, mas também contra a grande poesia, ou contra aqueles para quem a poesia aparece como uma palavra redentora e sagrada. Ora tudo aquilo que escreve Adília Lopes se situa no reverso disto, e corresponde a um desconcertante uso estratégico da banalidade até ela começar a ser um pouco menos banal do que parece.


2. A atitude de Adília Lopes levou-me a recordar a leitura recente de uma muito interessante obra de um autor espanhol neste momento em voga no seu país: refiro-me a Enrique Vila-Matas, que publicou em 1985 uma História abreviada de la literatura portátil. Para começar, notemos que a própria história é desde logo "abreviada". E a epígrafe pertence a Monsieur Teste de Paul Valéry, e diz o seguinte (que julgo inscrever-se muito bem no contexto poético de Adília Lopes): "O infinito, meu caro, já não é grande coisa; é uma questão de escrita. O universo só existe no papel".
Que se entende por "literatura portátil"? Digamos que se trata inicialmente de uma questão de escala (tudo em formato reduzido) e de uma questão de número (não se dirá que "o carteiro toca sempre duas vezes", mas que "a arte existe sempre duas vezes", e que a primeira só existe porque a segunda a faz existir: isto é, escreve-se sempre a partir do que já foi escrito, uma glosa que tanto pode fazer entrever a fadiga da banalidade como a exaltação do interminável).
O livro de Vila-Matas é inteligente, divertido e também provocador. Propõe-se como uma verdadeira história literária, e mesmo de todas as artes, e convoca as mais variadas personagens da vida artística do século XX, numa ficção delirante, em que raramente conseguimos distinguir entre o que corresponde à "verdade" dos factos e o que pertence apenas à "verdade" das construções romanescas. Como não podia deixar de ser, o livro tem no final uma extensa bibliografia, onde os livros autênticos e outros duvidosos emparceiram numa serena anarquia. E, como é óbvio, vá-se lá saber quais as citações autênticas e quais aquelas que foram inventadas. Tudo acontece numa espécie de alucinação cultural que acelera e enlouquece o fluxo "normal" da História da nossa modernidade.
Disto poderá ser exemplo a magnífica abertura do livro: “No final do Inverno de 1924, precisamente no rochedo em que Nietzsche tinha tido a intuição do eterno retorno, o escritor russo André Biely foi atacado por uma terrível crise de nervos que o levou a experimentar a irremediável ascensão das lavas do seu sobreconsciente. No mesmo dia e à mesma hora, não longe dali, o músico Edgar Varese caía de repente do seu cavalo quando, parodiando Apollinaire, simulava os preparativos de partida para a guerra".
E tudo vai seguir-se neste ritmo demente: as coincidências multiplicam-se para desgastarem a ideia de um Sentido da História e todos agem como eco de outros que anteriormente julgaram agir (Biely no lugar de Nietzsche, Varese parodiando desastradamente as bravatas guerreiras de Apollinaire).
Mas só pouco mais tarde é que a conceptualização entre em cena. O modelo parte de Paul Morand, que trazia sempre consigo uma versão artesanal dos Macintosh do nosso tempo, isto é, uma maleta-escritório, que transportava pelos grandes e luxuosos comboios europeus. Ora foi Morand quem inspirou Marcel Duchamp, criador de uma boîte-en-valise que constitui a imagem genial e definitiva da arte portátil. Porque essa mala continha uma reprodução em miniatura de todas as obras do próprio Marcel Duchamp. Eis a escala em miniatura promovida a conceito (ou, se preferirem, eis o conceito reduzido à miniatura de um conceito, ou às dimensões das cadeirinhas de Adília Lopes).
3. Daqui em diante, Vila-Matas irá conduzir-nos pela aventura enlouquecida e fascinante da literatura portátil, isto é, da "apoteose dos pesos pluma na história da literatura". O mais curioso é o modo como consegue atravessar os chamados problemas teóricos sem mesmo chegar a enunciá-los. Em larga medida, já assistimos ao fim das grandes narrativas de que nos falou Jean-François Lyotard. Mas temos muito mais. De Duchamp passamos a Walter Benjamin (de quem se assinala o tamanho minúsculo da caligrafia – e aqui seria interessante o confronto com Vergílio Ferreira, por exemplo), e de uma invenção que a este se atribui: a de uma máquina de pesar livros capaz de detetar com precisão absoluta o carácter insuportável de certas obras, o que significa na prática o seu carácter intransportável. E encontramos aqui o problema da obra de arte na era da usa reprodutibilidade técnica e a questão da perda da aura enquanto marca do sagrado artístico. Ficamos a saber que ''Walter Benjamin era uma alma gémea de Marcel Duchamp. Tanto um como o outro eram ao mesmo tempo vagabundos, sempre a caminho, exilados do mundo da arte e colecionadores carregados de objetos, isto é, de paixões. Tanto um como outro sabiam que miniaturizar é tornar portátil".
Eles estão na origem da criação de uma sociedade secreta de que Vila-Matas nos conta a história: a sociedade dos shandys, palavra que no dialeto do condado de Yorkshire, onde Sterne viveu parte da sua vida, significava "alegre", "louco", "volúvel". Eis os traços essenciais dos grandes nomes da arte portátil. A que se juntam alguns outros: "espírito de inovação, sexualidade extrema, ausência total de grande desígnio, nomadismo infatigável, tensa coexistência coma figura do duplo, simpatia em relação à negritude, tendência para cultivar a arte da insolência".
Talvez seja altura de perguntarmos: a par de Cendras ou Valéry Larbaud, de Picabia ou Georgia O'Keefe, de Bergamin ou Walter de la Mare, quem serão os shandys da arte e da literatura portuguesa? Poucas probabilidades do lado de Torga, Régio ou Manuel Alegre. Talvez seja melhor procurarmos para as bandas de Ruben A ou Herberto Hélder, de O'Neill ou Adília Lopes. Mas a lista fica em aberto – como convém.


