terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Abdicação, Fernando Pessoa


 

ABDICAÇÃO

 

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços

E chama-me teu filho.

        Eu sou um rei

Que voluntariamente abandonei

O meu trono de sonhos e cansaços.

 

Minha espada, pesada a braços lassos,

Em mãos viris e calmas entreguei;

E meu cetro e coroa, — eu os deixei

Na antecâmara, feitos em pedaços.

 

Minha cota de malha, tão inútil

Minhas esporas, de um tinir tão fútil,

Deixei-as pela fria escadaria.

 

Despi a realeza, corpo e alma,

E regressei à noite antiga e calma

Como a paisagem ao morrer do dia.

 

s. d.

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15.ª ed. 1995).  - 215.

1.ª publ. in Ressurreição , nº 9. Lisboa: Fev. 1920.

 

__________

Nota – O segundo verso deste soneto é constituído por dois membros: «E chama-me teu filho.» e «Eu sou um rei».

 

I -  Questionário sobre o poema “Abdicação”

1. O sujeito poético metaforiza a sua existência definindo-se como um rei.

Caracterize a atitude desse rei ao longo do poema.

2. Relacione o sentido dos dois últimos versos do poema com a apóstrofe à «noite», presente nos versos 1 e 2.

3. Considere as afirmações seguintes sobre o poema.

(A) Embora Fernando Pessoa seja um poeta modernista, em «Abdicação» são revelados traços de egotismo, que associamos ao Romantismo.

(B) Ao longo do poema, o sujeito poético evidencia o desejo de evasão no tempo para a época medieval.

(C) No primeiro terceto, são convocadas sensações auditivas e táteis para realçar as ideias transmitidas.

(D) O sujeito lírico, ao assumir os seus atos, expõe dúvidas existenciais relativamente às suas decisões.

(E) Ainda que escrito num tempo em que se valoriza a liberdade formal, o poema apresenta a estrutura clássica de soneto, com versos decassilábicos e com o esquema rimático abba/abba/ccd/eed.

Identifique as duas afirmações falsas.

 

Explicitação dos cenários de resposta

1. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

− a abdicação (presente no título)/a renúncia, evidenciada na decisão (tomada conscientemente) de abandonar a luta (que a vida representa) e visível no abandono dos símbolos de poder e de realeza (trono, espada, cetro, coroa, cota de malha, esporas), mostrando que o sujeito poético abandona os seus sonhos, os cansaços, os despojos de uma vida vazia;

− o desejo de anulação/de apagamento (alcançado através da morte).

2. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

− o sujeito poético expressa o desejo de regressar à «noite antiga e calma» (v. 14)/de (re)encontrar a paz que não consegue alcançar (numa vida que reconhece como inútil e fútil);

− a concretização desse desejo, enunciado logo na apóstrofe inicial («Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços / E chama-me teu filho» vv. 1 e 2), é propiciado pela noite (que pode ser perspetivada como metáfora da morte), à qual o sujeito poético pede que o acolha nos seus braços, consolando-o tal como uma mãe a um filho.

3. Versão 1: B e D.

Fonte: Exame Final Nacional de Português | Prova 639 (versão 1) | 2.ª Fase | Ensino Secundário | 2023 - 12.º Ano de Escolaridade | Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 22/2023, de 3 de abril. República Portuguesa – Educação / IAVE-– Instituto de Avaliação Educativa, I.P

***

II - Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

– sequência e sentido dos atos de abdicação;

– caracterização da figura do rei;

– recursos estilísticos e aspectos formais relevantes;

– simbolismo da noite.

 

Explicitação de cenários de resposta

 

Sequência e sentido dos actos de abdicação

A «Abdicação» referida no título concretiza-se numa sequência de acções simbólicas expressas ao longo do poema: o abandonar do «trono»; o entregar da «espada»; o despojar-se de «ceptro», «coroa», «cota de malha» e «esporas»; o descer a «escadaria»; o sair para o exterior. São actos que indicam o abandono voluntário de uma situação de poder.

