Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do
Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra
terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para
longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os
nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
s.d.
“O
Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota
explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática,
1946 (10.ª ed. 1993). - 32.
I - COMENTÁRIO DE TEXTO
Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes
tópicos:
- oposição entre a "aldeia" e a "cidade";
- importância do ato de ver;
- recursos estilísticos relevantes;
- traços da poética de Caeiro.
Explicitação de cenários de resposta
- Oposição entre a "aldeia" e a "cidade"
O
poema organiza-se em torno da caracterização contrastiva da "minha
aldeia" e das "cidades" ou da "cidade", caracterização
essa que se desenvolve, porém, em termos inesperados. Assim:
- a "minha aldeia" é
apresentada como lugar de eleição, na medida em que permite ao sujeito o grau
máximo de visibilidade de "quanto da terra se pode ver do Universo"
(v. 1); por esse motivo, ela supera o estatuto de povoação diminuta que por
definição é o seu, tornando-se "tão grande como outra terra qualquer"
(v. 2);
- a cidade revela-se limitativa, pois
"as grandes casas" enclausuram o olhar, ocultam-lhe o céu e
afastam-no da natureza (cf. vv. 7, 8), ou, por outras palavras, desapossam-nos
da "nossa única riqueza", que "é ver" (v. 10).
Em
suma, a cidade tem um efeito de fechamento e afasta "a vista" (v. 7)
do "horizonte" e do "Céu" (v. 8), enquanto a aldeia
propicia a abertura para o infinito ("Universo" - v. 1).
Consequentemente, o poema associa, por um lado, cidade a pequeno e a pobre (vv.
9 e 10) e, por outro, aldeia a "grande" (v. 2) e, de forma implícita,
a riqueza (v. 10), invertendo as noções tradicionais de aldeia e de cidade.
- Importância do ato de ver
O
desenvolvimento da oposição entre aldeia e cidade faz emergir, como ideia
nuclear do poema, a importância do ato de ver, manifestada, desde logo, pela
utilização de formas do verbo ver e de vocábulos com ele semanticamente
relacionados ("vista", "olhar", "olhos" - vv. 7,
8, 9). Segundo o texto, a visão é um modo de conhecimento privilegiado, pois
permite percecionar a imensidão do mundo, superando a dimensão física limitada
do sujeito (vv. 3-4). Com efeito, é o olhar que determina a configuração do
mundo e do próprio ser, na medida em que existe uma relação entre:
- a extensão do campo de visão e a do
espaço em que o Eu se situa (cf. vv. 1, 2);
- o que o sujeito vê e a perceção que
tem de si ("eu sou do tamanho do que vejo / E não do tamanho da minha
altura..." - vv. 3-4);
- a possibilidade de visão e o valor da
existência humana ("as grandes casas fecham a vista à chave",
"Tornam-nos pequenos", "tornam-nos pobres", "a nossa
única riqueza é ver" - vv. 7, 9, 10);
- …
- Recursos estilísticos relevantes
São
relevantes, entre outros, os seguintes aspetos estilísticos:
- presença de construções causais,
evidenciando uma intenção explicativa do discurso ("Por isso",
"Porque eu sou", "porque nos tiram", "porque a nossa
única riqueza" - vv. 2, 3, 9,10);
- utilização da estrutura
paralelística, amplificando a noção de perda ("Tornam-nos pequenos porque
[...] / E tornam-nos pobres porque [...]" - vv. 9-10);
- recurso ao grau comparativo dos adjetivos
com o intuito de caracterizar a "aldeia" por referência a outros
espaços, realçando-se, por um lado, o nível idêntico de grandeza existente
entre a "aldeia" e "outra terra qualquer" (v. 2) e, por
outro lado, minimizando-se a vida na cidade para valorizar a vida na aldeia
("Nas cidades a vida é mais pequena / Que aqui na minha casa" - vv.
5-6);
- conjugação da metáfora ("fecham
a vista à chave", "empurram o nosso olhar" - vv. 7-8) com a
personificação de "casas" ("fecham", "Escondem",
"empurram", "tiram"), para sublinhar a atrofia do ver como
efeito do ambiente citadino;
- …
- Traços da poética de Caeiro
O
poema evidencia alguns dos traços representativos da poética de Caeiro.
Exemplificando:
- apologia da visão como valor
essencial;
- relação de harmonia com a Natureza;
- aparente simplicidade e natureza
argumentativa do discurso poético, visível no recurso a uma linguagem corrente
e a construções causais;
- …
(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº
286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 1999,
1.ª fase, 1.ª chamada)
II - QUESTIONÁRIO
1.
Mostre
2.
Explicite a
3.
Identifique e aprecie o
4.
Aprecie o
5.
Classifique os articuladores de
6.
(Adaptado de Abordagens 12.º, Zaida Braga
et alii. Porto Ed., 2005, pp.80-81)
Explicitação de cenários de resposta
1.
A
OU
O sujeito poético, sendo
sensacionista e dando primazia à visão, entende que infinito como o próprio
Universo, pois não há nada a limitar as sensações que sente; nem a nível
físico, pois não existem as “grandes casas” que “fecham a vista à chave”, nem a
nível psicológico, pois o sujeito poético limita-se a ver a realidade que o
rodeia sem racionalizá-la, nem criar pensamentos que o limitariam.
2. A
OU
A “aldeia” é um cenário
rico em sensações: é um espaço mais aberto, em comunhão com a Natureza e livre
de barreiras para os sentidos. A “cidade”, por outro lado, limita as
experiências sensoriais (com os seus edifícios que escondem o céu e o
horizonte) e torna as pessoas mais distantes da Natureza.
