quarta-feira, 21 de julho de 2021

Ai, dona fea, fostes-vos queixar, Joam Garcia de Guilhade


 

Leia o Texto A. Se necessário, consulte as notas.

 

TEXTO A

 

Ai, dona fea, fostes-vos queixar

que vos nunca louv[o] em meu cantar;

mais ora quero fazer um cantar

em que vos loarei toda via;

e vedes como vos quero loar:

dona fea, velha e sandia!

 

Dona fea, se Deus mi pardom,

pois avedes [a]tam gram coraçom

que vos eu loe, em esta razom

vos quero ja loar toda via;

e vedes qual sera a loaçom:

dona fea, velha e sandia!

 

Dona fea, nunca vos eu loei

em meu trobar, pero muito trobei;

mais ora ja um bom cantar farei,

em que vos loarei toda via;

e direi-vos como vos loarei:

dona fea, velha e sandia!

 

Joam Garcia de Guilhade, in A Lírica Galego-Portuguesa, edição de Elsa Gonçalves

e Maria Ana Ramos, 2.ª ed., Lisboa, Comunicação, 1985, p. 160.

 

notas

mais ora (verso 3) – mas agora.

loarei (verso 4) – louvarei; elogiarei.

toda via (verso 4) – de qualquer modo.

sandia (verso 6) – louca; insensata.

[a]tam gram coraçom (verso 8) – tão grande desejo.

em esta razom (verso 9) – por este motivo.

pero (verso 14) – ainda que.

 

1. Refira dois aspetos que evidenciam a atitude satírica do trovador.

 

2. Explicite de que modo a cantiga de Joam Garcia de Guilhade assenta em processos de repetição e variação.

 

 ***

Leia o Texto B. Se necessário, consulte as notas.

 

TEXTO B

 

Redação

Uma senhora pediu-me

um poema de amor.

 

Não de amor por ela,

mas «de amor, de amor».

 

À parte aquelas

trivialidades

 

«minha rosa, lua

do meu céu interior»

que podia eu dizer

para ela, a não destinatária,

que não fosse por ela?

 

Sem objeto, o poema

é uma redação

dos 100 Modelos

de Cartas de Amor.

 

Alexandre O’Neill, Poesias Completas & Dispersos, edição de Maria Antónia Oliveira,

Lisboa, Assírio & Alvim, 2017, p. 521.

 

notas

Redação (título) – ato ou efeito de redigir; trabalho escolar que consiste no desenvolvimento, por escrito, de um determinado tema.

100 Modelos / de Cartas de Amor (versos 14-15) – referência a livros que ofereciam modelos de cartas de amor, podendo estes ser adaptados para diferentes destinatários.

 

3. Indique duas das razões que levam o poeta a considerar que «Sem objeto, o poema / é uma redação / dos 100 Modelos / de Cartas de Amor.» (versos 12-15).

 

4. Releia os dois textos.

Explique a importância que as ações das figuras femininas assumem em cada uma das composições poéticas: «queixar» (Texto A, verso 1) e «pediu-me» (Texto B, verso 1).

 

 

CHAVE DE CORREÇÃO

 

1. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

A atitude satírica do trovador é evidenciada pelos aspetos seguintes:

a caracterização impiedosa da mulher;

a subversão dos códigos do amor cortês, nomeadamente no que se refere aos atributos da destinatária;

a paródia ao tema central da cantiga de amor, o louvor da dama.

 

2. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

Os processos de repetição e variação na cantiga podem ser explicitados deste modo:

a intenção do trovador é reiterada, em cada estrofe, com palavras diferentes, mas com sentido equivalente;

o verbo «loar» (vv. 5 e 10), usado repetidamente ao longo do poema, surge conjugado em diversos tempos e modos;

o verso 6 é repetido, na mesma posição (refrão), nas estrofes seguintes; o verso 4 é repetido, integralmente, no verso 16 e, com uma variação, no verso 10.

 

3. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

As razões que levam o poeta a considerar que «Sem objeto, o poema / é uma redação / dos 100 Modelos / de Cartas de Amor.» (vv. 12-15) são as seguintes:

o conceito de «poema» (v. 12), enquanto criação artística, opõe-se ao conceito de «redação» (v. 13), enquanto mero exercício de escrita;

a ausência de destinatário reduz o poema de amor a um texto que apenas reproduz «Modelos» (v. 14);

o facto de o poema não ter «objeto» (v. 12) faz com que redunde num repositório de lugares-comuns e ideias banais («trivialidades» v. 6).

 

4. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

A importância que as ações das figuras femininas assumem em cada uma das composições poéticas pode ser explicada deste modo:

− no Texto A, as queixas da «dona fea» (v. 1) levam o trovador a compor uma cantiga para «louvar», ironicamente, os seus traços «fea, velha e sandia» (v. 6);

− no Texto B, o pedido da «senhora» (v. 1) constitui o motivo para uma reflexão sobre a impossibilidade de escrever um poema de amor por encomenda.

