quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego (Álvaro de Campos)


 


Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida...
Calaram o piano no terceiro-andar..
Não oiço já passos no segundo-andar.
No rés-do-chão o rádio está em silêncio...

Vai tudo dormir…

Fico sozinho com o universo inteiro.
Não quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anticitadino! –

Antes, recluso,
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
Um automóvel! - demasiado rápido! -
Os duplos passos em conversa falam-me
O som de um portão que se fecha brusco dói-me...

Vai tudo dormir...

Só eu velo, sonolentamente escutando,
Esperando
Qualquer coisa antes que durma...
Qualquer coisa...

 

Álvaro de Campos, Poesias, Lisboa, Ática, 1993

 

Questionário sobre o poema “Começa a haver meia-noite, e a haver sossego”.

1. Este poema não apresenta regularidade métrica ou estrófica. No entanto, obedece a certas regras de composição.

1.1. Identifique as repetições que lhe marcam o ritmo.

1.2. Mostre como as sensações auditivas e visuais nele são referidas.

2. Explicite de que modos é sugerida, ao longo deste poema, a experiência da passagem do tempo.

3. Indique um sentido possível do verso 17: "Os duplos passos em conversa falam-me".

4. Descreva a imagem que o sujeito poético dá de si mesmo.

 

Explicitação de cenários de resposta

1.1. Essas repetições são de diferentes tipos:

- repetição simples:

v. 1 - "a haver";

vv. 3-5 - "andares", "terceiro-andar", "segundo-andar".

- repetição de tipo rima:

vv. 4-5 - "terceiro-andar", "segundo-andar";

vv. 13, 14 - "recluso";

vv. 20, 21 - "escutando", "Esperando" (jogando ainda, neste caso, com as aliterações nasais de "sonolentamente").

- repetição de tipo refrão:

vv. 7, 19 - "Vai tudo dormir...".

- repetição anafórica:

vv. 10-12 - "que de estrelas!" - "Que grandes silêncios maiores há no alto!" - "Que céu anticitadino!";

vv. 22, 23 - "Qualquer coisa".

Nota - A não classificação dos tipos de repetição não deve ser fator de desvalorização.

1.2. Há uma alternância na representação das sensações auditivas e visuais:

- primeira estrofe - predominam sensações auditivas: "sossego" - "Calaram o piano" - "Não oiço já passos" - "o rádio está em silêncio";

- terceira estrofe - predominam sensações visuais: "ir à janela" - "Se eu olhar" - "estrelas" - "no alto" - "céu";

- quarta estrofe - predominam sensações auditivas: "Escuto" - "ruídos da rua" - "Um automóvel" - "duplos passos em conversa" - "O som de um portão que se fecha";

- sexta estrofe - refere-se a atividade de escutar, sem se discriminarem sensações auditivas.

2. Essa experiência pode definir-se, em geral, como a de uma lenta passagem do tempo.

A - Pode notar-se, a este respeito:

- a ideia de um silêncio que, a pouco e pouco, se instala (primeira estrofe);

- a dispersão e a nitidez dos "ruídos da rua" (quarta estrofe);

- a repetição de tipo refrão "Vai tudo dormir", que sugere um abrandamento de ritmo;

- a repetição de "Qualquer coisa", marcando de modo especial a lentidão com que o tempo corre e o vazio que lhe está associado (sexta estrofe);

- (...)

B - Pode notar-se que a passagem do tempo é, desde logo, dada pela perifrástica "Começa a haver meia-noite, e a haver sossego". O tempo é também marcado pela utilização do:

- presente do indicativo (às vezes referido a um passado imediatamente anterior "Não oiço já");

- presente do indicativo com valor de futuro (perifrástica "Vai tudo dormir");

- gerúndio, assinalando o aspeto durativo do presente ("escutando, Esperando");

- …

Nota - A apresentação de uma das linhas de orientação da resposta (A ou B) é considerada suficiente.

