Leia o poema XLVIII, de O Guardador
de Rebanhos, de Alberto Caeiro
Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade.
E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.
Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.
Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?
Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
Passo e fico, como o Universo.
Alberto Caeiro, Poesia,
edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, 3.ª ed., Lisboa, Assírio
& Alvim, 2009, pp. 85-86.
Questionário sobre o poema XLVIII,
de O Guardador de Rebanhos
1. Explicite a evolução do estado de
espírito do sujeito poético, tendo em conta o sentido dos versos 4, 12-13 e
19-20.
2. Relacione a referência a elementos da
natureza na segunda estrofe com a conceção de poesia presente neste poema.
3. Explique em que medida o último verso
sintetiza o conteúdo da penúltima estrofe.
4. Refira duas características formais da
poesia de Alberto Caeiro presentes no poema transcrito. Exemplifique essas
características com a referência a elementos textuais.
Explicitação de
cenários de resposta
1. Para explicitar a evolução do estado de espírito do
sujeito poético, devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente
relevantes:
‒ (primeiro,) aceitação com naturalidade (nem «alegre nem «triste»)
da divulgação
dos seus versos, pois esse é o «destino» da sua poesia (vv. 4-5);
‒ (de seguida,) sofrimento involuntário («sem querer») ao tomar consciência de que os seus versos deixarão de ser apenas
seus, partindo ao encontro dos seus leitores (vv. 11-15);
‒ (finalmente,) resignação perante a inevitabilidade da divulgação dos seus versos (vv. 19-20).
2. Para relacionar a referência a elementos da natureza
na segunda estrofe com a conceção de poesia presente no poema, devem ser
abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
‒ tal como a flor, o rio e a árvore não escondem, respetivamente, a
cor, o curso da água e o fruto, também o poeta não pode esconder os seus
versos, que constituem a sua essência;
‒ a referência a elementos da natureza evidencia o carácter espontâneo e natural do ato de escrever.
3. Para explicar em que medida o último verso sintetiza o
conteúdo da penúltima estrofe, devem ser abordados os tópicos seguintes, ou
outros igualmente relevantes:
‒ o sujeito poético constata que os elementos da natureza (árvore, flor, água) se renovam/se transformam, mas não
desaparecem nunca;
‒ o sujeito poético sente-se parte da natureza, pois
também ele, depois de morrer, permanecerá através da sua poesia.
4. Na resposta, devem ser referidas duas das
características seguintes, ou outras igualmente relevantes:
‒ irregularidade estrófica, pois o poema é constituído
por sete estrofes com um número variável de versos (um monóstico, um dístico,
dois tercetos, uma quadra, uma quintilha e uma sétima);
‒ irregularidade métrica, dado que os versos apresentam um número variável de sílabas métricas (por exemplo, o primeiro verso
tem 11 e o décimo quarto tem 7 sílabas métricas);
‒ ausência
de rima ao longo do poema, na medida em que todos os versos são brancos.
Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 - 12.º Ano de
Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE–
Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2018, Época Especial
Texto de apoio
O poema
XLVIII permite perceber a distância entre a linguagem poética e o que lhe é
exterior em favor da autonomia da primeira: “Da mais alta janela da minha casa/
Com um lenço branco digo adeus/ Aos meus versos que partem para a humanidade”.
O poema é
uma imagem nítida dos versos, tornados objetos singulares, que, ao partirem
“para a humanidade”, se autonomizam tanto em relação ao poeta como já o eram da
humanidade para onde vão. Perdoe-se o transporte lírico: como se os versos se
despedissem do poeta que ficou no exílio de Platão para dele darem notícias à
república dos homens.
De igual
modo a singularidade dos versos, enquanto objetos autónomos, sai reforçada no
seu carácter não natural, no sentido em que não advêm ou não fazem parte da
natureza. Isso parece ser claro no poema, já que o paralelismo feito com
elementos da natureza é estabelecido unicamente com o sujeito enquanto fazedor
de versos - essa sim, uma atividade natural: “como a flor não pode esconder a
cor/ Nem o rio esconder que corre”. Não se retira daqui que a não naturalidade
implique artificialidade, pelo contrário. Pela individualização dos seus
versos, mais do que o expediente literário utilizado no poema que me tem
ocupado – a prosopopeia, “Com um lenço branco digo adeus/ Aos meus versos” –
atribui Caeiro realidade aos seus versos com atributos intrínsecos, ao mesmo
tempo que tenta retirá-los de uma perspetiva puramente literária ao reenviá-los
“para a humanidade”.
No entanto, a singularidade dos versos é
consequência, acima de tudo, da negação dos universais recorrente em toda a sua
poesia, negação essa que encontramos condensada no poema XLVII: “Vi que não ha
Natureza, / Que Natureza não existe, / Que ha montes valles, planícies (...)
Que um conjunto real e verdadeiro/ É uma doença das nossas idéas” (p.98).
Apesar da contradição entre esta negação e o verso reivindicativo, “Além d’isso
fui o único poeta da Natureza”, isto é, cantor do conjunto “Natureza”, a
negação de essências a um conjunto de seres é persistente. António M. Feijó, no
ensaio “’Alberto Caeiro’ e as últimas palavras de Fernando Pessoa”, articula
vigorosamente a mundividência de Caeiro e a expressão dela: o termo “natureza”,
tradutor da síntese aditiva de particulares, é rejeitado como “marca de
violência interpretativa”; por outro lado, “a prevalência do símile como o
quasi-tropo electivo de Caeiro” é igual recusa de outros tropos, como a
metáfora, que “descolam termos singulares do seu lugar original, e são, por
isso, uma forma de mania interpretativa”. (António M. Feijó, “’Alberto Caeiro’
e as últimas palavras de Fernando Pessoa”, Colóquio Letras, 2000, p. 182)
In: Poetas
e carpinteiros. Uma reflexão sobre a utilidade da poesia a propósito da vontade
de rir de Alberto Caeiro quando leu versos de um poeta místico, José Manuel Nunes da Rocha. Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, 2002
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por José Carreiro.
- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
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