terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Abdicação, Fernando Pessoa


 

ABDICAÇÃO

 

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços

E chama-me teu filho.

        Eu sou um rei

Que voluntariamente abandonei

O meu trono de sonhos e cansaços.

 

Minha espada, pesada a braços lassos,

Em mãos viris e calmas entreguei;

E meu cetro e coroa, — eu os deixei

Na antecâmara, feitos em pedaços.

 

Minha cota de malha, tão inútil

Minhas esporas, de um tinir tão fútil,

Deixei-as pela fria escadaria.

 

Despi a realeza, corpo e alma,

E regressei à noite antiga e calma

Como a paisagem ao morrer do dia.

 

s. d.

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15.ª ed. 1995).  - 215.

1.ª publ. in Ressurreição , nº 9. Lisboa: Fev. 1920.

 

__________

Nota – O segundo verso deste soneto é constituído por dois membros: «E chama-me teu filho.» e «Eu sou um rei».

 

I -  Questionário sobre o poema “Abdicação”

1. O sujeito poético metaforiza a sua existência definindo-se como um rei.

Caracterize a atitude desse rei ao longo do poema.

2. Relacione o sentido dos dois últimos versos do poema com a apóstrofe à «noite», presente nos versos 1 e 2.

3. Considere as afirmações seguintes sobre o poema.

(A) Embora Fernando Pessoa seja um poeta modernista, em «Abdicação» são revelados traços de egotismo, que associamos ao Romantismo.

(B) Ao longo do poema, o sujeito poético evidencia o desejo de evasão no tempo para a época medieval.

(C) No primeiro terceto, são convocadas sensações auditivas e táteis para realçar as ideias transmitidas.

(D) O sujeito lírico, ao assumir os seus atos, expõe dúvidas existenciais relativamente às suas decisões.

(E) Ainda que escrito num tempo em que se valoriza a liberdade formal, o poema apresenta a estrutura clássica de soneto, com versos decassilábicos e com o esquema rimático abba/abba/ccd/eed.

Identifique as duas afirmações falsas.

 

Explicitação dos cenários de resposta

1. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

− a abdicação (presente no título)/a renúncia, evidenciada na decisão (tomada conscientemente) de abandonar a luta (que a vida representa) e visível no abandono dos símbolos de poder e de realeza (trono, espada, cetro, coroa, cota de malha, esporas), mostrando que o sujeito poético abandona os seus sonhos, os cansaços, os despojos de uma vida vazia;

− o desejo de anulação/de apagamento (alcançado através da morte).

2. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

− o sujeito poético expressa o desejo de regressar à «noite antiga e calma» (v. 14)/de (re)encontrar a paz que não consegue alcançar (numa vida que reconhece como inútil e fútil);

− a concretização desse desejo, enunciado logo na apóstrofe inicial («Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços / E chama-me teu filho» vv. 1 e 2), é propiciado pela noite (que pode ser perspetivada como metáfora da morte), à qual o sujeito poético pede que o acolha nos seus braços, consolando-o tal como uma mãe a um filho.

3. Versão 1: B e D.

Fonte: Exame Final Nacional de Português | Prova 639 (versão 1) | 2.ª Fase | Ensino Secundário | 2023 - 12.º Ano de Escolaridade | Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 22/2023, de 3 de abril. República Portuguesa – Educação / IAVE-– Instituto de Avaliação Educativa, I.P

***

II - Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

– sequência e sentido dos atos de abdicação;

– caracterização da figura do rei;

– recursos estilísticos e aspectos formais relevantes;

– simbolismo da noite.

 

Explicitação de cenários de resposta

 

Sequência e sentido dos actos de abdicação

A «Abdicação» referida no título concretiza-se numa sequência de acções simbólicas expressas ao longo do poema: o abandonar do «trono»; o entregar da «espada»; o despojar-se de «ceptro», «coroa», «cota de malha» e «esporas»; o descer a «escadaria»; o sair para o exterior. São actos que indicam o abandono voluntário de uma situação de poder.