3. Exemplos de interpretações possíveis:

- os passos que o Eu ouve são de duas pessoas que vão a conversar, ou então são os seus ritmos de passos que parecem "conversar" entre si;

- o barulho produzido pelos passos é percecionado como um tipo de linguagem;

- os passos "falam" no sentido em que sugerem ao Eu solitário que escuta uma presença ou uma companhia humanas;

- os passos que o Eu ouve são a sensação do exterior, do espaço não confinado, não "recluso";

- …

4. Traços do autorretrato do Eu:

- as suas sensações começam por ser todas do exterior e está atento à vida da cidade à sua volta;

- sente-se sozinho perante o universo imenso;

- sente-se recluso, como se estivesse preso na casa;

- os advérbios de modo "ansiosamente" e "sonolentamente" marcam, de forma contraditória, o estado de desassossego e de atenção ao exterior;

- o desejo de "alguma coisa" é tanto mais inquietante e ansioso quanto esse objeto de desejo é impreciso e vago;

- …

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 1998, 1.ª fase, 1.ª chamada

 

 



Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Da mais alta janela da minha casa (Alberto Caeiro)

 



Leia o poema XLVIII, de O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro

 

Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade.
E não estou alegre nem triste.

Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

 

Alberto Caeiro, Poesia, edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, 3.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, pp. 85-86.

 

 

Questionário sobre o poema XLVIII, de O Guardador de Rebanhos

1. Explicite a evolução do estado de espírito do sujeito poético, tendo em conta o sentido dos versos 4, 12-13 e 19-20.

2. Relacione a referência a elementos da natureza na segunda estrofe com a conceção de poesia presente neste poema.

3. Explique em que medida o último verso sintetiza o conteúdo da penúltima estrofe.

4. Refira duas características formais da poesia de Alberto Caeiro presentes no poema transcrito. Exemplifique essas características com a referência a elementos textuais.

 

Explicitação de cenários de resposta

1. Para explicitar a evolução do estado de espírito do sujeito poético, devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

(primeiro,) aceitação com naturalidade (nem «alegre nem «triste») da divulgação dos seus versos, pois esse é o «destino» da sua poesia (vv. 4-5);

(de seguida,) sofrimento involuntário («sem querer») ao tomar consciência de que os seus versos deixarão de ser apenas seus, partindo ao encontro dos seus leitores (vv. 11-15);

(finalmente,) resignação perante a inevitabilidade da divulgação dos seus versos (vv. 19-20).

2. Para relacionar a referência a elementos da natureza na segunda estrofe com a conceção de poesia presente no poema, devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

tal como a flor, o rio e a árvore não escondem, respetivamente, a cor, o curso da água e o fruto, também o poeta não pode esconder os seus versos, que constituem a sua essência;

a referência a elementos da natureza evidencia o carácter espontâneo e natural do ato de escrever.

3. Para explicar em que medida o último verso sintetiza o conteúdo da penúltima estrofe, devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

o sujeito poético constata que os elementos da natureza (árvore, flor, água) se renovam/se transformam, mas não desaparecem nunca;

o sujeito poético sente-se parte da natureza, pois também ele, depois de morrer, permanecerá através da sua poesia.

4. Na resposta, devem ser referidas duas das características seguintes, ou outras igualmente relevantes:

irregularidade estrófica, pois o poema é constituído por sete estrofes com um número variável de versos (um monóstico, um dístico, dois tercetos, uma quadra, uma quintilha e uma sétima);

irregularidade métrica, dado que os versos apresentam um número variável de sílabas métricas (por exemplo, o primeiro verso tem 11 e o décimo quarto tem 7 sílabas métricas);

ausência de rima ao longo do poema, na medida em que todos os versos são brancos.

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 - 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2018, Época Especial



 


Texto de apoio

O poema XLVIII permite perceber a distância entre a linguagem poética e o que lhe é exterior em favor da autonomia da primeira: “Da mais alta janela da minha casa/ Com um lenço branco digo adeus/ Aos meus versos que partem para a humanidade”.