Tal «Abdicação», como o indica a expressão «Despi a realeza, corpo e alma», para além de significar um abandono voluntário do poder, significa também uma purificação, um despojamento interior, pela libertação de tudo o que é superficial e acessório («tão inútil», «tão fútil»).

Assim, se, por um lado, esse abandono pode significar uma forma de desistência, a dimensão moral do despojamento indica, por outro, uma libertação de insígnias e de convenções, a qual permite ao «eu» um regresso à «noite eterna» e «calma», isto é, um reencontro com a harmonia e com a paz do Universo.

 

Caracterização da figura do rei

Podem ser apontados como elementos caracterizadores principais:

– todos os atributos de «realeza, corpo e alma», que constituem uma alegoria da vida humana, com os seus «sonhos e cansaços»: a «espada», a «cota de malha» e as «esporas», símbolos da força e do combate; o «ceptro e coroa», símbolos do poder;

– o reconhecimento da inutilidade e da futilidade das coisas terrenas, que têm a ver com os valores do poder e da guerra e com os «sonhos», símbolo dos ideais não realizados, como é sugerido pela palavra «cansaços»;

– a abdicação de ter poder sobre a terra, retirando-se para um espaço sem poder, para reintegrar um lugar materno simbolizado pela noite;

– a privação voluntária da identidade pessoal, regressando a uma identificação original com o Cosmos;

– ...

 

Recursos estilísticos e aspetos formais relevantes

O poema caracteriza-se por uma linguagem metafórica. Assim:

– «rei», «trono», «espada», «ceptro», «coroa», «cota de malha», «esporas» são metáforas que remetem para um código prévio – o da cavalaria medieval;

– a «Abdicação» deste «rei» é figurada através de um conjunto coerente de gestos que são outras tantas metáforas – abandonar o «trono», entregar a «espada», deixar «ceptro e coroa», «cota de malha» e «esporas», despir a «realeza», regressar à «noite»; no seu todo, estas constroem uma alegoria da vida interior, com o sujeito despojando-se dos bens do mundo, simbolizados pelas marcas da «realeza» – «meu trono», «Minha espada», «meu ceptro e coroa», «Minha cota de malha», «Minhas esporas»;

– ...

São ainda relevantes, entre outros, os seguintes recursos estilísticos:

– personificação («Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços / E chama-me teu filho»), representando a noite como uma figura feminina e maternal;

– aliteração e/ou assonância («braços lassos», «fria escadaria»), reforçando, pela rima interna, o conteúdo semântico dos termos assim ligados;

– ...

Nos aspetos formais há a destacar:

– o recurso à estrutura clássica do soneto – em decassílabos heróicos, com um esquema rimático tradicional quer nas quadras (abba) quer nos tercetos (ccd / eed), culminando na «chave de ouro» – em sintonia com a nobreza do universo recriado no poema;

– ...

 

Simbolismo da noite

Simbolicamente, a noite é:

– «eterna», o que remete para a ideia de uma noite cósmica, divina e materna a cujos braços acolhedores o «eu» pode fazer apelo;

– «antiga e calma», o que tem a ver com a sua ancestralidade, com a tranquilidade que transmite e a protecção que dispensa, e também com o facto de constituir um exterior a que se regressa como a um lugar de paz, uma casa materna;

– a que nasce «ao morrer do dia», como se lê no último verso, e aquela à qual a paisagem se

acolhe (do mesmo modo que o «eu» quer que a «noite eterna» o acolha);

– ...

O regresso à noite é como uma libertação, por um lado, e como uma participação cósmica, por outro, remetendo para uma experiência de natureza mística.

  

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 – Prova Modelo. Portugal, GAVE [IAVE], 2000)

 

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 



Abdicação, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 06-12-2022 (última atualização: 21-07-2023). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/abdicacao-fernando-pessoa.html


segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Uns, com os olhos postos no passado, Ricardo Reis

 


Uns, com os olhos postos no passado,

Veem o que não veem; outros, fitos

Os mesmos olhos no futuro, veem

O que não pode ver-se.

