segunda-feira, 17 de julho de 2023

Hino Nacional, Carlos Drummond de Andrade


 

HINO NACIONAL


Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
Com água dos rios no meio,
O Brasil está dormindo, coitado
Precisamos colonizar o Brasil.

O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonetes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas...

Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.

Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
os Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas...

Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão
de seus sofrimentos.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

 

Carlos Drummond de Andrade, Brejo das almas, 1934

 

***

 

O Brasil em versos: uma análise do poema “Hino Nacional” de Carlos Drummond de Andrade e a construção da identidade nacional

 

Brejo das Almas, além de título da obra, é também o nome de uma pequena cidade de Minas Gerais. Causa-nos espanto a “epígrafe” do livro, exaltando as potencialidades financeiras dessa cidade, enquanto seu nome remete a algo ruim, tenebroso. É nessa ideia dialética que se baseia a obra: através da ironia, na maioria dos poemas, o poeta revela a ambivalência do mundo e da realidade brasileira.

Quando Drummond publicou Brejo das Almas, em 1934, o país vivia um clima político que tinha pretensão de tornar os brasileiros orgulhosos de sua nação. E é nesse momento que surge o poema que iremos analisar, o “Hino Nacional”. Em meio à efervescência política da época, o poeta mineiro traz à tona o Brasil e sua brasilidade.

No poema, Drummond problematiza uma das inquietudes contemporâneas, a sensível e persistente reivindicação da identidade nacional, um lugar comum nos escritos da intelectualidade brasileira. Nomes como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros. Entretanto, diferente dos ensaios históricos, o eu-lírico irônico do poema parece desenhar a inviabilidade dessa representação simbólica do país. Principalmente se pensando de forma totalizante, como as características dos projetos românticos, e de certa forma dos modernistas.

À primeira leitura, verificamos que o título do poema contém grande valor simbólico, algo solene, heróico, histórico, que nos leva a pensar a identidade nacional, o espírito de nação, no sentido corrente da palavra. Antes mesmo de iniciar a leitura, o leitor mais afoito, pode imaginar, que se trata de mais um texto ressaltando a grandeza de nossa pátria, em seguida, um leitor mais atento, enxerga algo de irônico nas palavras do poeta. De qualquer forma o poema permite no mínimo duas leituras, uma no sentido literal e outro no sentido irônico1.

O poema se compõe de oito estrofes irregulares, onde o jogo semântico é destaque para o desenvolvimento das ideias. O texto é construído por dois tempos verbais: presente do indicativo e futuro. Podemos destacar no primeiro o caso, o verbo “Precisamos” grafado na primeira pessoa do plural, vem sempre acompanhado de um segundo verbo no infinitivo. Vejamos: precisamos descobrir, colonizar, educar, louvar, adorar e esquecer. A forma como os vocábulos são dispostos nos remete ao positivo, presente não só no hino oficial, como na bandeira nacional2.

Em seguida temos os verbos no futuro, também grafados na primeira pessoa do plural: faremos, compraremos, assimilaremos, abriremos, subvencionaremos, cuidaremos. É importante chamar a atenção que todos esses verbos, incluindo o “precisamos”, exprimem ação, movimento, e dão dinâmica aos textos -agindo no presente e no futuro- ao mesmo tempo em que nos remete ao passado. Drummond ainda brinca com verbos no gerúndio, que acaba dando um tom prolongado, acentuando a mansidão presente no texto, e porque não, no país. Um bom exemplo encontra-se já nos primeiros versos: o Brasil está dormindo, coitado.