 

Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa, Prova 734, 1.ª Fase, Ensino Secundário (11.º Ano de Escolaridade, Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho). IAVE, 2021. Prova disponível em: https://iave.pt/wp-content/uploads/2021/07/EX-LitP734-F1-2021_net.pdf . Critérios de classificação disponíveis em https://iave.pt/wp-content/uploads/2021/07/EX-LitP734-F1-2021-CC-VT_net.pdf

 



CARREIRO, José. “Ai, dona fea, fostes-vos queixar, Joam Garcia de Guilhade”. Portugal, Folha de Poesia, 21-07-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/07/ai-dona-fea-fostes-vos-queixar-joam.html



quinta-feira, 15 de julho de 2021

O meu olhar azul como o céu, Alberto Caeiro

 



O meu olhar azul como o céu

É calmo como a água ao sol.

É assim, azul e calmo,

Porque não interroga nem se espanta...

 

Se eu interrogasse e me espantasse

Não nasciam flores novas nos prados

Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo.

 

(Mesmo se nascessem flores novas no prado

E se o sol mudasse para mais belo,

Eu sentiria menos flores no prado

E achava mais feio o sol...

Porque tudo é como é e assim é que é,

E eu aceito, e nem agradeço,

Para não parecer que penso nisso...)

 

Alberto Caeiro, Poesia, edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, 3.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, p. 57.

 

QUESTIONÁRIO

 

1. Relacione as comparações presentes nos dois primeiros versos com o sentido do quarto verso.

 

2. Selecione a opção de resposta adequada para completar a afirmação abaixo apresentada.

 

No âmbito da argumentação desenvolvida ao longo da segunda e da terceira estrofes, o recurso à , nos versos de 8 a 11, evidencia a ideia de que é pela visão que se pode ...

(A) metonímia … alterar a perceção da natureza

(B) antítese … conhecer a beleza objetiva da natureza

(C) metonímia … conhecer a beleza objetiva da natureza

(D) antítese … alterar a perceção da natureza

 

3. Explique a aparente contradição presente nos versos de 12 a 14.

 

 

CENÁRIOS DE RESPOSTA

 

1. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

nos dois primeiros versos, o sujeito poético compara o seu olhar ao «céu» e à «água ao sol», sugerindo a ideia de tranquilidade;

no quarto verso, o sujeito poético exprime a razão pela qual o seu olhar é «azul e calmo», afirmando que não questiona nem reage emocionalmente ao mundo tal como ele existe/afirmando que se limita a aceitar o que vê.

 

2. (B).

 

3. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

no verso 12, o sujeito poético começa por descrever a sua visão do real como objetiva e despida de pensamentos e emoções/o sujeito poético começa por expressar a ideia de que a natureza é constituída apenas por aquilo que os sentidos captam/o sujeito poético começa por expressar a aceitação serena do mundo, sem o questionar;

nos versos 13 e 14, o sujeito poético põe, no entanto, em evidência o facto de essa visão ser resultado de uma opção consciente (logo, pensada), admitindo que faz de conta que não pensa.

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português, Prova 639, 1.ª Fase, Ensino Secundário - 12.º Ano de Escolaridade, 2021. Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho. Prova disponível em https://iave.pt/wp-content/uploads/2021/07/EX-Port639-F1-2021-V1_net.pdf e Critérios de classificação em https://iave.pt/wp-content/uploads/2021/07/EX-Port639-F1-2021-CC-VD_net.pdf


 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 




CARREIRO, José. “O meu olhar azul como o céu, Alberto Caeiro”. Portugal, Folha de Poesia, 15-07-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/07/o-meu-olhar-azul-como-o-ceu-alberto.html


quinta-feira, 10 de junho de 2021

Quando a harmonia chega, Carlos de Oliveira

 


Quando a harmonia chega

 

Escrevo na madrugada as últimas palavras deste livro: e tenho o coração tranquilo, sei que a alegria se reconstrói e continua.

Acordam pouco a pouco os construtores terrenos, gente que desperta no rumor das casas, forças surgindo da terra inesgotável, crianças que passam ao ar livre gargalhando. Como um rio lento e irrevogável, a humanidade está na rua.

E a harmonia, que se desprende dos seus olhos densos ao encontro da luz, parece de repente uma ave de fogo.

 

Carlos de Oliveira, Terra de harmonia. Lisboa: Centro Bibliográfico de Lisboa, 1950.

 

Photo credit: Nathalia Arja in Firebird. Choreography by George Balanchine and Jerome Robbins © The George Balanchine Trust. Photo © Karolina Kuras.
Photo credit: Nathalia Arja in Firebird. Choreography by George Balanchine and Jerome Robbins © The George Balanchine Trust. Photo © Karolina Kuras.