 

Porque tão longe ir pôr o que está perto —

A segurança nossa? Este é o dia,

Esta é a hora, este o momento, isto

É quem somos, e é tudo.

 

Perene flui a interminável hora

Que nos confessa nulos. No mesmo hausto

Em que vivemos, morreremos. Colhe

O dia, porque és ele.

 

28-8-1933

Odes de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).  - 154.

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2695

__________ 

1 hausto: sorvo, aspiração (neste contexto, metáfora de valor temporal).


 Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

· relação do sujeito poético com "uns" e "outros";

· importância do tema do tempo;

· proposta de uma filosofia de vida;

· recursos estilísticos relevantes;

· traços da poética de Ricardo Reis e sua integração no contexto da heteronímia pessoana. 


 

Explicitação de cenários de resposta:

· Relação do sujeito poético com "uns" e "outros"

O sujeito poético marca a sua singularidade e a sua diferença perante o mundo ("Uns" e "outros"). Assim, do seu ponto de vista, quem olha para o passado vê o simulacro da realidade vivida, porquanto esta não existe no presente ("Uns, com os olhos postos no passado. / Veem o que não veem" - vv.1-2), apesar de atualizada pela memória. A limitações semelhantes estão sujeitos os "outros" que fitam o futuro, pois eles "veem / O que não pode ver-se" (vv. 3-4) e imaginam apenas o que ainda não existe.

A existência radicada em perceções ilusórias é alvo de apreciação crítica do sujeito poético, recusando este o que está "longe" do "momento" atual (o passado e o futuro).

 

· Importância do tema do tempo

Ao demonstrar a não fiabilidade da visão orientada para o passado ou para o futuro, o sujeito poético defende o presente como tempo de realização do Homem: "Porque tão longe ir pôr o que está perto - / A segurança nossa? Este é o dia" (vv. 5-6).

Através da apresentação antitética do tempo - "longe"/"perto" - o Eu procede à valorização do presente ("Este é o dia") como temporalidade segura, porque se encontra ao alcance do Homem.

O relevo conferido ao momento presente é bem visível no poema. Assim, veja-se:

- a predominância dos verbos no presente do indicativo em todas as estrofes ("veem", "pode", "está", "é", "somos", "flui", "confessa", "vivemos", "és");

- a delimitação de unidades temporais, cada vez mais restritas, relativas ao tempo que passa ("o dia", "a hora", "o momento");

- a utilização insistente de demonstrativos sublinhando a importância de viver o instante presente ("Este é o dia / esta é a hora, este o momento" - vv. 6-7)

- a homologia estabelecida entre o tempo presente e o Ser; ou seja, o Homem é o próprio tempo que se escoa ("este o momento, isto / É quem somos, e é tudo" - vv. 7-8; "Colhe/o dia, porque és ele." - vv. 11-12).

 

· Proposta de uma filosofia de vida

O sujeito poético faz a apologia do presente considerando um logro a construção da existência a partir de um passado morto ou de um futuro incerto ("Veem o que não veem", " veem / O que não pode ver-se" vv. 2, 3-4).

Apesar da brevidade do presente ("dia", "hora", "momento"), o Eu defende que é nele, em cada instante vivido, que o Homem se realiza ("Colhe / o dia, porque és ele." - v. 11-12) e conquista a felicidade possível ("A segurança nossa"). Desta forma procura superar a angústia causada pela consciência da nulidade do Ser, ameaçado pelo tempo destruidor ("Perene flui a interminável hora / Que nos confessa nulos" - vv. 9-10).

Consciente da efemeridade da vida e da inevitabilidade da morte ("No mesmo hausto / Em que vivemos, morreremos." - vv. 10-11), o sujeito postula uma filosofia de vida estoico-epicurista que, influenciado pela sabedoria horaciana, aponta com regra de vida a função do dia, do instante que passa "Colhe / O dia" (vv. 11-12).