A Literatura Portátil”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sexta-feira, 16 de abril de 1993.




“A literatura portátil de Adília Lopes – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 03-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/a-literatura-portatil-de-adilia-lopes.html



terça-feira, 1 de outubro de 2019

O estranho prazer do poeta-tradutor – Crónica de Eduardo Prado Coelho





A TRANSMISSÃO DO SEGREDO

1. Há alguns anos, numa Universidade do Rio de Janeiro, participava num daqueles colóquios literários com diversas intervenções seguidas de comentários e perguntas mais ou menos oportunas, quando olhei de repente para os vidros da janela e percebi que, embuçada naquele pesadelo de palavras sem fim, a noite tinha chegado. Quando foi de novo a minha vez de falar, assinalei o facto com estas palavras muito simples: "e subitamente é noite". Para o poeta Albano Martins, que estava entre os participantes do colóquio (a sua obra tem sido objeto privilegiado de estudo nos meios britânicos), a minha frase cintilou como uma citação que de facto era. Eu tinha clandestinamente evocado um poema de Salvatore Quasimodo, que, na tradução que Albano Martins nos dá agora, diz o seguinte:
“Cada um de nós está só no coração da terra atravessado por um raio de sol: e subitamente é noite."
É assim que os versos funcionam como sinais noturnos que vão tecendo o silêncio das cumplicidades. Porque, como escreveu Sandro Penna, "o mundo que vos parece feito de cadeias / está todo tecido de harmonias profundas". Vou um pouco mais longe: se a memória me não atraiçoa, estes versos de Quasimodo descobri-os há muito tempo numa versão que deles me chegava num pequeno livro de José Carlos de Vasconcelos, e foi precisamente a partir daí que a poesia deste grande poeta italiano me começou a fascinar – afinal, coisas tão precárias e breves, meia-dúzia de palavras quase banais, e que nos vinculam pela vida fora. Percebo assim o estranho prazer de um poeta-tradutor que procura salvar na sua própria língua coisas tão simples como o poema Eterno de Ungaretti: "Entre uma flor colhida e outra dada / o inexprimível nada." Ou mesmo a beleza eriçada de um único verso também de Ungaretti: "Um enxame copula-se no sangue" (o poema intitula-se Babel). E compreendo também que toda a tragédia quase insuportável de Pavese se possa condensar na estranha obsessão de um único verso: ''Virá a morte e terá os teus olhos". Um magnífico fotógrafo italiano, Mario Giacomelli, tem um ciclo de fotografias sob este título. Também ele ficou preso destas palavras.
2. O livro a que me tenho estado a referir intitula-se "Dez Poetas Italianos Contemporâneos" em seleção, tradução e notas de Albano Martins com um desenho de Carlos Reis nas Publicações Dom Quixote. Pertence à magnífica coleção O Aprendiz de Feiticeiro, que Cruz Santos iniciou na Oira do Dia. É da mais elementar justiça assinalar o trabalho absolutamente excecional que algumas editoras têm vindo a realizar no domínio da tradução poética. É o caso da Assírio e Alvim que há pouco tempo publicou "O tempo aprazado" de Ingeborg Bachmann, autora mais conhecida como romancista do que como poeta ou ensaísta - a seleção, introdução e tradução pertencem a Judite Berkemeier e João Barrento. O mesmo João Barrento, aparentemente incansável nestas tarefas, tinha-nos proposto anteriormente "A sede entre os limites" de Ulla Hahn, na Relógio d'Água. E é da Relógio d'Água que nos chega, em tradução de Maria de Lourdes Guimarães, "A destruição do nada e outros poemas" de Thom Gunn. Imprescindível referir também a atividade da Cotovia, salientando apenas duas iniciativas recentes do maior interesse: as "Reflexões sobre o Sr. Pessoa" de John Wain, em tradução de João Almeida Flor e com um comentário de Joaquim Manuel Magalhães, e os "Poemas" de Charles Tomlinson num volume organizado por Gualter Cunha.
Na maior parte dos casos, estas traduções aparecem em edições bilingues - felizmente. Não sucede o mesmo com os "Dez Poetas Italianos Contemporâneos" de Albano Martins, e a minha preguiça de leitor fica um pouco frustrada. Quando leio esta estrofe belíssima:
"Rapazes correm sobre a erva, e parece / que os dispersa o vento. Disperso, porém, / só o meu coração, no qual perdura um vivo / relâmpago (oh juventude) daquelas / camisas brancas estampadas no verde", eu gostaria imenso de saber no próprio momento da leitura que palavras italianas estão por detrás dos vocábulos portugueses e que ordem as reúne e de igual modo dispersa.
3. A excelente coleção Poetas em Mateus, da editora Quetzal, segue o mesmo critério. Aliás, isso não me espanta, porque esta iniciativa está ligada a um projeto inicial da Fundação Royaumont e de Rémy Hourcade, e conheço os pressupostos deste para optar por edições não bilingues. Não os vou discutir por agora, embora não os partilhe inteiramente. Sublinho apenas algumas edições recentes na Quetzal: "A magia dos números e outros poemas" de Kenneth Koch, “A Pura Verdade” de Philip Levine, "Uma onde e outros poemas" de John Asberry (espero que uma futura edição nos dê uma imagem mais completa deste extraordinário poeta), "O jardim da dor e outros poemas" de Thomas McCarthy e "Uma luz diferente" de John Montague.
A metodologia da tradução de Royaumont e Mateus é apaixonante. Durante alguns dias, na presença do autor, uma dezena de poetas trabalha à volta de uma mesa em torno da tradução de meia-dúzia de poemas. Multiplicam-se as versões, as sugestões, as correções, as indignações e os deslumbramentos. Posso pessoalmente garantir que, quando se entra neste jogo, o prazer de se descobrir e combinar os matizes de várias línguas é enorme e rapidamente se transforma num vício. E uma espécie de ritual e dança em torno da quimera de uma língua ideal – aquela com que o próprio poema de origem se confronta.
4. "A destruição do nada" de Tom Gunn é um livro esplêndido no modo como nos propõe, na sequência impessoal dos seus monólogos, uma espécie de heteronímia deambulatória que define melhor do que qualquer teoria o trabalho da tradução. O tradutor é como o poeta, escrevendo os poemas que não escreveu: um deus existindo apenas na sua criação. E transmitindo o segredo, palavra a palavra.
Na orla
da compreensão:
está o segredo.

Reconheces não
o seu conteúdo, mas
o facto que está
lá para ser reconhecido.

O pó levantado
por vendedores e dançarinos
lança reflexos no ar calmo
onde fica suspenso
como se nunca fosse pousar.

O segredo
é ainda segredo

não é uma proposição:
está em encontrar
o que liga o homem
à música, aos
ouvintes, ao nevoeiro
no topo do eucalipto,
ao pó descoberto no bocal
e, depois, em viver um instante
nessa luminosa interceção,
difundida no centro
como uma aranha branca de jardim
tão tranquila
que a julgas
ter-se tornado a sua própria teia,

um deus existindo
apenas na sua criação.

(“O concerto ao ar livre”)


“A transmissão do segredo”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sexta-feira, 19 de março de 1993.




