NINGUÉM
FICA DE FORA
1. Dum modo
discreto, o ensaísmo português vai-nos dando trabalhos de grande qualidade.
Alguns de formato mais universitário, como o magnífico estudo de Mário Vieira
de Carvalho sobre o São Carlos e a cultura da ópera em Portugal. Outros
apresentam-se como Investigações transfiguradas pelo sentido estético e o prazer
da escrita: é o caso de um pequeno volume extremamente interessante de Rosa Alice
Branco intitulado "O que falta ao mundo para ser quadro" (Limiar).
Voltando
de novo às edições da Hiena, gostaria de chamar a atenção para um livro que
surgiu ainda em 92, mas que não teve, tanto quanto sei, as repercussões que se justificavam.
Refiro-me a "Na órbita de Saturno", da autoria de Fernando Pinto
Amaral. Como se sabe, Pinto do Amaral tem desenvolvido uma tripla atividade de
poeta, tradutor (recorde-se o sucesso que obteve a sua tradução de "Les Fleurs
du Mal", de Baudelaire) e crítico. Neste último domínio, tem sido,
juntamente com Joaquim Manuel Magalhães, Fernando Guimarães, Maria de Fátima
Marinha, Fernando J. B. Martinho e António Guerreiro, uma das pessoas que
melhor têm acompanhado a mais recente produção poética portuguesa, a que
dedicou um importante ensaio intitulado "O Mosaico Fluido". No plano
teórico, tem sido a noção de pós-modernidade que mais o tem interessado, com o
resultado paradoxal de vermos a teoria desenvolver-se numa relação com o que
resiste à teoria (a dramaturgia deste combate está bem presente nas páginas de
"Na Órbita de Saturno"). Como seria fácil de prever, a
pós-modernidade corresponde de um modo privilegiado ao afeto fundamental que
parece envolver toda a sua atividade literária, e que vai da
"Acédia", título do seu primeiro livro de poesia, até à melancolia
dos seus mais recentes textos publicados (recentes, pelo menos, na data de
publicação).
2. Contudo,
lembro-me ainda muito bem da convicção e veemência com que, em dado momento, me
apareceu um jovem estudante que queria passar para os cursos de Letras, e abandonar
a orientação escolar que inicialmente tomara, e que suponho que era a Medicina
(o que explica que Pinto do Amaral fale das suas "afinidades biográficas"
com Starobinski). Habitualmente, estes quadros entusiásticos de pessoas que não
resistem ao apelo das artes provocam-me reações de suspeita e prudência. No
caso de Pinto do Amaral, essa atitude durou muito pouco. A solidez da sua informação,
a maturidade da sua escrita e a paixão com que se entregou às novas realidades escolares,
provaram-me rapidamente que se tratava de um caso à parte. Texto a texto, tenho
vindo a confirmar essa intuição.
3. "Na
Órbita de Saturno", título talvez demasiado "cultural", é uma
curiosa encenação em torno de uma espécie de trauma, de uma ferida aberta, um
vazio emocional de infinitas repercussões. Logo de entrada, percebemos que o
autor encontrou a sua estratégia, precisamente em Starobinski: o remédio para o
mal encontra-se na própria causa que provocou o mal, embora os efeitos desse
remédio nunca permitam que as coisas voltem a ser o que tinham sido antes, não
há regresso possível, e a perda é irremediável, incurável no processo da própria
cura, porque declinando sempre uma diferença que se refrata em todos os
patamares da existência, "essa luz cor-de-sangue a pulsar toda a noite,
como uma ferida aberta no espaço mais negro, como esta ferida que nunca deixei
de sentir e continua ainda aqui, sem cura".
