UM LIVRO
ABERTO É TAMBÉM A NOITE
1. "Durante
a noite, imaginar Duras na cama dela a dormir sozinha numa casa de quatrocentos
metros quadrados".
É Duras quem
escreve. Ou fala. Apesar de o livro se chamar "Ecrire". Porque é sem
dúvida o mais oral dos livros de Duras. Como se não tivesse sido escrito. Como
se fosse ditado. O modo como este livro "aparece" e depois se "constrói”
poderá explicar a sua desarrumação interior. Um dia, o cineasta Benoit Jacquot
foi visitar Marguerite Duras a Trouville. Ela levou-o a ver numa localidade
próxima, Vauville, o túmulo de um jovem aviador inglês, supostamente chamado W.
J. Cliffe, que nos últimos dias da guerra, talvez no último, porque não?, tinha
sido abatido pelos alemães e viera ali cair. O avião desfez-se sobre uma
árvore, e o jovem aviador ficou prisioneiro do avião. A população de Vauville
fez uma espécie de vigília, com cantos e flores, orações e choros, durante
várias noites, até que conseguiram tirar o corpo dele do avião. Foi uma
operação difícil, porque o corpo ficara enredado numa rede de aço e ramos de
árvore. Enterraram-no. Um ano depois, um homem já idoso veio visitar o túmulo
do jovem aviador, e falou dele, indicando o seu nome. Durante oito anos, voltou
regularmente. Até que desapareceu. Uma lápide, um nome de ressonâncias mais ou
menos enigmáticas (duas iniciadas pelo meio), um destino secreto e uma
fidelidade essencial, tudo isto tinha condições para que a figura velada pela
morte pudesse entrar na galeria um pouco espectral das personagens durassianas.
Benoit Jacquot filmou Duras a contar a história do jovem aviador. E depois surgiu
a ideia de um segundo filme, em que Duras fala da escrita. E por isso que,
mesmo se o texto foi reescrito para publicação em livro (o que não é certo), a
escrita conserva todas as marcas da oralidade. Mas não da "nossa
oralidade". Pelo contrário. De uma "oralidade" que apenas existe
num entrecho de permanente oscilação entre o escrito e o falado, e que não
podemos encontrar senão nos próprios textos de Duras, na sua sintaxe
absolutamente inovadora na literatura francesa, capaz de se desenvolver segundo
regras de construção e distorção que parecem surgir de um espaço de tipo
analítico e transferencial.
O livro
inclui mais três textos, oriundos de circunstâncias diversas: "Roma",
"Le nombre pur" e "L'exposition de la peinture". Livro de circunstância,
portanto. Frágil, menor, no seu estatuto. Livro em que a escrita tem uma
espécie de fadiga íntima – como se hesitasse em cada passo, ou passagem.
Contudo, livro em que Duras nos acompanha uma vez mais, com as suas obsessões,
com a sua loucura, com a sua exigência desmedida. E por isso mesmo é um livro a
que nos agarramos, frase a frase, aos pedaços de um texto desmantelado. Entre o
naufrágio e o êxtase. E na expectativa de um outro livro, a sair esta semana na
P.O.L., e que se intitula "Le Monde Extérieur". Livro, este, de que
nada se sabe. Duras saberá? "Escrever livros ainda desconhecidos de mim e
nunca ainda decididos por mim e nunca decididos por ninguém".
2. O grande
motivo deste livro é simples de enunciar, e talvez assustadoramente banal: a
escrita implica isolamento, mais do que "isolamento", porque a
palavra é excessivamente "física", implica "solidão", isto
é, a desertificação do espaço em volta, mas uma desertificação que só pode ser
passional, que só pode exigir uma espécie de inflexibilidade da paixão (nada
mostrar do que se escreve aos amantes que estão de passagem), e esta clausura
do espaço é também uma linha de separação que se introduz no interior da
própria linguagem, não entre as palavras-da-literatura e as
palavras-não-literárias, mas uma linha que atravessa todas as palavras, fazendo
que haja uma espécie de dia sociabilizado de cada palavra, e de noite intratável
dessa mesma palavra, e escrever é assim convocar a noite de cada palavra, a
noite do mundo exterior, as mil e uma noites das palavras, o sono aceso das
palavras, e a noite à volta delas como um firmamento inamovível.