Na primeira estrofe, quando Drummond diz: Precisamos descobrir o Brasil!/Escondido atrás das florestas, / com a água dos rios no meio, /o Brasil está dormindo, coitado. / Precisamos colonizar o Brasil. Em um primeiro momento, nos três primeiros versos, podemos pensar que ele se refere a um Brasil ainda desconhecido, que até hoje, apesar das depredações, aparenta ser um enigma. No quarto verso, nota-se uma referência ao Hino Nacional oficial, “Deitado eternamente em berço esplêndido”, e nitidamente percebe-se um tom irônico, a palavra “coitado”, uma espécie de “tadinho”, pobrezinho, uma diminuição daquilo, que ao menos teoricamente, deveria ser grandioso. No quinto verso, ele dá início a próxima estrofe, e de certa forma se completa uma fase da história, o Brasil precisa ser descoberto e colonizado. Mas por um acaso, já fomos descobertos e colonizados! Porque precisamos fazer isso novamente? O que há de errado com esse Brasil já descoberto e colonizado? Aqui cabe também a leitura irônica, onde “Não precisamos descobrir e nem precisamos colonizar”, tudo isso já foi feito.

Na segunda estrofe, o autor diz: O que faremos importando francesas/muito louras, de pele macia, /alemãs gordas, russas nostálgicas para/garçonnettes dos restaurantes noturnos. /E virão sírias fidelíssimas. /Não convém desprezar as japonesas. Logo no primeiro verso, vemos novamente a ironia do poeta, como colonizar um país com francesas, alemãs, russas e japonesas? Mas a pergunta do autor é, o que faremos? Se nos remetermos aos textos de Freyre, lembraremos que esse é um país fruto da hibridação. E se levarmos em conta a época do poema, lembraremos que nesse tempo, por motivos históricos, o Brasil recebeu um grande número de estrangeiros, o que nos leva de volta ao quinto verso da primeira estrofe, precisamos colonizar o Brasil, e essa nova “invasão” de estrangeiros pode ser encarada como uma nova colonização. Um novo processo de hibridização.

No entanto, o que há de mais interessante nessa estrofe, é que as mulheres não são mais índias, muito menos portuguesas, mas francesas, alemãs, russas, sírias e até japonesas, marcando um percurso de distanciamento geográfico (da Europa até o extremo oriente). Tal distanciamento sugere o afastamento entre o eu-lírico e a realidade, fazendo com que ele, o gauche, crie ironicamente uma realidade torta, que se aproxima da realidade criada por aqueles que tentam descrever o Brasil sem abandonar o caráter ideológico.

Ainda podemos perceber que as características dadas às mulheres citadas no poema, também têm um grande apelo histórico, além de um distanciamento espacial, temos as características dada a cada povo. As mulheres francesas são retratadas como delicadas, as alemãs gordas, em um país de clima tenso, onde já nessa época acontecia a perseguição aos judeus. Interessante notar que, o autor reserva para as russas uma palavra estrangeira que remete, de certa forma, ao capitalismo, quando ele diz: russas nostálgicas para/garçonnettes dos restaurantes noturnos; podemos encarar essa frase como saudade de uma liberdade que não existe mais, trata-se de um país dominado pela ditadura socialista. Já as mulheres orientais, com diferenças culturais e físicas mais distantes de nossa realidade, além de geograficamente estarem mais distantes, não devem ser esquecidas, as sírias são mais que fiéis – talvez devido a sua religião –, as japonesas, apesar da aparência mais esguia (diferente do padrão nacional) não merecem ser desprezadas, com certeza porque também possuem seus encantos.

Percebemos que a ordem dos países citados: França, Alemanha, Rússia, Síria e Japão - demonstra um passeio pelo mundo, da jovem América, para o berço da humanidade. Notemos ainda que, a miscigenação se faz presente em vários momentos da história nacional. Como se a cada momento o Brasil fosse “re-colonizado”.