Entramos
depois numa das zonas enciclopédicas deste livro, aquela que nos convida para
uma travessia do destino da teoria literária (a outra zona aparecerá mais
tarde, no ensaio final, a propósito do próprio tema da melancolia). Aqui
devemos dizer que as qualidades didáticas de Fernando Pinto do Amaral são
notáveis e que existe um enorme equilíbrio no modo como se posiciona perante
esta área de estudos. Como ele próprio reconhece, à partida achava a teoria "entediante
e desnecessária". Mas procurou não ter a atitude algo histérica dos que
rejeitam toda a teoria em nome de uma espécie de intocabilidade do objeto
literário, o que os leva a rejeitar esbracejantemente aquilo que desconhecem,
levando-nos a supor que rejeitam para poderem ter a posição confortável de
continuarem a desconhecer. Por outro lado, Pinto do Amaral, ao
"descobrir" a teoria e os seus prazeres específicos, não entrou
naquela insensata euforia de pensar que todos os problemas do mundo se tinham
resolvido e que os restantes não passavam de absurdas quimeras. E por isso nos
diz: "Cada vez estou mais convencido de que são sobretudo as perguntas mais
irrespondíveis aquelas que têm de continuar a fazer-se ouvir – ao menos para
sentirmos na sua ausência de resposta essa contradição, afinal tão humana, de
algo que só se torna presente na medida em que parece mais distante ou
inacessível”.
Não
teria grande interesse resumir em poucas linhas um percurso de problemas e
autores que, no próprio texto do autor, já é forçosamente rapsódico. Digamos
apenas que a contribuição mais aliciante se situa, do meu ponto de vista, no modo
como Pinto do Amaral nos mostra o inevitável enredamento entre estruturalismo e
pós-estruturalismo, e a correlação profunda entre pós-estruturalismo e pós-modernidade,
com a sua permanente instabilização de todas as referências e o seu gosto pelos
aspetos mais "voláteis e intersticiais”. Gostaria de sublinhar que o
grande mérito de Fernando Pinto do Amaral consiste em não pretender
precipitar-se para um juízo de valor, mas procurar antes do mais compreender e
analisar. Neste plano, estou inteiramente de acordo com o autor quando ele nos diz
que "o pós-estruturalismo tenderá, em geral, a manter uma certa consciência
estrutural do texto, mas que, no seio dessa topologia, aumentarão de importância
as fluidas relações que a perturbam e envolvem, em detrimento da simples
descrição dessa topologia. Ou, dito doutro modo, interessará acima de tudo
darmo-nos conta do que se move entre as estruturas ligando-as ou desligando-as
umas às outras, em prejuízo da simples análise dessas mesmas estruturas. Na verdade,
a maioria das novas correntes teóricas tem vindo a definir-se por graduais
alterações de centros de gravidade, mais do que propriamente por grandes
rupturas em relação ao panorama anterior".
4. Gostaria
de voltar a citar a frase: "algo que só se torna presente na medida em que
parece mais distante e inacessível". Como acontece em múltiplas
formulações aparentemente "científicas" do texto de Fernando Pinto do
Amaral, um leitor mais atento poderá sublinhar que elas são suscetíveis de
múltiplas leituras em planos muito diversos da nossa vida pessoal. Ao duplicar o
seu texto por um "texto de rodapé" de aparência
"autobiográfica" (mas as fronteiras são aqui bastante indecidíveis), Pinto
do Amaral sabia que corria o risco de lhe dizerem que imitava "o J.D.",
isto é, Jacques Derrida, mas ao mesmo tempo aceitou a inevitabilidade desse
risco para poder dar o reverso afetivo de cada fórmula ou conceito (da
"teoria" enquanto contemplação até à "introdução aos estudos
literários", que é uma introdução que não nos introduz em nenhum espaço,
não há um "dentro" e um "fora", mas somente um processo de
sedução em que tudo se move desde sempre no interior das palavras): "Quem
se ri fica sempre de fora, mas não existe fora, ninguém fica de fora.”
“Ninguém fica de fora”, crónica
de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sexta-feira,
17 de setembro de 1993.
“Na órbita de Saturno,
de Fernando Pinto do Amaral – Crónica
de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 05-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/fernando-pinto-do-amaral-por-eduardo.html
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