 

· Recursos estilísticos evidentes

O poema é marcado por recursos estilísticos característicos da poética de Reis, tais como:

- o paradoxo ("Veem o que não veem", "veem / O que não pode ver-se") que realça o engano em que assenta a inconsistência desses modos de visão;

- o hipérbato que, na 2.a estrofe (vv. 5-6), destaca o movimento interrogativo ("Porque") e a expressão que sintetiza a procura de estabilidade existencial ("A Segurança nossa") e que, na 3.a estrofe ("Perene flui a interminável hora / Que nos confessa nulos" - vv. 9-10), sublinha o contraste entre a perenidade do movimento do tempo e a efemeridade da vida humana;

- as antíteses evidentes na 2.a estrofe ("longe"/"perto" - v. 5) e na 3.a estrofe ("vivemos, morreremos" - v. 11) a primeira salienta a relação entre uma temporalidade distante, enganadora, e aquela que se pode alcançar; a segunda destaca a problemática central do poema, a da existência condenada a perecer;

- gradação descendente ("o dia", "a hora", "o momento"), acentuando o carácter breve, fugaz, instantâneo do tempo em que se vive;

- a imagem " Colhe / O dia, porque és ele." (vv. 11-12) evidencia metaforicamente uma lição de vida - o Homem é um ser de tempo e existe na precariedade do instante;

- vocabulário erudito, latinizante ("Perene", "hausto"), confirmador da formação clássica de Reis;

- ...

 

· Traços da poética de Ricardo Reis e sua posição no contexto da heteronímia pessoana

O poema evidência alguns dos traços representativos da poética de Ricardo Reis.

Exemplificando:

- a preferência pelo presente precário e a afirmação de uma arte de viver, assente na fruição do instante;

- o gozo do presente e a aceitação da morte, indiciando uma filosofia de vida que concilia o Epicurismo com o Estoicismo;

- a influência de Horácio através do tema do carpe diem;

- uma arte poética assente no rigor, revelando um estilo neoclássico elevado, o que decorre da sua formação latinista e helenista;

- ...

 

No contexto da heteronímia pessoana - criação máxima do Modernismo português - salienta-se, a respeito de Ricardo Reis, que:

- se integra na heteronímia como discípulo do Alberto Caeiro;

- é o heterónimo que representa a tradição literária clássica e as regras formais por oposição ao modernista Álvaro de Campos;

- …

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 1998, 1.ª fase, 2.ª chamada)

 

Ricardo Reis. Pormenor do mural de Almada Negreiros, 1958, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.


 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 



Uns, com os olhos postos no passado, Ricardo Reis” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 05-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/uns-com-os-olhos-postos-no-passado.html


domingo, 4 de dezembro de 2022

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo, Alberto Caeiro




Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,

Porque eu sou do tamanho do que vejo

E não do tamanho da minha altura...

 

Nas cidades a vida é mais pequena

Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,

Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,

Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,

E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver. 

s.d.

“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10.ª ed. 1993).  - 32.

 

 

 

I - COMENTÁRIO DE TEXTO

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

  • oposição entre a "aldeia" e a "cidade";
  • importância do ato de ver;
  • recursos estilísticos relevantes;
  • traços da poética de Caeiro.

 

 

Explicitação de cenários de resposta

  • Oposição entre a "aldeia" e a "cidade"

O poema organiza-se em torno da caracterização contrastiva da "minha aldeia" e das "cidades" ou da "cidade", caracterização essa que se desenvolve, porém, em termos inesperados. Assim:

- a "minha aldeia" é apresentada como lugar de eleição, na medida em que permite ao sujeito o grau máximo de visibilidade de "quanto da terra se pode ver do Universo" (v. 1); por esse motivo, ela supera o estatuto de povoação diminuta que por definição é o seu, tornando-se "tão grande como outra terra qualquer" (v. 2);

- a cidade revela-se limitativa, pois "as grandes casas" enclausuram o olhar, ocultam-lhe o céu e afastam-no da natureza (cf. vv. 7, 8), ou, por outras palavras, desapossam-nos da "nossa única riqueza", que "é ver" (v. 10).