O poema é uma imagem nítida dos versos, tornados objetos singulares, que, ao partirem “para a humanidade”, se autonomizam tanto em relação ao poeta como já o eram da humanidade para onde vão. Perdoe-se o transporte lírico: como se os versos se despedissem do poeta que ficou no exílio de Platão para dele darem notícias à república dos homens.

De igual modo a singularidade dos versos, enquanto objetos autónomos, sai reforçada no seu carácter não natural, no sentido em que não advêm ou não fazem parte da natureza. Isso parece ser claro no poema, já que o paralelismo feito com elementos da natureza é estabelecido unicamente com o sujeito enquanto fazedor de versos - essa sim, uma atividade natural: “como a flor não pode esconder a cor/ Nem o rio esconder que corre”. Não se retira daqui que a não naturalidade implique artificialidade, pelo contrário. Pela individualização dos seus versos, mais do que o expediente literário utilizado no poema que me tem ocupado – a prosopopeia, “Com um lenço branco digo adeus/ Aos meus versos” – atribui Caeiro realidade aos seus versos com atributos intrínsecos, ao mesmo tempo que tenta retirá-los de uma perspetiva puramente literária ao reenviá-los “para a humanidade”.

No entanto, a singularidade dos versos é consequência, acima de tudo, da negação dos universais recorrente em toda a sua poesia, negação essa que encontramos condensada no poema XLVII: “Vi que não ha Natureza, / Que Natureza não existe, / Que ha montes valles, planícies (...) Que um conjunto real e verdadeiro/ É uma doença das nossas idéas” (p.98). Apesar da contradição entre esta negação e o verso reivindicativo, “Além d’isso fui o único poeta da Natureza”, isto é, cantor do conjunto “Natureza”, a negação de essências a um conjunto de seres é persistente. António M. Feijó, no ensaio “’Alberto Caeiro’ e as últimas palavras de Fernando Pessoa”, articula vigorosamente a mundividência de Caeiro e a expressão dela: o termo “natureza”, tradutor da síntese aditiva de particulares, é rejeitado como “marca de violência interpretativa”; por outro lado, “a prevalência do símile como o quasi-tropo electivo de Caeiro” é igual recusa de outros tropos, como a metáfora, que “descolam termos singulares do seu lugar original, e são, por isso, uma forma de mania interpretativa”. (António M. Feijó, “’Alberto Caeiro’ e as últimas palavras de Fernando Pessoa”, Colóquio Letras, 2000, p. 182)

 

In: Poetas e carpinteiros. Uma reflexão sobre a utilidade da poesia a propósito da vontade de rir de Alberto Caeiro quando leu versos de um poeta místico, José Manuel Nunes da Rocha. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2002

 

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.

 


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

E há poetas que são artistas (Alberto Caeiro)

 



Leia o poema XXXVI de «O Guardador de Rebanhos». Se necessário, consulte a nota.

 

E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem construi um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre boa e é sempre a mesma.
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos,
E não termos sonhos no nosso sono.

 

Fernando Pessoa, Poesia de Alberto Caeiro, edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, 3.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, p. 72

 

NOTA

construi (verso 5) – o mesmo que constrói.

 

QUESTIONÁRIO

1. Nas três primeiras estrofes, são abordados dois processos de criação poética.

    Explicite esses dois processos, tendo em conta, por um lado, as comparações presentes nos versos 3 e 5 e, por outro lado, o sentido do verso 4 e o conteúdo da terceira estrofe.

2. Interprete o verso «Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa» (v. 9), atendendo à especificidade da poesia de Alberto Caeiro.

3. Explique o modo como as sensações e a comunhão com a natureza são valorizadas na quarta estrofe do poema. Fundamente a sua resposta com elementos textuais pertinentes.