Na terceira estrofe, percebe-se a influência do estrangeirismo na construção do saber nacional. Precisamos educar o Brasil. /Compraremos professores e livros, /assimilaremos finas culturas, /abriremos dancings e subvencionaremos as elites. Logo no primeiro verso, temos o verbo educar sustentado por outros verbos como “comprar”, “assimilar”, “abrir” e “subvencionar”. O clima agora é de seriedade irônica. O primeiro e o último verbos, assim como a toda a estrofe, dão um efeito de crítica ao capitalismo que reduz tudo à movimentação financeira. No segundo verso fica claro que temos uma cultura altamente influenciada pelo o que é estrangeiro, não apenas porque fomos colonizados por etnias e culturas diferentes, mas também, e principalmente, porque sempre consideramos o que vem de fora melhor do que o que é criado aqui. Por isso compramos nosso conhecimento, e assimilamos o que for fino, porque somos colônia, e o melhor vem de fora, da metrópole. Por exemplo, no segundo verso, “livros”, que são coisas, são colocados na mesma posição sintática de “professores”, o que os torna também coisas. No último verso, notamos, talvez, o início da influência da cultura norte-americana e sua manutenção cultural as elites brasileiras, principal responsável pela “importação” cultural brasileira.

Durante todo o poema, podemos perceber um tipo de discurso politiqueiro, precisamos disso, precisamos daquilo, mas no quarto parágrafo, essa questão fica um pouco mais clara, o tom irônico do eu-lírico nos revela algumas promessas utópicas: Cada brasileiro terá sua casa/com fogão e aquecedor elétrico, piscina, /salão para conferências científicas. /E cuidaremos do Estado Técnico. Os versos insinuam que todo brasileiro terá o mesmo padrão de vida, focado em um “Estado técnico” algo que nos remete novamente a influência positivista, o valor a ciência e a um estado laico, onde a industrialização e a modernidade estariam presentes. É também o sonho americano em terras tupiniquins. É uma visão do Brasil como o “país do futuro”, assim como no Hino Nacional oficial: “em teu futuro espelha essa grandeza”.

É importante ressaltar que durante toda a construção do poema a frase “Precisamos...”, pode ser encarada em seu sentido literal, como em um sentido irônico ou contrário à afirmação, “Não precisamos...”. Na quinta estrofe, Drummond começa com: “Precisamos louvar o Brasil”, ou seja, no sentido literal, precisamos de apreço e de elogios, enaltecer suas virtudes, agora, se levarmos em consideração o tom irônico do eu-lírico, teremos: “Não precisamos louvar o Brasil”, já estamos fartos de elogios. Nos versos seguintes se diz: Não é só um país sem igual. /Nossas revoluções são bem maiores/do que quaisquer outras; nossos erros também./E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões... /os Amazonas inenarráveis... os incríveis João - Pessoas...

Trata-se de um país diferente, “sem igual”, um colosso, tudo aqui é maior, mais exagerado, mais intenso. Assim como no hino oficial: Gigante pela própria natureza, És belo, és forte, impávido colosso, /E o teu futuro espelha essa grandeza. No terceiro verso ele demonstra isso falando das revoluções, que segundo o texto são maiores, se nos remetermos ao hino nacional teremos os seguintes versos: Paz no futuro e glória no passado. /Mas, se ergues da justiça a clava forte, /Verás que um filho teu não foge à luta, /Nem teme, quem te adora, a própria morte. No entanto, nunca houve uma revolução de facto no Brasil, assim como não houve um povo heróico de brado retumbante, ao menos não de forma literal.

Quando questiona nossas virtudes, o autor recorre às paixões carnais para destacar o que há de bom e de sublime no país. Interessante notar que o poeta ignora, propositalmente ou não, o grotesco, particularidade tão inerente a “identidade nacional”. Na quinta estrofe, as contradições são colocadas lado a lado ainda por via da ironia. Aqui se reconhece o Hino Nacional original através do pronome possessivo “nossos”, seguido de nomes identificáveis ao país. O que antes era “bosques” e “vida”, agora são “revoluções” (que de facto o Brasil nunca teve...), “erros” e “virtudes”, estes últimos colocados lado a lado numa antítese que é prolongada até os últimos versos dessa estrofe: “Amazonas inenarráveis”, com sua imensidão, está no mesmo plano de “João - Pessoas”, cidade e gentes tão pequenas...

No sexto verso ele faz uma referência a um facto histórico que pode ser lido de forma dúbia. “Os incríveis João – Pessoas”, que em um sentido literal pode ser lido como uma referência ao assassinato do político paraibano3 que deu nome à cidade de João Pessoa, ou em um sentido irônico uma alusão ao João Ninguém, que de repente se transforma em um super João Pessoa.