Em suma, a cidade tem um efeito de fechamento e afasta "a vista" (v. 7) do "horizonte" e do "Céu" (v. 8), enquanto a aldeia propicia a abertura para o infinito ("Universo" - v. 1). Consequentemente, o poema associa, por um lado, cidade a pequeno e a pobre (vv. 9 e 10) e, por outro, aldeia a "grande" (v. 2) e, de forma implícita, a riqueza (v. 10), invertendo as noções tradicionais de aldeia e de cidade.

 

  • Importância do ato de ver

O desenvolvimento da oposição entre aldeia e cidade faz emergir, como ideia nuclear do poema, a importância do ato de ver, manifestada, desde logo, pela utilização de formas do verbo ver e de vocábulos com ele semanticamente relacionados ("vista", "olhar", "olhos" - vv. 7, 8, 9). Segundo o texto, a visão é um modo de conhecimento privilegiado, pois permite percecionar a imensidão do mundo, superando a dimensão física limitada do sujeito (vv. 3-4). Com efeito, é o olhar que determina a configuração do mundo e do próprio ser, na medida em que existe uma relação entre:

- a extensão do campo de visão e a do espaço em que o Eu se situa (cf. vv. 1, 2);

- o que o sujeito vê e a perceção que tem de si ("eu sou do tamanho do que vejo / E não do tamanho da minha altura..." - vv. 3-4);

- a possibilidade de visão e o valor da existência humana ("as grandes casas fecham a vista à chave", "Tornam-nos pequenos", "tornam-nos pobres", "a nossa única riqueza é ver" - vv. 7, 9, 10);

- …

 

  • Recursos estilísticos relevantes

São relevantes, entre outros, os seguintes aspetos estilísticos:

- presença de construções causais, evidenciando uma intenção explicativa do discurso ("Por isso", "Porque eu sou", "porque nos tiram", "porque a nossa única riqueza" - vv. 2, 3, 9,10);

- utilização da estrutura paralelística, amplificando a noção de perda ("Tornam-nos pequenos porque [...] / E tornam-nos pobres porque [...]" - vv. 9-10);

- recurso ao grau comparativo dos adjetivos com o intuito de caracterizar a "aldeia" por referência a outros espaços, realçando-se, por um lado, o nível idêntico de grandeza existente entre a "aldeia" e "outra terra qualquer" (v. 2) e, por outro lado, minimizando-se a vida na cidade para valorizar a vida na aldeia ("Nas cidades a vida é mais pequena / Que aqui na minha casa" - vv. 5-6);

- conjugação da metáfora ("fecham a vista à chave", "empurram o nosso olhar" - vv. 7-8) com a personificação de "casas" ("fecham", "Escondem", "empurram", "tiram"), para sublinhar a atrofia do ver como efeito do ambiente citadino;

- …

 

  • Traços da poética de Caeiro

O poema evidencia alguns dos traços representativos da poética de Caeiro. Exemplificando:

- apologia da visão como valor essencial;

- relação de harmonia com a Natureza;

- aparente simplicidade e natureza argumentativa do discurso poético, visível no recurso a uma linguagem corrente e a construções causais;

- …

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 1999, 1.ª fase, 1.ª chamada)

 



II - QUESTIONÁRIO 

1. Mostre como a concepção do Universo é determinada pela imagem que o sujeito poético tem de si próprio.

2. Explicite a oposição entre a “aldeia” e a “cidadeexpressa no texto.

3. Identifique e aprecie o valor do deíctico presente na segunda estrofe.

4. Aprecie o valor expressivo da construção dos dois últimos versos do poema.

5. Classifique os articuladores de discurso sublinhados no texto.

6. Confronte o uso deste tipo de articuladores sublinhados no texto com a concepção de poesia que Alberto Caeiro defende na sua restante obra. Retire daí as devidas conclusões.

 

(Adaptado de Abordagens 12.º, Zaida Braga et alii. Porto Ed., 2005, pp.80-81)

 

Explicitação de cenários de resposta 

1. A imagem que o sujeito poético tem de si próprio é a de alguém que é do “tamanho do que ” e não do “tamanho da sua altura”.