 


Explicitação de cenários de resposta

1. Descritor de desempenho: Explicita os dois processos de criação poética, desenvolvendo, adequadamente, o conteúdo dos quatro tópicos de resposta.

Tópicos de resposta

Na resposta, devem ser abordados os aspetos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

– Processo de criação poética dos «poetas que são artistas» (v. 1):

• trabalho minucioso/rigoroso/artesanal, à semelhança do trabalho do carpinteiro e do pedreiro;

• poesia pensada/consciente.

– Processo de criação poética dos poetas que sabem «florir» (v. 4):

• ato involuntário/espontâneo;

• em harmonia com a própria natureza, «única casa artística»; logo, o único modelo de arte.

Exemplo de resposta

No poema, são apresentados dois processos distintos de criação poética. De acordo com o primeiro processo – o dos «poetas que são artistas» (v. 1) –, a poesia corresponde a um trabalho minucioso, rigoroso e artesanal. Neste contexto, as comparações com o carpinteiro (v. 3) e com o pedreiro – «como quem construi um muro» (v. 5) – enfatizam o trabalho formal e, por conseguinte, consciente do poeta. O segundo processo – defendido pelo sujeito poético – é o que se deduz do verso 4, em que o «eu» manifesta a sua tristeza e estranheza por haver poetas que não são capazes de «florir», ou seja, de fazer da criação poética um ato involuntário, espontâneo e tão natural quanto o ato de «florir».

Deste modo, o primeiro processo, o de uma poesia pensada, opõe-se à ideia de uma poesia espontânea e simples, dado que está em contradição com a própria natureza que, na sua diversidade e harmonia, constitui o modelo da verdadeira arte.

 

2. Descritor de desempenho: Interpreta o sentido do verso 9, desenvolvendo, adequadamente, o conteúdo dos dois tópicos de resposta.

Tópicos de resposta

Na resposta, devem ser abordados os aspetos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

• Existência de uma contradição entre aquilo que o sujeito poético afirma («não como quem pensa, mas como quem não pensa») e o que ele faz («Penso nisto»).

• Recusa do pensamento puro e valorização das sensações.

Exemplo de resposta

No verso «Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa» (v. 9), o sujeito poético exprime a ideia de que o pensamento é algo natural e espontâneo, recusando, por isso, o pensamento puro, na medida em que se afasta das sensações. Ao pensar, incorre, porém, naquilo que combate: a intelectualização.

Assim, verifica-se a existência de uma contradição entre o que o «eu» poético afirma (pensar como se não pensasse) e o que faz (pensar).

 

3. Descritor de desempenho: Explica, com base em elementos textuais pertinentes, o modo como as sensações e a comunhão com a natureza são valorizadas na quarta estrofe, desenvolvendo, adequadamente, o conteúdo dos quatro tópicos de resposta.

Tópicos de resposta

Na resposta, devem ser abordados os aspetos seguintes, ou outros igualmente relevantes, devidamente fundamentados com elementos textuais.

– Valorização das sensações:

• privilégio da realidade captada pelos sentidos (vv. 10 e 17);

• negação/recusa do pensamento (vv. 11-12).

– Valorização da comunhão com a natureza:

• o «eu» é um elemento da natureza tal como as flores, partilhando com elas uma «comum divindade» (v. 14);

• a «Terra» é a mãe natureza, acolhedora e protetora (vv. 15-17).

Exemplo de resposta

Na quarta estrofe do poema, a valorização das sensações é evidenciada pelo facto de o sujeito poético privilegiar a realidade captada pelos sentidos, concretamente a visão e a audição, como se comprova nos versos «E olho para as flores e sorrio...» (v. 10) e «E deixar que o vento cante para adormecermos» (v. 17). Nega-se, assim, a necessidade de compreender algo mais além daquilo a que se acede através das sensações, atitude evidenciada nos versos «Não sei se elas me compreendem / Nem se eu as compreendo a elas» (vv. 11-12).