A sexta estrofe é marcada por dois momentos de meditação. No primeiro verso o autor continua dizendo, se considerarmos o sentido literal, que “Precisamos adorar o Brasil”, ou seja, mais que amá-lo temos que adorá-lo, reverenciá-lo. Nos outros cinco versos do poema, Drummond se vale de uma estrutura anafórica para expressar um momento mais meditativo, com a frase “Se bem que”, ele introduz uma modulação lógica.

Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão/no pobre coração já cheio de compromissos... /se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, /por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

Quem são esses homens a que se refere o eu - lírico? Seriam os pensadores, que tentam de todas as formas “encontrar ou construir” uma identidade nacional? Ou então os políticos que tentam criar uma nação enaltecida? Ou ambos, que por motivos diferentes ou não, querem ver o Brasil enquanto nação. Estaria ele falando dos modernistas, de Oswald e do Manifesto Antropófago? Ou estaria Drummond falando dele próprio e de todos nós? A frase deixa esse questionamento, não se fechando com qualquer resposta.

Na última estrofe, chegamos a um momento de dúvida, de ceticismo por parte do autor. Após descobrir, colonizar, educar, louvar e adorar, é chegada à hora de esquecer o Brasil, para isso ele enfatiza repetindo o verbo “precisamos” duas vezes. É um momento de reflexão, o que antes parecia ser uma exaltação, a um canto em louvor da nação, agora mostra-se como algo que devora.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão
os brasileiros?

É nesse ponto que Drummond tece sua mais árdua crítica. Logo no primeiro verso, quando enfatiza que é necessário que esqueçamos o Brasil, o poeta refere-se ao Brasil dos livros, dos sociólogos e de todos outros pesquisadores. O Brasil grande, colossal, de infinita beleza, tão bem retratado em seu hino oficial, assim como em seus livros de histórias. Chega desses carinhos, dessa louvação, adoração, dessa construção romântica (ou romanceada). No quarto verso: O Brasil não nos quer! Está farto de nós! – o Brasil está farto dessa obsessão em construir esse espírito nacional único, fechado, delimitado.

No sexto verso, mais provocação. “Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil”. É nesse ponto que fica clara uma questão recorrente no texto, o Brasil oficial não coincide com o Brasil real, logo ele não existe. É no famigerado último verso, que se reserva a mais polêmica frase. “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”. Segundo Raul Antelo4 “não é que o Brasil não exista. Não existe qualquer identidade como matéria. Toda identidade é um desenho imaginário que produz efeitos simbólicos5”.

Há um Brasil que precede o Estado e, consequentemente, não pode ser reduzido à imagem oficial. É como se o Brasil fosse um signo tão pleno de sentido que não pudesse ser apreendido por uma simples operação hermenêutica. O velho clichê parece prevalecer nessa leitura: tão exuberante quanto sua natureza, o Brasil, o Brasil em si mesmo, o Brasil bem brasileiro das declarações ufanistas, só pode ser sentido com o coração e não interpretado racionalmente, pois, ante a plenitude do objeto, a linguagem parece incapaz de expressá-lo (ROCHA).6

“Nenhum Brasil existe”, porque existem vários brasis, e não apenas um. Sua origem é feita de pluralidade, enquanto o mundo corre atrás para entender a diversidade, o Brasil, há décadas, tenta fazer o caminho contrário, em busca de sua identidade. Talvez, o que muitos ainda não tenham entendido é que, talvez, nossa identidade, seja não ter uma identidade fixa e única, e sim diversa, “multi”. Por isso, de forma geral e genérica, podemos dizer que, o que hoje se vive com a globalização cultural já acontecia aqui, em proporções bem menores é claro, uma vez que nossa colonização se deu com a mistura cultural e étnica. Não falamos um único português, falamos sim variações do português.

