Uns, com os olhos postos no passado,
Veem o que não veem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, veem
O que não pode ver-se.
Porque tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
28-8-1933
Odes de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). - 154.
Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2695
1 hausto: sorvo, aspiração (neste contexto, metáfora de valor temporal).
·
relação do sujeito poético com "uns" e "outros";
·
importância do tema do tempo;
·
proposta de uma filosofia de vida;
·
recursos estilísticos relevantes;
·
traços da poética de Ricardo Reis e sua integração no contexto da heteronímia
pessoana.
Explicitação de cenários de resposta:
·
Relação do sujeito poético com "uns" e "outros"
O
sujeito poético marca a sua singularidade e a sua diferença perante o mundo
("Uns" e "outros"). Assim, do seu ponto de vista, quem olha
para o passado vê o simulacro da realidade vivida, porquanto esta não existe no
presente ("Uns, com os olhos postos no passado. / Veem o que não veem"
- vv.1-2), apesar de atualizada pela memória. A limitações semelhantes estão
sujeitos os "outros" que fitam o futuro, pois eles "veem / O que
não pode ver-se" (vv. 3-4) e imaginam apenas o que ainda não existe.
A
existência radicada em perceções ilusórias é alvo de apreciação crítica do
sujeito poético, recusando este o que está "longe" do
"momento" atual (o passado e o futuro).
· Importância
do tema do tempo
Ao
demonstrar a não fiabilidade da visão orientada para o passado ou para o
futuro, o sujeito poético defende o presente como tempo de realização do Homem:
"Porque tão longe ir pôr o que está perto - / A segurança nossa? Este é o
dia" (vv. 5-6).
Através
da apresentação antitética do tempo - "longe"/"perto" - o
Eu procede à valorização do presente ("Este é o dia") como
temporalidade segura, porque se encontra ao alcance do Homem.
O
relevo conferido ao momento presente é bem visível no poema. Assim, veja-se:
-
a predominância dos verbos no presente do indicativo em todas as estrofes
("veem", "pode", "está", "é",
"somos", "flui", "confessa", "vivemos",
"és");
-
a delimitação de unidades temporais, cada vez mais restritas, relativas ao
tempo que passa ("o dia", "a hora", "o momento");
-
a utilização insistente de demonstrativos sublinhando a importância de viver o
instante presente ("Este é o dia / esta é a hora, este o momento" -
vv. 6-7)
-
a homologia estabelecida entre o tempo presente e o Ser; ou seja, o Homem é o
próprio tempo que se escoa ("este o momento, isto / É quem somos, e é
tudo" - vv. 7-8; "Colhe/o dia, porque és ele." - vv. 11-12).
· Proposta de
uma filosofia de vida
O
sujeito poético faz a apologia do presente considerando um logro a construção
da existência a partir de um passado morto ou de um futuro incerto ("Veem
o que não veem", " veem / O que não pode ver-se" vv. 2, 3-4).
Apesar
da brevidade do presente ("dia", "hora",
"momento"), o Eu defende que é nele, em cada instante vivido, que o
Homem se realiza ("Colhe / o dia, porque és ele." - v. 11-12) e conquista
a felicidade possível ("A segurança nossa"). Desta forma procura
superar a angústia causada pela consciência da nulidade do Ser, ameaçado pelo
tempo destruidor ("Perene flui a interminável hora / Que nos confessa
nulos" - vv. 9-10).
Consciente
da efemeridade da vida e da inevitabilidade da morte ("No mesmo hausto /
Em que vivemos, morreremos." - vv. 10-11), o sujeito postula uma filosofia
de vida estoico-epicurista que, influenciado pela sabedoria horaciana, aponta
com regra de vida a função do dia, do instante que passa "Colhe / O
dia" (vv. 11-12).
· Recursos
estilísticos evidentes
O
poema é marcado por recursos estilísticos característicos da poética de Reis,
tais como:
-
o paradoxo ("Veem o que não veem", "veem / O que não pode
ver-se") que realça o engano em que assenta a inconsistência desses modos
de visão;
-
o hipérbato que, na 2.a estrofe (vv. 5-6), destaca o movimento
interrogativo ("Porque") e a expressão que sintetiza a procura de
estabilidade existencial ("A Segurança nossa") e que, na 3.a
estrofe ("Perene flui a interminável hora / Que nos confessa nulos" -
vv. 9-10), sublinha o contraste entre a perenidade do movimento do tempo e a
efemeridade da vida humana;
-
as antíteses evidentes na 2.a estrofe
("longe"/"perto" - v. 5) e na 3.a estrofe
("vivemos, morreremos" - v. 11) a primeira salienta a relação entre
uma temporalidade distante, enganadora, e aquela que se pode alcançar; a
segunda destaca a problemática central do poema, a da existência condenada a
perecer;
-
gradação descendente ("o dia", "a hora", "o
momento"), acentuando o carácter breve, fugaz, instantâneo do tempo em que
se vive;
-
a imagem " Colhe / O dia, porque és ele." (vv. 11-12) evidencia
metaforicamente uma lição de vida - o Homem é um ser de tempo e existe na precariedade do instante;
-
vocabulário erudito, latinizante ("Perene", "hausto"),
confirmador da formação clássica de Reis;
-
...
· Traços da
poética de Ricardo Reis e sua posição no contexto da heteronímia pessoana
O
poema evidência alguns dos traços representativos da poética de Ricardo Reis.
Exemplificando:
-
a preferência pelo presente precário e a afirmação de uma arte de viver,
assente na fruição do instante;
-
o gozo do presente e a aceitação da morte, indiciando uma filosofia de vida que
concilia o Epicurismo com o Estoicismo;
-
a influência de Horácio através do tema do carpe diem;
-
uma arte poética assente no rigor, revelando um estilo neoclássico elevado, o
que decorre da sua formação latinista e helenista;
-
...
No
contexto da heteronímia pessoana - criação máxima do Modernismo português -
salienta-se, a respeito de Ricardo Reis, que:
-
se integra na heteronímia como discípulo do Alberto Caeiro;
-
é o heterónimo que representa a tradição literária clássica e as regras formais
por oposição ao modernista Álvaro de Campos;
-
…
(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº
286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 1998,
1.ª fase, 2.ª chamada)
Ricardo Reis. Pormenor do mural de Almada Negreiros, 1958, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. |
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- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
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Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
“Uns, com os olhos
postos no passado, Ricardo Reis” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 05-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/uns-com-os-olhos-postos-no-passado.html
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