Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida...
Calaram o piano no terceiro-andar..
Não oiço já passos no segundo-andar.
No rés-do-chão o rádio está em silêncio...
Vai tudo dormir…
Fico sozinho com o universo inteiro.
Não quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anticitadino! –
Antes, recluso,
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
Um automóvel! - demasiado rápido! -
Os duplos passos em conversa falam-me
O som de um portão que se fecha brusco dói-me...
Vai tudo dormir...
Só eu velo, sonolentamente escutando,
Esperando
Qualquer coisa antes que durma...
Qualquer coisa...
Álvaro de
Campos, Poesias, Lisboa, Ática, 1993
Questionário
sobre o poema “Começa a haver
meia-noite, e a haver sossego”.
1. Este poema não apresenta regularidade métrica ou
estrófica. No entanto, obedece a certas regras de composição.
1.1. Identifique
as repetições que lhe marcam o ritmo.
1.2. Mostre
como as sensações auditivas e visuais nele são referidas.
2. Explicite de que modos é sugerida, ao longo
deste poema, a experiência da passagem do tempo.
3. Indique um sentido possível do verso 17:
"Os duplos passos em conversa falam-me".
4. Descreva a imagem que o sujeito poético dá de si
mesmo.
Explicitação de
cenários de resposta
1.1. Essas
repetições são de diferentes tipos:
- repetição simples:
v. 1 - "a haver";
vv. 3-5 -
"andares", "terceiro-andar", "segundo-andar".
- repetição de tipo rima:
vv. 4-5 -
"terceiro-andar", "segundo-andar";
vv. 13, 14 -
"recluso";
vv. 20, 21 -
"escutando", "Esperando" (jogando ainda, neste caso, com as
aliterações nasais de "sonolentamente").
- repetição de tipo refrão:
vv. 7, 19 - "Vai tudo
dormir...".
- repetição anafórica:
vv. 10-12 - "que de
estrelas!" - "Que grandes silêncios maiores há no alto!" -
"Que céu anticitadino!";
vv. 22, 23 - "Qualquer
coisa".
Nota - A não classificação dos tipos de repetição não
deve ser fator de desvalorização.
1.2. Há uma
alternância na representação das sensações auditivas e visuais:
- primeira estrofe - predominam sensações auditivas: "sossego"
- "Calaram o piano" - "Não oiço já passos" - "o rádio
está em silêncio";
- terceira estrofe - predominam sensações visuais: "ir
à janela" - "Se eu olhar" - "estrelas" - "no
alto" - "céu";
- quarta estrofe - predominam sensações auditivas: "Escuto"
- "ruídos da rua" - "Um automóvel" - "duplos passos em
conversa" - "O som de um portão que se fecha";
- sexta estrofe - refere-se a atividade de escutar,
sem se discriminarem sensações auditivas.
2. Essa
experiência pode definir-se, em geral, como a de uma lenta passagem do tempo.
A - Pode notar-se, a este respeito:
- a ideia de um silêncio
que, a pouco e pouco, se instala (primeira estrofe);
- a dispersão e a nitidez
dos "ruídos da rua" (quarta estrofe);
- a repetição de tipo
refrão "Vai tudo dormir", que sugere um abrandamento de ritmo;
- a repetição de
"Qualquer coisa", marcando de modo especial a lentidão com que o
tempo corre e o vazio que lhe está associado (sexta estrofe);
- (...)
B - Pode notar-se que a passagem do tempo é, desde
logo, dada pela perifrástica "Começa a haver meia-noite, e a haver
sossego". O tempo é também marcado pela utilização do:
- presente do indicativo
(às vezes referido a um passado imediatamente anterior "Não oiço
já");
- presente do indicativo
com valor de futuro (perifrástica "Vai tudo dormir");
- gerúndio, assinalando o
aspeto durativo do presente ("escutando, Esperando");
- …
Nota - A apresentação de uma das linhas de orientação
da resposta (A ou B) é considerada suficiente.
3. Exemplos
de interpretações possíveis:
- os passos que o Eu ouve são de duas pessoas que vão
a conversar, ou então são os seus ritmos de passos que parecem "conversar"
entre si;
- o barulho produzido pelos passos é percecionado como
um tipo de linguagem;
- os passos "falam" no sentido em que
sugerem ao Eu solitário que escuta uma presença ou uma companhia humanas;
- os passos que o Eu ouve são a sensação do exterior,
do espaço não confinado, não "recluso";
- …
4. Traços do
autorretrato do Eu:
- as suas sensações começam por ser todas do exterior
e está atento à vida da cidade à sua volta;
- sente-se sozinho perante o universo imenso;
- sente-se recluso, como se estivesse preso na casa;
- os advérbios de modo "ansiosamente" e
"sonolentamente" marcam, de forma contraditória, o estado de
desassossego e de atenção ao exterior;
- o desejo de "alguma coisa" é tanto mais
inquietante e ansioso quanto esse objeto de desejo é impreciso e vago;
- …
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- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
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