“O estranho prazer do poeta-tradutor – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 01-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/o-estranho-prazer-do-poeta-tradutor-por.html



sábado, 28 de setembro de 2019

Pedras Negras, de Gastão Cruz – Crónica de Eduardo Prado Coelho




ESTAMOS VIVOS E NÃO TEMOS TEMPO

1. Foi uma excelente ideia ir buscar ao texto complementar de atualização que Robert Bréchon escreveu para a história da literatura portuguesa de Georges Le Gentil (Editions Michel Chandeigne) uma excelente síntese da poesia de Gastão Cruz e colocá-la nas badanas do seu último livro, "Pedras Negras". Porque as inevitavelmente breves linhas que Bréchon consagra a cada autor são sempre muito mais do que um alinhavar apressado de qualificações. E porque no caso de Gastão Cruz elas apontam em meia dúzia de palavras o essencial. Dizem o seguinte: "Um lirismo crítico em que a inteligência, a cultura (nomeadamente de língua inglesa) e a consciência da linguagem velam na orla da obscura floresta que o poema é. Na sua obra as paisagens são verdadeiramente estados de alma. E poder-se-ia dizer, retomando as suas próprias metáforas, que a poesia é ao mesmo tempo o fogo que o devora e a água que extingue este incêndio da alma".


No caso de "Pedras Negras", livro publicado pela Relógio d'Agua no final de 95, estamos diante de um texto que confirma e reforça todas as observações de Bréchon - só que a intensidade e a coerência deste livro são aqui levadas a um extremo que nunca tinha sido atingido por este autor. Sabemos que Gastão Cruz é um nome ligado à dinâmica criada em torno da revista "Poesia 61", de que foi ao mesmo tempo animador e teorizador. Sabemos ainda como os anos 60 foram os derradeiros de um processo que definiu o avanço da modernidade, e que consistia em fazer emergir em cada geração um pico de radicalidade simultaneamente polémica e afirmativa polarizada em torno de uma teoria e de uma revista ou de uma coleção. "Poesia 61" apareceu assim como a manifestação de uma elevada e mesmo exaltada consciência da densidade textual do poema, apoiada numa leitura muito atenta dos clássicos (de Camões a Sá de Miranda, da lírica medieval a Blake, de Dante a Camilo Pessanha), e que recusava as explosões discursivas para valorizar a emoção implosiva: o poema rebentava para dentro e disseminava os estilhaços da sua catástrofe num reduto extremamente concentrado de palavras. Atitude de recusa às facilidades de uma exausta hemorragia surrealista, mesmo quando em Luiza Neto Jorge o surrealismo reaparecia sob outras formas mais violentas. Atitude que, por outro lado, sufocava o sujeito lírico numa cápsula de linguagem, o que poderia talvez encontrar metáforas e referências de primeira qualidade na evolução teórica e criativa de Carlos de Oliveira. De qualquer modo, é entre esta atenção à materialidade da escrita e a distração deambulatória e voluntariamente fragmentada da grande poesia dos anos 70 que se colocam os parâmetros de toda a literatura dos nossos dias.
2. Tem razão Bréchon quando nos diz que "na sua obra as paisagens são verdadeiros estados de alma", desde que não se deduza daqui que estamos perante uma atitude de espiritualização do real. As paisagens são estados de alma porque elas reenviam para uma visibilidade evaporada - é mais por defeito do que por afirmação. E os estados de alma são paisagens porque há neles um acentuado índice de impessoalidade (ou melhor, de uma subjetividade impessoal, de rosto velado e mãos errantes). E isto que nos situa no inconfundível registo da poesia de Gastão Cruz: uma oscilação entre uma escassez de apoio referencial e um excesso de espessura do lado do objetual. Donde, o poema não se fecha em si próprio, longe disso, mas remete para qualquer coisa que nos aparece como "uma matéria negra" (para utilizar a excelente expressão de um interessante livro de teoria literária de Manuel Frias Martins). Ou, se quisermos, nos termos de Bréchon, para “a orla obscura da floresta". Se neste último livro nos sentimos tão intimamente afetados, é porque nunca esta obscuridade foi tão obscura.