O texto "Quando a harmonia chega” classifica-se como prosa poética, porque se encontra escrito em prosa, mas apresenta características poéticas, nomeadamente a intenção estética, a expressão da subjetividade do sujeito poético, a linguagem plurissignificativa e conotativa e a presença de recursos expressivos. (Paiva: 2013, 218)


***


Em consonância com a reflexão metapoética que atravessa os seus poemas, o segundo volume de Trabalho Poético reúne número considerável de poemas em prosa, vários deles numa partilha um tanto indistinta entre puro lirismo e narrativa curta, mas geralmente prevalecendo a lírica. Uma das razões a pesar na decisão é, certamente, o modo das formas verbais, onde pontua um presente do indicativo ao serviço da descrição de uma situação que diz o “aqui” e “agora” ou um presente de valor iterativo a traduzir uma ação reiterada, fruto de uma experiência, real ou imaginada, sedimentada na memória do poeta. Temos no primeiro caso “Quando a harmonia chega”, que encerra Terra de Harmonia, e “Estrelas”, de Sobre o lado esquerdo. Aquele é um poema em prosa, com verbos no presente do indicativo de valor descritivo. Estruturado em três parágrafos, vive de um perfeito equilíbrio entre o estar ali do poeta (que observa, sente e escreve), apresentado no parágrafo inicial, a fervilhante movimentação da labuta diária matinal, descrita no segundo parágrafo, e a conclusão do último, podendo ser considerada a “chave de ouro do poema”, como a tinha o soneto.

 

“As curtas histórias do conto moderno, o poema em prosa e o fragmento lírico”, Rosa Maria Goulart. Forma Breve - O conto: o cânone e as margens. N.º 14. 2017. https://doi.org/10.34624/fb.v0i14.172

 

 ***

 

Esquema interpretativo do poema em prosa  “Quando a harmonia chega”, de Carlos de Oliveira:

1.º parágrafo

Sujeito poético

2.º parágrafo

Os outros

  • Escritor: trabalhador intelectual que acaba de criar um livro, construído com as palavras, a sua matéria-prima.

  • Operários ou lavradores: trabalhadores braçais

  • Construtor artístico de um mundo etéreo

  • “construtores terrenos”

  • Sentimento de tranquilidade por ter concluído o seu trabalho

  • Fervilhantes, cheios de energia (ou ânimo) para a jornada de trabalho

  • Trabalho realizado durante a noite e madrugada (referência ao fim de um ciclo)

  • Trabalho realizado durante o dia, tendo sido iniciado de madrugada (referência ao início de um ciclo)

3.º parágrafo

A Humanidade (o sujeito poético e os outros)

  • Síntese: A “humanidade” é vista como uma Fénix (“ave de fogo”) que diária e harmoniosamente conclui de madrugada um ciclo de trabalho, retomando de seguida a construção do mundo.

 

Identificação dos recursos expressivos do poema e explicitação da sua expressividade:

O poema apresenta um forte investimento na linguagem poética, desde logo através de vários recursos expressivos. Assim, no primeiro parágrafo, o “coração” – símbolo e metáfora do sentimento – surge personificado de modo a realçar a tranquilidade do sujeito poético por ter concluído o seu período de trabalho. Esta alusão expressiva ao coração, que liga o estado de «alegria» e de «harmonia», pode também ser entendida como uma sinédoque usada pelo sujeito poético para se referir a si próprio.

Embora, convencionalmente, o sentimento (“coração”) e o saber (“sei”) surjam antiteticamente na literatura, aqui parecem convergir, visto que o sentimento de serenidade mantém-se, mesmo com o saber de experiência feito de que a criação artística é uma “alegria” que “se reconstrói e continua”, isto é, o sujeito poético está consciente de que as palavras, enquanto matéria-prima, podem, jornada após jornada, ser novamente trabalhadas na (re)construção  da obra de arte de que é exemplo o “livro” que o sujeito poético escreve.

A metáfora está também presente na expressão «os construtores terrenos», isto é, os trabalhadores terrenos/da terra (operários ou lavradores) que ele sente / ouve passar no exterior.

Na penúltima frase, há a comparação entre a ida da multidão para a rua e o curso “lento e irrevogável” (dupla adjetivação) do rio que aponta para a inevitabilidade das ações em questão.

Na última frase, está presente uma metáfora, “ave de fogo”, que remete para a simbologia da Fénix – tal como a Fénix tem a capacidade de renascer das cinzas, também a humanidade tem a capacidade de reconstruir a harmonia, no início de cada dia. (Marques: 2013, 271)

Existe ainda uma comparação entre a ave de fogo e a harmonia (a harmonia […] parece de repente uma ave de fogo”), transmitindo o caráter repentino, intenso, quase mágico, da revelação da harmonia: a ave passa rapidamente – “de repente” –, de forma intensa, qual labareda – “ave de fogo” –, sendo que a ave de fogo é um ser imaginário, fantástico. (Amaro: 2013)

“Como um rio lento” assim é, diríamos, o ritmo tendencialmente lento do poema que o espraiar das frases permite.

José Carreiro, “Quando a harmonia chega, Carlos de Oliveira”, in Folha de Poesia, 2021-06-10. <https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/06/quando-harmonia-chega.html>