Tal «Abdicação», como o indica a expressão «Despi a realeza, corpo e alma», para além de significar um abandono voluntário do poder, significa também uma purificação, um despojamento interior, pela libertação de tudo o que é superficial e acessório («tão inútil», «tão fútil»).

Assim, se, por um lado, esse abandono pode significar uma forma de desistência, a dimensão moral do despojamento indica, por outro, uma libertação de insígnias e de convenções, a qual permite ao «eu» um regresso à «noite eterna» e «calma», isto é, um reencontro com a harmonia e com a paz do Universo.

 

Caracterização da figura do rei

Podem ser apontados como elementos caracterizadores principais:

– todos os atributos de «realeza, corpo e alma», que constituem uma alegoria da vida humana, com os seus «sonhos e cansaços»: a «espada», a «cota de malha» e as «esporas», símbolos da força e do combate; o «ceptro e coroa», símbolos do poder;

– o reconhecimento da inutilidade e da futilidade das coisas terrenas, que têm a ver com os valores do poder e da guerra e com os «sonhos», símbolo dos ideais não realizados, como é sugerido pela palavra «cansaços»;

– a abdicação de ter poder sobre a terra, retirando-se para um espaço sem poder, para reintegrar um lugar materno simbolizado pela noite;

– a privação voluntária da identidade pessoal, regressando a uma identificação original com o Cosmos;

– ...

 

Recursos estilísticos e aspetos formais relevantes

O poema caracteriza-se por uma linguagem metafórica. Assim:

– «rei», «trono», «espada», «ceptro», «coroa», «cota de malha», «esporas» são metáforas que remetem para um código prévio – o da cavalaria medieval;

– a «Abdicação» deste «rei» é figurada através de um conjunto coerente de gestos que são outras tantas metáforas – abandonar o «trono», entregar a «espada», deixar «ceptro e coroa», «cota de malha» e «esporas», despir a «realeza», regressar à «noite»; no seu todo, estas constroem uma alegoria da vida interior, com o sujeito despojando-se dos bens do mundo, simbolizados pelas marcas da «realeza» – «meu trono», «Minha espada», «meu ceptro e coroa», «Minha cota de malha», «Minhas esporas»;

– ...

São ainda relevantes, entre outros, os seguintes recursos estilísticos:

– personificação («Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços / E chama-me teu filho»), representando a noite como uma figura feminina e maternal;

– aliteração e/ou assonância («braços lassos», «fria escadaria»), reforçando, pela rima interna, o conteúdo semântico dos termos assim ligados;

– ...

Nos aspetos formais há a destacar:

– o recurso à estrutura clássica do soneto – em decassílabos heróicos, com um esquema rimático tradicional quer nas quadras (abba) quer nos tercetos (ccd / eed), culminando na «chave de ouro» – em sintonia com a nobreza do universo recriado no poema;

– ...

 

Simbolismo da noite

Simbolicamente, a noite é:

– «eterna», o que remete para a ideia de uma noite cósmica, divina e materna a cujos braços acolhedores o «eu» pode fazer apelo;

– «antiga e calma», o que tem a ver com a sua ancestralidade, com a tranquilidade que transmite e a protecção que dispensa, e também com o facto de constituir um exterior a que se regressa como a um lugar de paz, uma casa materna;

– a que nasce «ao morrer do dia», como se lê no último verso, e aquela à qual a paisagem se

acolhe (do mesmo modo que o «eu» quer que a «noite eterna» o acolha);

– ...

O regresso à noite é como uma libertação, por um lado, e como uma participação cósmica, por outro, remetendo para uma experiência de natureza mística.

  

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 – Prova Modelo. Portugal, GAVE [IAVE], 2000)

 

 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 



Abdicação, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 06-12-2022 (última atualização: 21-07-2023). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/abdicacao-fernando-pessoa.html


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