Assim, o Universo pertence ao domínio do concreto, perceptível através dos sentidos, da visão; o Universo não é apenas uma construção abstracta e, por isso, ao sujeito poético apenas interessa a parcela do Universo que se vislumbra da sua aldeia. [Há uma ligação de contiguidade (osmose, interligação…) entre ambos.]

 

OU 

O sujeito poético, sendo sensacionista e dando primazia à visão, entende que infinito como o próprio Universo, pois não há nada a limitar as sensações que sente; nem a nível físico, pois não existem as “grandes casas” que “fecham a vista à chave”, nem a nível psicológico, pois o sujeito poético limita-se a ver a realidade que o rodeia sem racionalizá-la, nem criar pensamentos que o limitariam.

 

2. A aldeia aparece aqui como o espaço que possibilita a “visão” do Universo, enquanto na cidade “as grandes casas fecham a vista à chave”, “Escondem o horizonte” e “empurram o nosso olhar para longe de todo o céu”. Assim, a cidade constrange, aniquila, porque nos tira aquiloque os nossos olhos nos podem dar”, tornando-nos “pobres porque a nossa única riqueza é ver”, enquanto a aldeia, porque nos deixa ver, nos enriquece através do contacto directo, da comunhão com o Universo.

 

OU

A “aldeia” é um cenário rico em sensações: é um espaço mais aberto, em comunhão com a Natureza e livre de barreiras para os sentidos. A “cidade”, por outro lado, limita as experiências sensoriais (com os seus edifícios que escondem o céu e o horizonte) e torna as pessoas mais distantes da Natureza.

 

3. O deíctico espacialaqui” sugere, para além da relação de proximidade entre o sujeito emissor do discurso e o contexto da sua produção, uma relação de afectividade possívelaqui” — na sua aldeia e na sua casa.

(Atenção: também existe o deíctico “deste” [“minha”] que no contexto tem o mesmo valor que o deíctico “aqui”)

 

 

4. Os dois últimos versos apresentam uma construção simétrica (“Tornam-nos pequenos porque (...)“; “E tornam-nos pobres porque (...)“) que, mais uma vez, e dentro da linha temática do poema, valoriza a importância daquilo que “os nossos olhos nos podem dar”, que “a nossa única riqueza é ver”. Saliente-se a expressividade da adjectivação (“pequenos”, “pobres”) que reforça esta última ideia. Note-se, ainda, a musicalidade presente nestes versos conseguida através do ritmo binário.

 

OU

Como conclusão do poema, os dois últimos versos completam um raciocínio silogístico:

1ª premissa: “sou do tamanho do que vejo” (v. 3).

2ª premissa: Não vemos o que devíamos ver (“nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar”).

Logo, somos pequenos e pobres (“tornam-nos pequenos […] / E […] pobres”).

Se a nossa única riqueza é ver e vemos pouco, logo somos pobres. É este o raciocínio que o poeta utiliza para justificar que a vida no campo é rica e na cidade é pobre.

 

 

5. POR ISSO (v. 2): locução subordinativa consecutiva.

COMO (v. 2), QUE (v. 6): conjunções subordinativas comparativas.

PORQUE (v. 3): conjunção subordinativa causal.

 

 

6. Caeiro defende que o ato poético deve ser tão natural como a própria Natureza, pelo que seria desnecessário trabalhar os versos como os artífices trabalham as suas obras. Assim, o poeta não deveria ocupar a mente com a especulação filosófica sobre as causas ou finalidades das coisas.

No entanto, há uma contradição entre os propósitos de Caeiro e a sua prática, na medida em que os articuladores de discurso utilizados neste poema estão ao serviço de um discurso complexo, filosófico onde se estabelecem as tais relações de causalidade / consequência (as relações comparativas de valor analógico-dedutivo).

 

OU

Este tipo de articuladores denota um raciocínio, um pensamento complexo, que vai contra  as ideias sensacionistas e panteístas defendidas por Caeiro na sua restante obra. Cria-se, assim, um paradoxo: o poeta critica a racionalização das coisas, mas para poder fazê-lo tem de servir-se dessa mesma racionalização. Pode-se, assim, concluir que Alberto Caeiro, apesar de tentar ser um sensacionista, não consegue sê-lo realmente, desviando-se da pureza das sensações e caindo nas “armadilhas” do pensamento racional.