Saliento ainda outro ponto. Por manifesta influência camoniana, Gastão Cruz, foi sempre um poeta sensível às reversibilidades dialéticas: citando de novo Bréchon, a poesia é ao mesmo tempo o fogo que destrói e a água que extingue o fogo. Mas este processo recorta-se contra um fundo indialetizável. O que define o livro "Pedras Negras" é o facto de que o indialetizável cresce, o deserto cresce, o não-tempo cresce, a morte avança sobre os lugares da vida. Há uma luta entre "o líquido frio indivisível" e “os veios do visível divisível". Assim se lê no belíssimo poema "No mar": "Queremos ouvir-te respirar, / mundo mudado, os que no mar excêntrico / soltam braços, lembrados de que / o ar / não os pode salvar. Mas é idêntico / ao ar o mar sem / centro, figura // que fulgura fora do teu / corpo de mármore, lavrado / pelo tempo, mundo a / que não pertencem os náufragos / amados e um dia perdidos / nesse líquido frio / indivisível. Se pudessem ouvir // o teu sopro, seriam / devolvidos aos veios do visível / divisível? As estrelas de / sombra desfazendo / um céu sem falhas deixariam / cair sobre eles / de novo a sua cinza." Sublinhe-se: se a respiração pudesse porventura salvar os náufragos, as estrelas da sombra acabariam por vencer: sobre eles cairia de novo a implacável cinza.
E porquê? Porque o domínio da "mão escura" é hoje simultaneamente do lado da vida e do lado da morte. Que a morte seja cada vez mais morte, isso apenas significa que a intensidade do negro é infinita (a pintura de Soulages não diz outra coisa): "Sem formas igualmente está a casa / o que a torna infinita". Mas que a vida seja cada vez mais algo que se inclina para o lado da morte, isso quer dizer que o indialetizável aumenta na medida em que o tempo se retira do próprio tempo: "É outra vez setembro. A tarde / rege o dia / O presente regressa Chove de // leve na areia fria / Os meses não começam Estamos sempre / encerrados no corpo que nos resta // O passado escurece / Os meses não regressam / Estamos vivos e já não temos tempo."
Pedras negras? Sim, aquelas que atravessam o tempo: "Manishutsu rei de Akhad fez narrar / que os seus barcos cruzaram / o mar inferior / e depois de vencidos trinta e dois / reis extraiu dos montes pedras negras // Atravessou o mar para buscar / a pedra onde a mensagem perdurasse / Mil quinhentas e dezanove casas / de escrita no obelisco estão gravadas / Mais de quatro mil anos já passaram". Donde, as pedras negras atravessam o tempo. O desejo louco que move este livro é que as pedras atravessem o tempo e o não-tempo, o dialetizável e o indialetizável – que sejam negras para isso, para poderem passar. Assim: "Tu, // guia, que dormiste o derradeiro / sono do fogo ouvindo no abismo / o sopro da serpente e me guardaste / desse vento que se move / o mar do pensamento, / busca, pedi, do mar profundo a porta // que na selva da luz se oculta, cava / na parede do / dia a realidade Para / fora do sonho me guiaste / Das palavras passadas descuidado / cego do anjo que o gelado rio // como serpente outra serpente guarda / as suas asas como escada usaste / para subir à cúpula fechada / Na clausura do tempo abriste um / arco e saímos por / ele a ver de novo os astros"


Crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras & Sons do jornal Público. Sábado, 1 de junho de 1996.




Pedras Negras, de Gastão Cruz – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 28-09-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/09/gastao-cruz-por-eduardo-prado-coelho.html



quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Como falar de Herberto Helder? – Crónica de Eduardo Prado Coelho



COMO FALAR DE HERBERTO HELDER?

1. Em parte, é claro, pela altíssima qualidade desta poesia, mas também pelo halo de silêncio com que o autor a rodeia, e que nem exclui o recurso ao arame farpado, a verdade é que leitores e críticos sentem uma espécie de pânico, ou terror, em falarem ou escreverem de Herbert Helder. Talvez o problema resida neste "sobre". A poesia de Herbert Helder desaloja qualquer posição de sobranceria ou arrogância em relação ao texto. O resultado desta humilhação consentida é uma espécie de afasia. Poderemos resolver a questão dizendo que se escreve "a partir de Herberto Helder", ou então, num ombro a ombro incerto, numa fraternidade de escrita forçosamente assimétrica, “com Herberto Helder''? Experimentemos.
2. Um texto recente de José F. Salgado, "Herberto Helder e a Arte d'os Selos: apontamentos para uma poética herbertiana", publicado no magnífico volume I dos "Santa Barbara Portuguesa Studies", coloca muito bem as coisas:"Na sua condição de híbrido irredutível - nem inocência, nem demoníaco, 'nem música nem cantaria'- a poesia escapa a qualquer tentativa de totalização, a qualquer esforço de interpretação. Como assinala Lindeza Diogo, 'o texto herbertiano é muito crítico do leitor, porque este, interessado na captação de energia através de representações significativas, leva para o meio dos enigmas um medo menor'. Trata-se de uma poesia resistente, reticente, à leitura. Porventura, mesmo à de Deus. 'Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos?’”.
Donde, o leitor deve levar para o meio dos enigmas um medo maior. Mas como falar com a boca selada de pavor?
3. A inibição crítica começa por ser o reconhecimento da impossibilidade da totalização. Isso nos é dito desde o título: na sua talha clássica, "do mundo" dá-nos a indicação de uma linha de fuga. Não "o mundo", entidade composta e fixada, mas "do mundo", fala ostensivamente em hemorragia e disseminação. Talvez por isso mesmo o crítico, ou, mais modestamente, o leitor-comentador, deveria falar, quando fala de Herberto Helder, em falar "de Herberto Helder" - à semelhança "do mundo". Em pura perda de sentido e de si. Em desequilíbrio: um "do" a mais, um "de" a mais, e tudo se perde, ou de nós foge.
4. "Do Mundo" apresenta-se como o prolongamento de um conjunto anterior, "Os Selos", e como a (re)escrita de um outro livro, "Retrato em Movimento", aqui recuperado naquilo "que foi possível fragmentariamente salvar". Este implacável rigor em relação a si mesmo, esta capacidade de devastação generalizada a que apenas escapam provisoriamente alguns destroços luminosos, não pode deixar de contribuir para aumentar o terror nas letras, e imobilizar sadicamente o leitor. Necessidade de ler sobre um horizonte de morte e destruição, com palavras sobreviventes e gestos náufragos. Política de terra queimada - onde tentaremos dar alguns passos hesitantes. Em desequilíbrio, em queda.
5. Toda esta poesia nos ajuda a aprender a arte do desequilíbrio. E, sobretudo, de como fazer desse desequilíbrio uma forma de andar, um diálogo com o vento, uma prática do "surf” poético: aprendizagem do uso produtivo da vaga, ou da memória bíblica de caminhar sobre as águas. O desequilíbrio como "miraculação do mundo".