No fim do poema, o tom de ironia começa a se dissolver, dando lugar ao lirismo pessoal do eu - lírico. Após uma série de sucessivas “brincadeiras” acerca do cenário brasileiro, ele começa a divagar sobre a realidade que percebe com seu olhar gauche.

Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos...
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

A introdução da subjetividade é garantida pelo subjuntivo do verbo “ser” (seja). A exclamação, abandonada desde o primeiro verso, retorna para contrastar com o tom de seriedade e subjetividade que essa estrofe contém. Os versos são maiores, mais densos, gerando uma tensão que explodirá na última estrofe:

[...] Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

Nesse momento já não predomina a ironia; o poeta adquire um tom sério e tenso. É o momento do questionamento de todas as divagações feitas a respeito do que é o Brasil e como são os brasileiros, ao longo de toda a sua História. O que antes era apenas “o” Brasil, agora aparece também como “nosso” Brasil, “este” Brasil, e, por fim, “nenhum” Brasil. O nome do país adquire novos sentidos; não se trata de um Brasil físico, pois se assim o fosse, chegaríamos à conclusão de que o poeta estava delirando (no sentido literal do termo) ao compor o poema. Trata-se das ideologias formuladas acerca deste país, do Brasil dos livros e dos ideólogos, que fundiu um “hiato” de si com a realidade, como relatou Marlise Meyer (2001).

Luiz Costa Lima (1968) revelou a existência de um “princípio-corrosão” na poesia de Drummond: “Corrosão, como a empregamos, não se confunde com derrotismo ou absenteísmo. Ao contrário, no contexto drummondiano ela aparece como a maneira de assumir a História, de se pôr com ela em relação aberta” (p. 136).

Assim, ao analisar “Hino Nacional”, ele afirma que a corrosão atua na medida em que o tom de blague das primeiras estrofes se finda com a seriedade das últimas. Isso nos faz pensar que a blague não basta para explicar a realidade; mas também não quer dizer que ela seja totalmente ineficiente. Corrosão, como explicou Costa Lima, não é simples destruição, mas sim reinvenção. O eu-lírico ironiza o próprio discurso patriótico modernista, que, em alguns momentos, atribui rótulos deficientes ao caráter do brasileiro.

A ironia abarca em si as antíteses e ambivalências presentes em todo o poema, pois ela também é um instrumento ambivalente. Sant’anna argumenta que

Por sua origem, a ironia é um instrumento de defesa e funciona como elemento reparador nas relações entre o indivíduo e o grupo social. Possui natureza dupla: sendo sinal de desajustamento do indivíduo em relação ao grupo de pessoas (ou pessoa), é também elemento de comunicação entre eles, funcionando como “correction”. [...] O humor é a válvula de escape de tensões numa relação (1972, p. 61).

Partindo desse ponto, chegamos à conclusão de que a linha irônica que se traça no decorrer do poema, divide-o em várias perspectivas, alimentando as oposições, as contradições, as antíteses. Por outro lado, o humor, sendo uma “válvula de escape”, permite obter, através da palavra, uma transformação que se realize de alguma forma na realidade.

O desfecho do poema é dado com uma interrogação que pode ser transcrita de outras formas: o que é ser brasileiro? O que é o Brasil? Tais questões são sugeridas não para serem respondidas, o que resultaria em sua eliminação. Ao contrário, o poema propõe que elas estejam sempre presentes em qualquer tentativa de caracterização da identidade nacional, tentativas que não se devem cessar, já que são elas que alimentam a vida cultural de um povo.

 

Notas:

1 Falaremos disso mais adiante.

2 “Gigante pela própria natureza, é belo, és forte impávido colosso...”; “Ordem e Progresso”.

3 Os defensores de João Pessoa alegam que ele foi um combatente das oligarquias locais e se contrapunha aos interesses de grupos tradicionais, embora ele mesmo proviesse de família de oligarcas. Seu assassinato foi considerado o estopim da Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Pessoa_Cavalcanti_de_Albuquerque/>. Acesso em: 06/07/08.