A comunhão com a natureza decorre, por um lado, do facto de o «eu» considerar que é um elemento da natureza tal como as flores, partilhando com elas uma «comum divindade» (v. 14) que permite aceder à «verdade» (v. 13) e, por outro lado, do facto de «a Terra» ser caracterizada como a mãe natureza, acolhedora e protetora. Por esta razão, o homem entrega-se à natureza, numa atitude de desprendimento e de aceitação, sem qualquer mediação reflexiva (vv. 15-17).

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 - 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2017, 1.ª Fase

 

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.

 


domingo, 19 de fevereiro de 2023

A espantosa realidade das coisas (Alberto Caeiro)


 

A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais, naturalmente.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada,
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem esforço
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos,
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

 

Fernando Pessoa, Poemas de Alberto Caeiro, 7.ª ed., Lisboa, Ática, 1979

 

 

Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Explique, de acordo com as quatro primeiras estrofes do poema, em que consiste a «espantosa realidade das coisas» (v. 1).

2. Refira dois sentimentos que a descoberta da «espantosa realidade das coisas» (v. 1) provoca no sujeito poético, justificando a resposta com citações pertinentes.

3. Explicite o modo como o sujeito poético define a sua poesia ao longo do poema.

4. Indique um dos valores expressivos das anáforas presentes na quarta estrofe do poema, fundamentando a sua resposta.

 

 


Explicitação de cenários de resposta

1. A resposta pode contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

A «espantosa realidade das coisas» referida no primeiro verso consiste nos aspetos seguintes:

– as coisas são uma revelação quotidiana (v. 2);

– as coisas simplesmente existem (v. 3);

– as coisas bastam-se a si mesmas (v. 6);

– as coisas têm realidade objetiva, independente dos pensamentos e das emoções do sujeito que as observa ou avalia e dos significados que esse sujeito lhes possa atribuir (vv. 12 a 17);

– as coisas não têm sentimentos nem outras características humanas (vv. 16 e 17).

2. A resposta pode contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

A descoberta da «espantosa realidade das coisas» (v. 1) leva o sujeito poético a experimentar os sentimentos seguintes:

– felicidade – «quanto isso me alegra» (v. 4); «E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido» (v. 19);

– plenitude – «quanto isso me basta» (v. 5); «Basta existir para se ser completo.» (v. 6).

3. A resposta pode contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

Através da leitura do poema, pode perceber-se que o sujeito poético define a sua poesia do seguinte modo:

– os seus poemas afirmam a realidade das coisas e são todos diferentes, como a realidade (vv. 9 a 11);

– a escrita dos seus poemas é espontânea – «Porque o digo como as minhas palavras o dizem» (v. 24); «Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.» (v. 31) – de tal modo que a possibilidade de uma caracterização como «poeta materialista» (v. 25) lhe causa perplexidade;

– os seus versos decorrem de sensações visuais (v. 28);

– o valor do que escreve está nos versos e não no poeta que os escreve (vv. 29 e 30).

4. A resposta pode contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

As anáforas que se encontram na quarta estrofe do poema têm, entre outros, os seguintes valores expressivos:

– a reiteração das ideias apresentadas (nos vv. 13 e 14, o sujeito poético recusa a atribuição de faculdades humanas às coisas; nos vv. 15 a 17, destaca o seu apreço pelas «coisas» reais e exteriores);

– o reforço da oposição entre a atitude que o sujeito poético recusa (vv. 13 e 14) e a atitude que adota (vv. 15 a 17);

– a sugestão de um tom coloquial coerente com a espontaneidade defendida ao longo do poema.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2012, Época Especial



Proposta de Escrita:

 

Leia o excerto seguinte da carta sobre a génese dos heterónimos, enviada por Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro em 13 de janeiro de 1935.

E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre.

Fernando Pessoa, Correspondência – 1923-1935, ed. de Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999

 

Explique, fazendo apelo à sua experiência de leitura, em que medida a poesia de Fernando Pessoa ortónimo se afasta dos ensinamentos do mestre, fundamentando a sua exposição em dois aspetos significativos.