3. O deíctico
(
4. Os
OU
Como conclusão do poema,
os dois últimos versos completam um raciocínio silogístico:
1ª
premissa: “sou do tamanho do que vejo” (v. 3).
2ª
premissa: Não vemos o que devíamos ver (“nos
tiram o que os nossos olhos nos podem dar”).
Logo, somos pequenos e pobres (“tornam-nos pequenos […] / E […]
pobres”).
Se a nossa única riqueza
é ver e vemos pouco, logo somos pobres. É este o raciocínio que o poeta utiliza
para justificar que a vida no campo é rica e na cidade é pobre.
5. POR
6. Caeiro defende que o ato poético deve ser tão natural como a
própria Natureza, pelo que seria desnecessário trabalhar os versos como os
artífices trabalham as suas obras. Assim, o poeta não deveria ocupar a mente
com a especulação filosófica sobre as causas ou finalidades das coisas.
No
entanto, há uma contradição entre os propósitos de Caeiro e a sua prática, na
medida em que os articuladores de discurso utilizados neste poema estão ao
serviço de um discurso complexo, filosófico onde se estabelecem as tais
relações de causalidade / consequência (as relações comparativas de valor
analógico-dedutivo).
OU
Este tipo de
articuladores denota um raciocínio, um pensamento complexo, que vai contra as ideias sensacionistas e panteístas
defendidas por Caeiro na sua restante obra. Cria-se, assim, um paradoxo: o
poeta critica a racionalização das coisas, mas para poder fazê-lo tem de
servir-se dessa mesma racionalização. Pode-se, assim, concluir que Alberto
Caeiro, apesar de tentar ser um sensacionista, não consegue sê-lo realmente,
desviando-se da pureza das sensações e caindo nas “armadilhas” do pensamento
racional.
Poderá também gostar de:
- Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
- Intertextualidade com um poema do início do século XXI:
A minha casa tem
uma varanda
Dela vejo um pedaço de mar
Copas de algumas árvores e
Quando as nuvens estão altas
Vejo mesmo o alto do monte
Em que sei que para lá dele
Está a lagoa do fogo. Também sei que isto
Pouco tem de interessante
E por isso o escrevo e de tudo o que há a dizer
Fico-me por dizer o que disse.
A varanda tem nas grades uns vasos dependurados
(estou convencido de que a imagem é fácil de construir)
Ignoro os nomes das plantas e ervas que estão nos vasos
E por isso dou-lhes os nomes que me surgem no momento
Cacto, rúcula, coentro e salsa
Algo no pedaço de mar me distrai das plantas e ervas
E de seguida são outros os nomes que lhes dou
É por causa destas coisas talvez
Que se diz que o mundo é feito de mudança
Fernando Martinho Guimarães, poema XVIII da terceira
parte (“O lugar dos caminhos”) do livro é o mar e tudo o que nele cabe. Vila
Nova de Famalicão, Edições Húmus, 2023 (Coleção 12catorze, n.º 67). Disponível
aqui: https://edicoeshumus.pt//index.php?route=product/product&product_id=1524
Proposta de escrita
Elabora uma análise
comparativa dos dois poemas apresentados, tendo em conta os seguintes itens:
- Visão e tamanho do mundo
- Restrições das cidades
- Observação e nomes das coisas
- Mudança e impermanência
Sugestão de resposta:
O poema de Fernando Martinho Guimarães
dialoga intertextualmente com o poema VII de "O Guardador de
Rebanhos", em alguns aspetos:
No poema de Alberto Caeiro, o sujeito
poético menciona que a sua aldeia é tão grande quanto qualquer outra terra,
pois ele é do tamanho do que vê, não do tamanho da sua altura. Isto relaciona-se
com o segundo poema, em que o eu lírico observa a sua casa a partir da varanda
e vê o mar, as árvores e o alto do monte. Ambos os poemas abordam a noção de
que a perceção individual do mundo determina a sua extensão e importância.
No primeiro poema, Caeiro descreve como a
vida nas cidades é limitada e pequena, com grandes casas que bloqueiam a visão
do horizonte e empurram o olhar para longe do céu. Essa restrição é contraposta
ao segundo poema, onde o eu lírico está em sua casa e vê um pedaço de mar, mas
reconhece que isso pouco tem de interessante. Ambos os poemas sugerem a ideia
de que as cidades e as suas restrições podem diminuir a experiência e a conexão
com o mundo.
Enquanto Caeiro enfatiza a importância da
visão e da capacidade de ver como a única riqueza verdadeira, o eu lírico do
poema do século XXI observa os vasos de plantas na sua varanda, mas confessa
ignorar os nomes das plantas e dá-lhes nomes que surgem no momento. Ambos os
poemas exploram a relação entre a observação, a capacidade de nomear e a
construção da experiência do mundo.
Caeiro menciona que a única certeza é a
mudança, e essa ideia é retomada no outro poema, onde o eu lírico afirma que é
por causa dessas coisas que o mundo é feito de mudança. Ambos os poemas
refletem sobre a transitoriedade da existência e a constante transformação do
mundo ao nosso redor.
Em síntese, o poema de Fernando Martinho Guimarães
dialoga intertextualmente com o poema de Alberto Caeiro na medida em que ambos apresentam
uma visão da vida que valoriza a simplicidade e a beleza da natureza. Ambos os
poemas sugerem que a vida é mais rica e significativa quando se valoriza a
perspetiva individual e se aprecia a beleza simples da natureza.
“Da minha aldeia vejo
quanto da terra se pode ver do Universo, Alberto Caeiro” in Folha
de Poesia, José Carreiro. Portugal, 04-12-2022 (última atualização: 31-03-2023). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/da-minha-aldeia-vejo-quanto-da-terra-se.html
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