4 Professor da UFSC.

5 Diz Raul, em um de seus ensaios escritos para o jornal O Estado de São Paulo .

6 Autor do prefácio do livro Nenhum Brasil Existe.

 

Referências:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Brejo das almas. Rio de Janeiro: Record, 2001.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1995.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: EdUSP, 1994.

DAMATTA, Roberto. O que faz do Brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2001.

GOMES, Ângela Maria de Castro. Confronto e compromisso no processo de constitucionalização (1930-1935). In: O Brasil republicano. Vol. 3. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, p. 7-72.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 2001.

LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo: Ed. Unesp,

2002.

LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

MEYER, Marlise. Um eterno retorno: as descobertas do Brasil. In: Caminhos do imaginário no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 19-46.

ROCHA, João Cezar de Castro. Nenhum Brasil existe. Ed. Topbooks, 2001.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O gauche no tempo. Rio de Janeiro: Lia, INL, 1972.

 

Juliana Nascimento, Revista FACEVV | Vila Velha | Número 5 | Jul./Dez. 2010 | p. 68-75

 

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Outra análise do poema “Hino Nacional”, de Carlos Drummond de Andrade

 

No poema “Hino Nacional” (OC, 2002, p. 51-52), extraído de Brejo das almas (1934), o poeta traz à tona o Brasil e sua brasilidade de forma crítico-reflexiva, irônica e bem-humorada.

O título do poema é uma alusão ao Hino Nacional brasileiro, um dos quatro símbolos da República Federativa do Brasil, cuja letra é de Joaquim Osório Duque Estrada (1870- 1927) e música de Francisco Manuel da Silva (1795- 1865). Seu caráter laudatório difere do poema em análise de tom crítico, reflexivo e contestatório. Antonio Cândido declara que a Literatura Brasileira assume um compromisso com a construção de uma nação: “[...] A literatura do Brasil, como a dos outros países latino-americanos, é marcada por este compromisso com a vida nacional no seu conjunto, circunstância que inexiste nas literaturas dos países de velha cultura” (1975, p. 18). Além da tonalidade do humor e da ironia, a poesia drummondiana apresenta um olhar arguto, perspicaz e comprometido com seu tempo em que “As leis não bastam”, por isso são necessárias palavras “roucas e duras, / irritadas, enérgicas” (OC, 2002, p. 125-130).

O poema “Hino Nacional”, composto de oito estrofes irregulares, é construído a partir de dois tempos verbais: presente do indicativo seguido de um verbo no infinitivo – “Precisamos descobrir”, “Precisamos colonizar”, “Precisamos educar”, “Precisamos louvar”, “Precisamos adorar” e Precisamos, precisamos esquecer”; futuro – “O que faremos importando francesas”, “Compraremos professores e livros”, “E cuidaremos do Estado Técnico”. Os verbos estão na primeira pessoa do plural, conferindo a ideia de que todos nós, poeta e leitores, reflitamos sobre Brasil e nosso papel em sua construção. O poeta brinca, ainda, com os verbos no gerúndio - “O Brasil está dormindo, coitado” - para conferir ao texto um tom de prolongamento e de mansidão. O país precisa ser conhecido e potencializado. Não pode e não deve permanecer “Deitado eternamente em berço esplêndido”.

Na segunda estrofe, o eu lírico questiona o que faremos importando francesas louras, alemãs gordas, russas nostálgicas, sírias fidelíssimas e as japonesas. O período da escritura de Brejo das almas (1934) é também o período mais intenso da imigração em solo brasileiro. Além disso, somos frutos de um processo de hibridação. A chegada de mais estrangeiros, leva-nos a pensar em um novo processo de colonização. Notar que as mulheres que chegam não são índias, tampouco portuguesas, marcando um distanciamento geográfico entre Europa e Oriente. Esse distanciamento é o mesmo vivenciado pelo eu lírico gauche e a realidade no qual ele está inserido.