Ao começar no desequilíbrio que move as próprias palavras. Leia-se na página 29: "a uma devagarosa mulher com cinco dedos potentes". Um "de" enreda a palavra para dentro de si mesma, mas, no processo de fragmentação interior, emerge, na permanente vacilação entre o nome comum (será que existe?) e o nome próprio, a palavra "rosa". Na página 37, "rosas divagadas pelas roseiras" imprimem o vago no cerne do vagar. No mesmo poema, o importante é a rosa no seu esplendor de corpo e nome: "E esperar que a lepra cubra os dedos, escrever: Rosa - I encadeado na rotação do nome. / Ir colher ao último alfabeto a rosa extremamente escrita." Repare-se mais uma vez na importância dos advérbios de modo. Na sua reticência, no seu retardamento, no seu retesamento, eles servem para "devagarar" os versos, fazendo que a demora se deixe habitar por uma expectativa erótica, femininamente intensificada.
6. Compreender também que tudo é lugar. Numa formulação pedante e pedestre, diríamos que há um processo expansivo de topologização. Não são apenas as coisas que funcionam como lugares - são também as palavras. Veja-se um exemplo da página 31: "as crianças entram no sono que as aguardava como uma sala". Portanto, as crianças não "adormecem", mas "entram no sono", e o sono é como uma sala (a aliteração ajuda a convecer-nos). Note-se ainda que a sala não "aguarda", mas "aguardava”, isto é, espetava desde sempre, intemporalidade do sono, as crianças que aí entram. Sala vazia, forrada de inconsciente e memória do mundo.
Veja-se agora na página 45 o verso em que se diz: "glicínias em declive pelo perfume dentro". Primeiro, a reversibilidade: não é o perfume que está nas glicínias, são as glicínias que estão no perfume. Segundo, estão "em declive".
Este ponto é importante. Ele permite-nos notar os principais eixos de deslocação no espaço da poesia de Herberto Helder: na zona mais forte, a verticalidade ascensional e eufórica ("este que chegou ao seu poema pelo mais alto que os poemas têm"), e que tende sempre a funcionar como uma explosão, uma abertura para o exterior; em contrapartida, a queda, a vertigem de cair no interior de si mesmo: processo de concentração, área de implosão e acumulação noturna de energias; por fim, a declinação dos corpos, o declive, a inclinação amorosa: “Beleza ou ciência: uma nova maneira súbita/ - os frutos unidos à sua árvore, / precipícios,I as mãos embriagadas.I E os animais aprofundam-se, encurvam-se os dias,I as pêras brilham,I o teu vestido é grande se te olho devagar.I O teu corpo transmite-se ao vestido.I Penso na glória do teu corpo./ E inclina-se a luz até os dias caírem dentro dos dias invisíveis./ A terra move-se sobre os lados, ensinas-me/ o que não saberei nunca: a água ronda".
Notar que, neste feixe de correntes, o que se omite é a horizontalidade - homenagem ao desequilíbrio, evidentemente. A não ser sob a forma de círculo (os passos em volta, a água ronda, a forma redonda da iluminação) que aparece como emanação transparente do núcleo mais puro das coisas.
Porque coisas e pessoas (qual a diferença em termos de amor?) adensam-se e soltam-se em sístoles e diástoles que correspondem à pulsação do mundo. Privilégio das crianças e dos animais. Nesse ponto, os comentários de José F. Salgado são extremamente pertinentes: "A localização do animal é indeterminável, indecidível: entre a objetividade da coisa e a subjetividade do humano, o animal põe em causa a oposição humano/coisa, é o meio termo intangível entre a familiaridade da subjetividade absoluta e a absoluta distância da coisa irremediavelmente estranha. Nem Absoluto Outro nem Mesmo, o animal faz desmoronar-se a aparente polidez dos lugares do sujeito e do objeto."
Os animais, sem dúvida, mas também as crianças -todos os seres que sabem toccar no centro de si próprios. Tocar - como o pé toca a água, no milagre da poesia que caminha sobre o mundo, transportando o seu cardume de palavras sôfregas.
Mas não vamos ficar por aqui.


Crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 10 de junho de 1995.




QUESTÃO DE TACTO

1. Continuemos a ler “Do Mundo", de Herberto Helder (Assírio e Alvim).
No texto anterior, referia-me aos seres que se tornam opacos à força de se acumularem no centro de si mesmos. Falava de animais, falava de crianças. Na página 37, lê-se: "Porque a criança atravessa tudo e toca já no centro de si mesma." Tentemos compreender. Primeiro, a criança atravessa tudo. Gostaria de sublinhar que, em Herberto Helder, existe uma vacilação permanente entre o micro e o macro, o doméstico e o cósmico. Podemos caracterizá-la como uma incessante e brutal mudança de escala. Quando se diz que a criança "atravessa tudo", isso significa que a sua correria (no quarto, no pátio da escola) é ao mesmo tempo, e desde sempre, uma correria cósmica – algo que percorre o mundo, que o divide, o corta como um sabre, uma espécie de "laser" ruidoso e ladino. Porque "cada criança / arranca-se à criança lustral com as pratas eriçadas na cabeça, a química / floração trazida acesa". O mesmo se a gente falar no "quotidiano estelar das matérias". Ou ainda: “E quem tem tanta memória que a massa de átomos, / quando passe, / encrespe, acorde, alumie a última criança? / O mistério é só esse; primeiro são cor de pólen, transfundem-se depois em palavras siderais, botânicas." Ou por vezes encontramos o movimento inverso, do cósmico ao doméstico: "Uma volta atmosférica num astro uma / volta do astro no forno uma volta·do forno / em si mesmo."
A ideia de fechamento explica o uso inesperado de certos verbos: por exemplo, a imagem dos seres abotoados. Assim: "e o avesso e o direito, pulmões, estômago, sangue que o corpo todo abotoa". Mas não poderemos deixar de notar como estes botões, frequentes, têm também uma outra função. A imagem do corpo em Herberto Helder pertence à tradição esquizofrénica: por mais que se abotoe, é um corpo furado, e os furos são os próprios botões que o abotoam. Por outras palavras, o exterior e o interior, o direito e o avesso estão num processo de permanente reversibilidade. O corpo é apenas um lugar de passagem entre a sublevação dos órgãos e as grandes massas do mundo. Daí a proliferação de botões que são feridas, chagas, válvulas, buracos, queimaduras. Daí também que a poesia seja como uma ciência do corpo a corpo, do corpo contra o corpo, através de uma forma de ver que seja uma iluminação da matéria mais espessa, das trevas intestinais, das vísceras em brasa: na medida em que "o olhar é um pensamento", esta ciência, ciência última ou poesia mais alta, "é ver com o corpo o corpo iluminado". E então? "E então a luz une-se a toda a volta e cai no abismo dos espelhos."
Outro ponto importante, este, o do infinito das simetrias. Ou, se preferirem, o dos espelhos: o corpo a corpo é também um espelho diante de outro espelho, ilimitadamente outro. "Um espelho em frente de um espelho: imagem / que arranca da imagem, oh / maravilha do profundo de si, fonte fechada / na sua obra, luz que se faz / para se ver a luz."
2. Poderemos falar num "tema" deste livro? A expressão é arriscada. Alguém poderia supor que alguns dos tópicos que tenho vindo a inventariar (o desequilíbrio que precipita as palavras umas para dentro das outras, o devir-lugar de todas as coisas, a reversibilidade generalizada, a ascensionalidade eufórica, a queda implosiva, a circularidade emergente, a oscilação entre o cósmico e o doméstico, o corpo furado, o jogo itinerante dos espelhos, a simetria iluminada) seriam como que "processos". Não, se os entendermos como "técnicas do discurso poético". Sim, se tomarmos a palavra na aceção de Whitehead. Isto é, o único “tema" são os “processos".
