ABDICAÇÃO
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa, — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.
Minha cota de malha, tão inútil
Minhas esporas, de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
s. d.
Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de
João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15.ª ed.
1995). - 215.
1.ª publ. in Ressurreição , nº 9. Lisboa: Fev.
1920.
__________
Nota – O segundo verso deste
soneto é constituído por dois membros: «E chama-me teu filho.» e «Eu sou um rei».
I - Questionário sobre o poema “Abdicação”
1. O sujeito
poético metaforiza a sua existência definindo-se como um rei.
Caracterize a atitude desse rei ao longo do poema.
2. Relacione o
sentido dos dois últimos versos do poema com a apóstrofe à «noite», presente
nos versos 1 e 2.
3. Considere as
afirmações seguintes sobre o poema.
(A) Embora Fernando Pessoa seja um
poeta modernista, em «Abdicação» são revelados traços de egotismo, que
associamos ao Romantismo.
(B) Ao longo do poema, o sujeito
poético evidencia o desejo de evasão no tempo para a época medieval.
(C) No primeiro terceto, são
convocadas sensações auditivas e táteis para realçar as ideias transmitidas.
(D) O sujeito lírico, ao assumir os
seus atos, expõe dúvidas existenciais relativamente às suas decisões.
(E) Ainda que escrito num tempo em
que se valoriza a liberdade formal, o poema apresenta a estrutura clássica de
soneto, com versos decassilábicos e com o esquema rimático abba/abba/ccd/eed.
Identifique as duas afirmações falsas.
Explicitação dos cenários de
resposta
1. Devem ser abordados os tópicos
seguintes, ou outros igualmente relevantes:
− a abdicação (presente no título)/a renúncia, evidenciada na decisão
(tomada conscientemente) de abandonar a luta (que a vida representa) e visível
no abandono dos símbolos de poder e de realeza (trono, espada, cetro, coroa,
cota de malha, esporas), mostrando que o sujeito poético abandona os seus
sonhos, os cansaços, os despojos de uma vida vazia;
− o desejo de anulação/de apagamento (alcançado através da morte).
2. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente
relevantes:
− o sujeito poético expressa o desejo de regressar à «noite antiga e
calma» (v. 14)/de (re)encontrar a paz que não consegue alcançar (numa vida que
reconhece como inútil e fútil);
− a concretização desse desejo, enunciado logo na apóstrofe inicial
(«Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços / E chama-me teu filho» ‒ vv. 1 e 2), é propiciado pela
noite (que pode ser perspetivada como metáfora da morte), à qual o sujeito
poético pede que o acolha nos seus braços, consolando-o tal como uma mãe a um
filho.
3. Versão 1: B e D.
Fonte: Exame Final Nacional de Português | Prova 639 (versão 1) | 2.ª
Fase | Ensino Secundário | 2023 - 12.º Ano de Escolaridade | Decreto-Lei n.º
55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 22/2023, de 3 de abril. República
Portuguesa – Educação / IAVE-– Instituto de Avaliação Educativa, I.P
***
II - Elabore um comentário do poema que integre o tratamento
dos seguintes tópicos:
– sequência e sentido dos atos de abdicação;
– caracterização da figura do rei;
– recursos estilísticos e aspectos formais relevantes;
– simbolismo da noite.
Explicitação de cenários de
resposta
Sequência e sentido dos actos de abdicação
A «Abdicação» referida no título concretiza-se numa sequência de acções
simbólicas expressas ao longo do poema: o abandonar do «trono»; o entregar da
«espada»; o despojar-se de «ceptro», «coroa», «cota de malha» e «esporas»; o
descer a «escadaria»; o sair para o exterior. São actos que indicam o abandono
voluntário de uma situação de poder.
Tal «Abdicação», como o indica a expressão «Despi a realeza, corpo e
alma», para além de significar um abandono voluntário do poder, significa
também uma purificação, um despojamento interior, pela libertação de tudo o que
é superficial e acessório («tão inútil», «tão fútil»).
Assim, se, por um lado, esse abandono pode significar uma forma de
desistência, a dimensão moral do despojamento indica, por outro, uma libertação
de insígnias e de convenções, a qual permite ao «eu» um regresso à «noite
eterna» e «calma», isto é, um reencontro com a harmonia e com a paz do
Universo.
Caracterização da figura do rei
Podem ser apontados como elementos caracterizadores principais:
– todos os atributos de «realeza, corpo e alma», que constituem uma alegoria da vida humana, com os seus «sonhos e cansaços»: a «espada», a «cota de malha» e as «esporas», símbolos da força e do combate; o «ceptro e coroa», símbolos do poder;
– o reconhecimento da inutilidade e da futilidade das coisas terrenas, que têm a ver com os valores do poder e da guerra e com os «sonhos», símbolo dos ideais não realizados, como é sugerido pela palavra «cansaços»;
– a abdicação de ter poder sobre a terra, retirando-se para um espaço sem poder, para reintegrar um lugar materno simbolizado pela noite;
– a privação voluntária da identidade pessoal, regressando a uma identificação original com o Cosmos;
– ...
Recursos estilísticos e aspetos formais relevantes
O poema caracteriza-se por uma linguagem metafórica. Assim:
– «rei», «trono», «espada», «ceptro», «coroa», «cota de malha»,
«esporas» são metáforas que remetem para um código prévio – o da cavalaria
medieval;
– a «Abdicação» deste «rei» é figurada através de um conjunto coerente de gestos que são outras tantas metáforas – abandonar o «trono», entregar a «espada», deixar «ceptro e coroa», «cota de malha» e «esporas», despir a «realeza», regressar à «noite»; no seu todo, estas constroem uma alegoria da vida interior, com o sujeito despojando-se dos bens do mundo, simbolizados pelas marcas da «realeza» – «meu trono», «Minha espada», «meu ceptro e coroa», «Minha cota de malha», «Minhas esporas»;
– ...
São ainda relevantes, entre outros, os seguintes recursos
estilísticos:
– personificação («Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços / E chama-me teu filho»), representando a noite como uma figura feminina e maternal;
– aliteração e/ou assonância («braços lassos», «fria escadaria»), reforçando, pela rima interna, o conteúdo semântico dos termos assim ligados;
– ...
Nos aspetos formais há a destacar:
– o recurso à estrutura clássica do soneto – em decassílabos heróicos,
com um esquema rimático tradicional quer nas quadras (abba) quer nos tercetos
(ccd / eed), culminando na «chave de ouro» – em sintonia com a nobreza do universo
recriado no poema;
– ...
Simbolismo da noite
Simbolicamente, a noite é:
– «eterna», o que remete para a ideia de uma noite cósmica, divina e
materna a cujos braços acolhedores o «eu» pode fazer apelo;
– «antiga e calma», o que tem a ver com a sua ancestralidade, com a
tranquilidade que transmite e a protecção que dispensa, e também com o facto de
constituir um exterior a que se regressa como a um lugar de paz, uma casa
materna;
– a que nasce «ao morrer do dia», como se lê no último verso, e aquela à
qual a paisagem se
acolhe (do mesmo modo que o «eu» quer que a «noite eterna» o acolha);
– ...
O regresso à noite é como uma libertação, por um lado, e como uma
participação cósmica, por outro, remetendo para uma experiência de natureza
mística.
(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº
286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 – Prova Modelo. Portugal, GAVE [IAVE], 2000)
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Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
“Abdicação,
Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 06-12-2022 (última atualização: 21-07-2023).
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/abdicacao-fernando-pessoa.html
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