Na estrofe seguinte, “Precisamos educar o Brasil”, o verbo educar vem acompanhado de outros, como comprar, assimilar, abrir e subvencionar. “Professores e livros” serão comprados. Na era da industrialização, pessoas são reduzidas à movimentação financeira. No quarto verso “assimilaremos finas culturas, / abriremos dancings e subvencionaremos as elites” a cultura-americana e as elites brasileiras são criticadas. Essa mesma análise já havia sido realizada pelos modernistas paulistas, sobretudo por Oswald de Andrade (1890-1954) em seu “Manifesto Antropofágico” publicado na Revista Antropofagia (1928-1929). Enquanto Drummond faz uma crítica à cultura estrangeira e às elites que a solidificam, Oswald apresenta uma proposta mais radical: devorar a cultura estrangeira e criar uma cultura nacional. Seria uma inversão de papéis: evoluiríamos da condição de devorado para devorador. O passado cultural seria engolido, um (novo) presente, construído. Atente-se, ainda, ao facto de que, ao longo do poema, o poeta diz do que precisamos e do que não precisamos.

Na quarta estrofe, em tom político, explicita-se uma (quase) promessa: “Cada brasileiro terá sua casa / com fogão e aquecedor elétricos, piscina, [...]”. Até os dias de hoje, é insinuado pelos governantes que cada brasileiro terá o mesmo padrão de vida, dentro de um estado laico, moderno e industrializado. O verso “E cuidaremos do Estado Técnico” remete-nos à influência científica e positivista que dominou o século XIX.

Somos uma “terra de sublimes paixões [...]”. Nesse instante, outra alusão é feita ao Hino Nacional “Nossos bosques têm mais vida / Nossa vida no teu seio mais amores”. Se palavra puxa palavra, diríamos que música/poema puxa poema, porque nos faz lembrar de “Canção do Exílio”*, do poeta Gonçalves Dias (1823-1864) “Nosso céu temais estrelas, / Nossas várzeas têm mais flores, / Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida mais amores”. O Hino Nacional traz em seu bojo os elogios que faltam ao poema drummondiano: “Gigante pela própria natureza / És belo, és forte, impávido colosso / E o teu futuro espelha essa grandeza” [...]. Somos uma nação apaixonada pelo samba e pelo futebol.

 

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* “Canção do Exílio” foi um poema escrito em 1843 e integra a obra lírica Primeiros Cantos (1843), composta pelo poeta romântico Gonçalves Dias; produzida em um momento de intenso nacionalismo, devido à recente separação entre a colônia brasileira e a metrópole portuguesa. A ordem é exaltar os valores naturais do Brasil. Quando o texto foi escrito, Dias cursava Faculdade de Direito em Coimbra. Vivia um exílio geográfico. Além de fazer alusão ao Hino Nacional, o poema alude à Canção Militar do Expedicionário (no trecho) “Por mais terras que eu percorra, não permita Deus que eu morra; Sem que volte para lá”.

 

Carlos Drummond de Andrade: O poeta na condição de leitor, Luciana Silva. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Letras, 2021.

 

domingo, 16 de julho de 2023

Lembrança do mundo antigo, Carlos Drummond de Andrade


 

LEMBRANÇA DO MUNDO ANTIGO

Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de Clara.
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!

 

Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo, 1940

 

À primeira vista o leitor depara-se com figurações idílicas, aparentemente bucólicas. Mas o poema em análise, ainda que evoque, numa leitura apressada, o mundo ingênuo, configura o olhar de um homem em face à realidade dissoluta e caótica, marcada pela instabilidade da 2.ª Guerra Mundial. O Brasil vivia tempos da ditadura de Vargas; inaugurava-se um dos períodos mais autoritários da vida política nacional, o Estado Novo; os bens de consumo estavam escassos e caros; a morte e a destruição rondavam o homem – a esperança era uma palavra rara.

No poema, o jardim-mundo do presente revela a tensão do sujeito com a paisagem a seu entorno. Os versos rumam a uma derrisão interior, sem que isso atinja, em nenhum instante, o domínio sobre a palavra ou comprometa sua sensibilidade intelectual. Nitidamente, o poeta refreia a emoção; seus versos funcionam como um embate lúdico para vigiar a emotividade que o acomete, e que desnorteia uma conclusão apressada, tal como se vê na imagem da menina que pisa a grama para pegar o pássaro.