 

 

Poderá também gostar de:

 

  • Intertextualidade com um poema do início do século XXI:

A minha casa tem uma varanda
Dela vejo um pedaço de mar
Copas de algumas árvores e
Quando as nuvens estão altas
Vejo mesmo o alto do monte
Em que sei que para lá dele
Está a lagoa do fogo. Também sei que isto
Pouco tem de interessante
E por isso o escrevo e de tudo o que há a dizer
Fico-me por dizer o que disse.
A varanda tem nas grades uns vasos dependurados
(estou convencido de que a imagem é fácil de construir)
Ignoro os nomes das plantas e ervas que estão nos vasos
E por isso dou-lhes os nomes que me surgem no momento
Cacto, rúcula, coentro e salsa
Algo no pedaço de mar me distrai das plantas e ervas
E de seguida são outros os nomes que lhes dou
É por causa destas coisas talvez
Que se diz que o mundo é feito de mudança

Fernando Martinho Guimarães, poema XVIII da terceira parte (“O lugar dos caminhos”) do livro é o mar e tudo o que nele cabe. Vila Nova de Famalicão, Edições Húmus, 2023 (Coleção 12catorze, n.º 67). Disponível aqui: https://edicoeshumus.pt//index.php?route=product/product&product_id=1524

 

Proposta de escrita

Elabora uma análise comparativa dos dois poemas apresentados, tendo em conta os seguintes itens:

  • Visão e tamanho do mundo
  • Restrições das cidades
  • Observação e nomes das coisas
  • Mudança e impermanência

 

Sugestão de resposta:

O poema de Fernando Martinho Guimarães dialoga intertextualmente com o poema VII de "O Guardador de Rebanhos", em alguns aspetos:

No poema de Alberto Caeiro, o sujeito poético menciona que a sua aldeia é tão grande quanto qualquer outra terra, pois ele é do tamanho do que vê, não do tamanho da sua altura. Isto relaciona-se com o segundo poema, em que o eu lírico observa a sua casa a partir da varanda e vê o mar, as árvores e o alto do monte. Ambos os poemas abordam a noção de que a perceção individual do mundo determina a sua extensão e importância.

No primeiro poema, Caeiro descreve como a vida nas cidades é limitada e pequena, com grandes casas que bloqueiam a visão do horizonte e empurram o olhar para longe do céu. Essa restrição é contraposta ao segundo poema, onde o eu lírico está em sua casa e vê um pedaço de mar, mas reconhece que isso pouco tem de interessante. Ambos os poemas sugerem a ideia de que as cidades e as suas restrições podem diminuir a experiência e a conexão com o mundo.

Enquanto Caeiro enfatiza a importância da visão e da capacidade de ver como a única riqueza verdadeira, o eu lírico do poema do século XXI observa os vasos de plantas na sua varanda, mas confessa ignorar os nomes das plantas e dá-lhes nomes que surgem no momento. Ambos os poemas exploram a relação entre a observação, a capacidade de nomear e a construção da experiência do mundo.

Caeiro menciona que a única certeza é a mudança, e essa ideia é retomada no outro poema, onde o eu lírico afirma que é por causa dessas coisas que o mundo é feito de mudança. Ambos os poemas refletem sobre a transitoriedade da existência e a constante transformação do mundo ao nosso redor.

Em síntese, o poema de Fernando Martinho Guimarães dialoga intertextualmente com o poema de Alberto Caeiro na medida em que ambos apresentam uma visão da vida que valoriza a simplicidade e a beleza da natureza. Ambos os poemas sugerem que a vida é mais rica e significativa quando se valoriza a perspetiva individual e se aprecia a beleza simples da natureza.



Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo, Alberto Caeiro” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 04-12-2022 (última atualização: 31-03-2023). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/da-minha-aldeia-vejo-quanto-da-terra-se.html