Escreva um texto de oitenta a cento e trinta palavras.

 

Explicitação do cenário de resposta:

Explica, com pertinência e rigor, em que medida a poesia de Fernando Pessoa ortónimo se afasta dos ensinamentos do mestre, fundamentando a exposição em dois aspetos significativos e fazendo referências que refletem um muito bom conhecimento da obra pessoana.

A resposta pode contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

A poesia de Fernando Pessoa ortónimo afasta-se dos ensinamentos do mestre Caeiro em aspetos como:

– a sobrevalorização do pensamento;

– a excessiva subjetividade;

– a desconfiança nos sentidos;

– a consciência aguda da passagem do tempo;

– o medo da morte;

– os sentimentos de tédio e de insatisfação;

– o recurso ao símbolo;

– a revolta contra as leis da natureza;

– a atração pelo oculto;

– a preferência por formas poéticas tradicionais (quadra, redondilha, rima…).

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2012, Época Especial

 

Sugestão de resposta:

A poesia de Fernando Pessoa ortónimo, em grande medida, distancia-se dos ensinamentos do seu mestre Alberto Caeiro, um dos seus heterónimos. Enquanto Caeiro valorizava a observação e a sensibilidade aos sentidos, Pessoa ortónimo sobrevalorizava o pensamento, a subjetividade e desconfiava dos sentidos. Além disso, ao contrário de Caeiro, Pessoa ortónimo tinha consciência aguda da passagem do tempo, medo da morte, sentimentos de tédio e insatisfação, recorria frequentemente ao símbolo, revolta-se contra as leis da natureza, atraía-se pelo oculto e preferia formas poéticas tradicionais, como a quadra, redondilha e rima. Em resumo, enquanto a poesia de Caeiro celebrava a natureza e a simplicidade, a de Pessoa ortónimo explorava temas mais complexos e abstratos, e recorria a uma variedade de técnicas poéticas e de estilos literários para exprimir as suas ideias e emoções.

Resposta solicitada a ChatGPT (Feb 13 Version), disponível em https://chat.openai.com/chat, 2023-02-18

 

Outra sugestão de resposta:

A poesia de Fernando Pessoa ortónimo afasta-se significativamente dos ensinamentos do seu mestre Alberto Caeiro em vários aspetos. Em primeiro lugar, Pessoa ortónimo sobrevaloriza o pensamento, ao contrário de Caeiro, que defendia que pensar era estar doente dos olhos. Em segundo lugar, a poesia ortónima é excessivamente subjetiva, enquanto Caeiro buscava a objetividade e a simplicidade das coisas. Além disso, Pessoa ortónimo demonstra uma desconfiança nos sentidos, enquanto Caeiro valoriza a experiência sensorial.

A consciência aguda da passagem do tempo, o medo da morte, os sentimentos de tédio e insatisfação são temas recorrentes na poesia ortónima, enquanto Caeiro apreciava a beleza da natureza e tinha uma visão mais otimista da vida. Outra diferença é o recurso ao símbolo, que é frequente na poesia ortónima, mas praticamente inexistente na de Caeiro.

Enquanto Pessoa ortónimo questiona e se revolta contra as leis da natureza, Caeiro aceita-as e encontra nela a sua inspiração poética. A atração pelo oculto, que é um tema frequente na obra ortónima, também é algo que não se encontra na poesia de Caeiro. Por fim, a preferência por formas poéticas tradicionais, como a quadra, a redondilha e a rima, é mais evidente na poesia ortónima, enquanto Caeiro criou um novo estilo poético, o "guardador de rebanhos", que rompeu com a tradição. Em suma, a obra de Pessoa ortónimo e de Caeiro são bastante distintas em termos de temas, estilo e visão de mundo.

Resposta solicitada a ChatGPT (Feb 13 Version), disponível em https://chat.openai.com/chat, 2023-02-18

 

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.