Um dia,
Raymond Queneau, tendo lido um manuscrito de Duras, disse-lhe: "Ne faites
rien d'autre que ça, écrivez". Samuel Beckett, em resposta famosa a um
inquérito do "Libération", em que se perguntava: "Porque
escreve?", respondeu: "Bon qu'à ça". Apenas.
A grande
interrogação é esta: que distingue as pessoas que somente usam no seu
quotidiano a mais funcional e utilitária das escritas, ou mesmo aquelas que,
por profissão escrevem, como são os jornalistas, cumprindo as voltas da
universal reportagem de que fala Mallarmé, das outras pessoas, daquelas um
pouco raras para quem escrever é a única determinação essencial do seu próprio
destino? E que nos liga, a alguns de nós também, não a todos, ao destino dessas
personagens, de tal forma que nos agarramos como órfãos aos restos das suas
frases, às ruínas dos seus textos, como que na convicção de que mesmo na
palavra em desastre poderemos descobrir por entre os escombros a frase decisiva
e essencial da nossa existência?
3. O mais
apaixonante deste livro de Duras é seguirmos a deslocação da pergunta. Porque a
pergunta sobre a escrita é uma pergunta que viaja pelo mundo. "A minha escrita
levei-a sempre comigo onde quer que fosse. A Paris. A Trouville. A Nova Iorque.
Foi em Trouville que me detive na loucura de me tornar LoIa Valérie Stein. Foi também
em Trouville que surgiu o nome de Yann Andréa Steiner. Há um ano". Vemos assim
que a escrita está ligada a outros enigmas. Eu gostaria de falar de casas. Como
escreveu Herberto Helder, "Falemos de casas, da morte. Casas são rosas /
para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança / nos abandona para
sempre. / Casas são rios, diuturnos, noturnos rios / celestes que fulguram
lentamente / até uma baía fria – que talvez não exista, / como uma secreta eternidade.
/ Falemos de casas como quem fala da sua alma / entre um incêndio / junto ao
modelo das searas, / na aprendizagem da paciência de vê-las erguer / e morrer
com um pouco, um pouco / de beleza". Em Duras, as casas são fundamentais.
Ela começa o livro desta maneira soberba: "É numa casa que se está só. E
não fora dela, mas dentro dela". E por isso nos fala incessantemente da
casa de Deauville, ou da casa de Neauphle-Ie-Château, paga apenas com dinheiro
da escrita, "dinheiro à vista", sublinha Duras (Saramago, numa
entrevista à "Visão", dirá aproximadamente o mesmo da sua casa em
Lanzarote). A escrita de Duras vai de casa em casa, passando pelo
"apartamento de Paris" (onde Benoit Jacquot a filmou). Tal como vai
de nome em nome.
Porque, no fio dos enigmas com
que se vai tecendo a loucura do dia, existe ainda o nome, que é sempre, na
definição exígua do que nos é próprio, a palavra que se fecha sobre nós e traça
o lugar da nossa solidão irredutível. Isso é mais visível (isto é: torna-se
mais gritante) quando se trata de um nome próprio numa lápide: W. J. Cliffe.
Mas é uma condição partilhada (mesmo por aqueles que sempre pensam noutra coisa).
A escrita de Duras é feita de lugares, isto é, de pontos do mundo em que existe
um vínculo entre um nome e uma clausura do espaço. Ou, se preferirem, entre um
nome e a sua noite. É por isso que um livro aberto é também a noite. Uma vez
que um espaço se fecha, na clausura da escrita, tudo o que dele ficou de fora
pertence ainda ao seu dentro. Da noite da escrita não há exterior, a não ser
que tudo se tenha tornado definitivamente exterior sem mais nada.
“Um livro aberto é também a
noite”,
crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do
jornal Público. Sexta-feira, 06 de outubro de 1993.
Marguerite Duras -
"Écrire" (ARTE)
Assise face à la
caméra, dans sa maison de Neauphle-le-Château, Marguerite Duras s'entretient
avec Benoit Jacquot sur son rapport à l'écriture, à la solitude, et à cette
maison de la banlieue parisienne où elle écrivit "Le vice-consul" et
"Le ravissement de Lol V. Stein".
“Duras, c'est tout”,
crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público.
Sábado, 14 de outubro de 1995, p. 12.
“Écrire, de Marguerite Duras – Crónica de Eduardo
Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 06-10-2019.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/marguerite-duras-ecrire.html
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