terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Da mais alta janela da minha casa (Alberto Caeiro)

 



Leia o poema XLVIII, de O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro

 

Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade.
E não estou alegre nem triste.

Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

 

Alberto Caeiro, Poesia, edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, 3.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, pp. 85-86.

 

 

Questionário sobre o poema XLVIII, de O Guardador de Rebanhos

1. Explicite a evolução do estado de espírito do sujeito poético, tendo em conta o sentido dos versos 4, 12-13 e 19-20.

2. Relacione a referência a elementos da natureza na segunda estrofe com a conceção de poesia presente neste poema.

3. Explique em que medida o último verso sintetiza o conteúdo da penúltima estrofe.

4. Refira duas características formais da poesia de Alberto Caeiro presentes no poema transcrito. Exemplifique essas características com a referência a elementos textuais.

 

Explicitação de cenários de resposta

1. Para explicitar a evolução do estado de espírito do sujeito poético, devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

(primeiro,) aceitação com naturalidade (nem «alegre nem «triste») da divulgação dos seus versos, pois esse é o «destino» da sua poesia (vv. 4-5);

(de seguida,) sofrimento involuntário («sem querer») ao tomar consciência de que os seus versos deixarão de ser apenas seus, partindo ao encontro dos seus leitores (vv. 11-15);

(finalmente,) resignação perante a inevitabilidade da divulgação dos seus versos (vv. 19-20).

2. Para relacionar a referência a elementos da natureza na segunda estrofe com a conceção de poesia presente no poema, devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

tal como a flor, o rio e a árvore não escondem, respetivamente, a cor, o curso da água e o fruto, também o poeta não pode esconder os seus versos, que constituem a sua essência;

a referência a elementos da natureza evidencia o carácter espontâneo e natural do ato de escrever.

3. Para explicar em que medida o último verso sintetiza o conteúdo da penúltima estrofe, devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

o sujeito poético constata que os elementos da natureza (árvore, flor, água) se renovam/se transformam, mas não desaparecem nunca;

o sujeito poético sente-se parte da natureza, pois também ele, depois de morrer, permanecerá através da sua poesia.

4. Na resposta, devem ser referidas duas das características seguintes, ou outras igualmente relevantes:

irregularidade estrófica, pois o poema é constituído por sete estrofes com um número variável de versos (um monóstico, um dístico, dois tercetos, uma quadra, uma quintilha e uma sétima);

irregularidade métrica, dado que os versos apresentam um número variável de sílabas métricas (por exemplo, o primeiro verso tem 11 e o décimo quarto tem 7 sílabas métricas);

ausência de rima ao longo do poema, na medida em que todos os versos são brancos.

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 - 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2018, Época Especial



 


Texto de apoio

O poema XLVIII permite perceber a distância entre a linguagem poética e o que lhe é exterior em favor da autonomia da primeira: “Da mais alta janela da minha casa/ Com um lenço branco digo adeus/ Aos meus versos que partem para a humanidade”.

O poema é uma imagem nítida dos versos, tornados objetos singulares, que, ao partirem “para a humanidade”, se autonomizam tanto em relação ao poeta como já o eram da humanidade para onde vão. Perdoe-se o transporte lírico: como se os versos se despedissem do poeta que ficou no exílio de Platão para dele darem notícias à república dos homens.

De igual modo a singularidade dos versos, enquanto objetos autónomos, sai reforçada no seu carácter não natural, no sentido em que não advêm ou não fazem parte da natureza. Isso parece ser claro no poema, já que o paralelismo feito com elementos da natureza é estabelecido unicamente com o sujeito enquanto fazedor de versos - essa sim, uma atividade natural: “como a flor não pode esconder a cor/ Nem o rio esconder que corre”. Não se retira daqui que a não naturalidade implique artificialidade, pelo contrário. Pela individualização dos seus versos, mais do que o expediente literário utilizado no poema que me tem ocupado – a prosopopeia, “Com um lenço branco digo adeus/ Aos meus versos” – atribui Caeiro realidade aos seus versos com atributos intrínsecos, ao mesmo tempo que tenta retirá-los de uma perspetiva puramente literária ao reenviá-los “para a humanidade”.

No entanto, a singularidade dos versos é consequência, acima de tudo, da negação dos universais recorrente em toda a sua poesia, negação essa que encontramos condensada no poema XLVII: “Vi que não ha Natureza, / Que Natureza não existe, / Que ha montes valles, planícies (...) Que um conjunto real e verdadeiro/ É uma doença das nossas idéas” (p.98). Apesar da contradição entre esta negação e o verso reivindicativo, “Além d’isso fui o único poeta da Natureza”, isto é, cantor do conjunto “Natureza”, a negação de essências a um conjunto de seres é persistente. António M. Feijó, no ensaio “’Alberto Caeiro’ e as últimas palavras de Fernando Pessoa”, articula vigorosamente a mundividência de Caeiro e a expressão dela: o termo “natureza”, tradutor da síntese aditiva de particulares, é rejeitado como “marca de violência interpretativa”; por outro lado, “a prevalência do símile como o quasi-tropo electivo de Caeiro” é igual recusa de outros tropos, como a metáfora, que “descolam termos singulares do seu lugar original, e são, por isso, uma forma de mania interpretativa”. (António M. Feijó, “’Alberto Caeiro’ e as últimas palavras de Fernando Pessoa”, Colóquio Letras, 2000, p. 182)

 

In: Poetas e carpinteiros. Uma reflexão sobre a utilidade da poesia a propósito da vontade de rir de Alberto Caeiro quando leu versos de um poeta místico, José Manuel Nunes da Rocha. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2002

 

 

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