Se lermos com alguma atenção, e um desmedido enleio, os poemas deste livro de Herberto Helder, verificamos que em todos eles existe um processo de transmissão de energia. Transmissão ou intensificação, mas a diferença é secundária. Transmite-se normalmente do mesmo ao outro. A intensificação é uma transmissão do mesmo ao mesmo, nada mais. Daí que cada poema agite uma interrogação: como passa a energia da mãe ao filho? como passa a energia do oleiro ao vaso? como passa a energia da dança ritual aos astros? como passa a energia do mestre ao discípulo? e do poeta ao poema? e da matéria ou ouro? e da palavra comum ao nome único e próprio? e do amante à amada? e da amada ao amante ("ensina-me o que não saberei nunca")?
A trama de leitura que nos favorece o acesso a cada poema tece-se em dois lances distintos: em primeiro lugar, precisamos de identificar o movimento dominante (por exemplo, no primeiro poema, a imagem do nascimento, a relação mãe-filho); em segundo lugar, verificarmos como este tema dominante está sobredeterminado por todos os outros. Mas existem ainda dois outros aspetos que merecem ser valorizados. Por um lado, todos os processos de transmissão de energia são dominados por dois paradigmas: o da criação poética (a mãe que dá à luz um filho é um modelo de arte poética), o da relação sexual (a distância que a energia percorre é sempre a da diferença entre os sexos: "o espaço entre os dois nomes: / eu e o mundo, mundo e poema, poema e nascimento. / Ou a morte, substantivo que raia"). Por outro lado, o ensinamento destes dois paradigmas mostra-nos que estamos perante polos com cargas diferentes: há sempre um polo positivo e um polo negativo, há sempre uma assimetria primordial.
Poderíamos dizer que o sexual visa a fusão (redução do outro ao mesmo: 1 + 1 = 1) e que o poético visa a disseminação (resistência do outro ao mesmo: 1+ 1 = infinito), mas seria uma simplificação abusiva. Nesta poesia, existe uma constante contaminação entre o poético e o sexual: a disseminação explode na fusão, a fusão implode na disseminação. "E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as noites / caem dentro dos dias – e eu estudo / astros desmoronados, mananciais, o segredo."
3. Como passa a energia? Repare-se que esta pergunta é apenas uma variação sobre a pergunta de que partimos: como falar de Herberto Helder?
Digamos que o que passa é muito pouco, ou nada: apenas a possibilidade de continuar a passar, e, por pouco que seja, passar cada vez mais: "a arte do ar queimado que passa pela boca". Podemos enumerar algumas modalidades da passagem. Por exemplo, a emanação: "como no corpo se forma o vestido". Por exemplo, a epidemia, os vírus, a expansão da lepra. Ou ainda: a devoração ("se se pudesse, se um inseto exímio pudesse, / com o seu nome de princípio, / entrar numa turquesa, monstruosa pela amplitude / da cor e do exemplo, / se até ao coração da pedra e dele mesmo / devorasse a matéria exaltada”).
Mas em todos estes processos há um que me apetece privilegiar. Nos cumes da altura em que o poema se arqueia existe um lugar que, muito banalmente (para quê sermos originais onde não há razão para isso?), é acima de tudo um lugar de harmonia: ouro, rosa. "É essa coisa que fazes / obscuramente – se um dia és lenha suada ardes / da tua própria resina se / torneias o vaso dás-lhe pela cinta quieta / uma pancada salgada um donaire / de onda, e tocas na curva da bilha: e ficas harmonioso –“.
O processo é – já o sentiram na pele – o de tocar. Aproximação com reserva, retraimento, um medo ainda maior, mas também acesso ao limiar do acesso, ao mais aceso do absoluto. O tocar declina-se em múltiplas formas de incitamento e recuo: no frémito, no arrepio, nos estremecimento, no corpo eriçado de prata e sal. Questão de tacto.

Questão de tacto”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 17 de junho de 1995, p. 12.




“Como falar de Herberto Helder? – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 25-09-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/09/como-falar-de-herberto-helder.html