Assim sendo, esse poema deixa entrever um (outro) campo de encontro, prefigurado no espaço perdido e no espaço que não há. Os versos operam no sentido de instaurar, por entre o jardim, aquela outra ordem em que seja possível perscrutar um deserto às avessas. Refiro-me a uma ordem poética capaz de deixar a linguagem encontrar, depois da depuração a que foi submetida, a abertura necessária, por meio da qual seja possível nomear o conflito da experiência. O poema deixa figurar o correlato objetivo e sensível da nomeação poética, por meio de elementos que, sendo tudo no jardim imaginado, resvalam no nada e na carência do jardim presente, roubando-lhe até mesmo as manhãs.

O leitor encontra, no jardim do presente, as imagens do jardim do passado do eu lírico, percebendo como sua memória seleciona imagens de um tempo de paz e liberdade, para contrastá-las com as imagens do tempo de guerra e ditadura, do momento. Observamos, progressivamente, que o sentimento de desajuste do eu-lírico no mundo não encontra, nem mesmo no espaço do jardim – que poderia figurar como locus amoenus – imagem de conforto e alívio.

 

“Nos jardins: reflexões sobre a poética de Carlos Drummond de Andrade”, Ivana Rebello. Revista Araticum (Programa de Pós-graduação em Letras/Estudos Literários da Unimontes) v.16, n.2, 2017. ISSN: 2179-6793. Disponível em: https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/araticum/article/view/759/751

 

***

 

Sugestão de exercício do domínio da educação literária sobre a leitura do poema “Lembrança do mundo antigo” disponível em: https://armazemdetexto.blogspot.com/2018/11/poema-lembrancas-do-mundo-antigo-carlos.html

sábado, 15 de julho de 2023

Mundo grande, Carlos Drummond de Andrade

 


MUNDO GRANDE

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo. O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...

Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.

Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
–– Ó vida futura! nós te criaremos.

 

ANDRADE, Carlos Drummond de. In: Obra completa. Organizada por Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964. p. 116-7.

 


1. Considerando a obra de onde se extraiu o poema “Mundo grande” e a temática nela trabalhada, pode afirmar-se que o sujeito poético, no texto, evidencia

A) a tomada de consciência de quanto ele se distanciou do seu semelhante, ao isolar-se numa atitude investigativa do próprio eu.

B) o comprometimento com uma arte de função eminentemente estética.

C) a autocrítica a uma postura anterior de isolamento em relação ao mundo coletivo.

D) a atitude de egoísmo e de abstração da realidade contemporânea, ao manifestar desejo de ilhar-se, seguindo as ideias e os costumes de uma geração desiludida.

E) a perceção de quehomens isentos da relação solidária com os seus semelhantes.

F) o crescimento humano, ao assumir um compromisso com uma arte de engajamento político-social.

G) a consciência do impasse em que se encontra a sociedade do seu tempo e da sua impotência para imprimir mudanças no processo histórico.

(Fonte: UFBA, 2004 – 1.ª fase – Português. Disponível em http://www.procampus.com.br/vestibular/ufba/provas/2004/1etapa/caderno1et1_04.pdf. Consultado em 10-09-2007)

 

2. Considere, agora, o seguinte poema de Tomás Antônio Gonzaga:

LIRA II (2.ª parte)

Esprema a vil calúnia muito embora
Enter as mãos denegridas, e insolentes,
Os venenos das plantas,
E das bravas serpentes.

Chovam raios e raios, no meu rosto
Não hás de ver, Marília, o medo escrito:
O medo perturbador,
Que infunde o vil delito.

Podem muito, conheço, podem muito,
As fúrias infernais, que Pluto move;
Mas pode mais que todas
Um dedo só de Jove.

Este Deus converteu em flor mimosa,
A quem seu nome dera, a Narciso;
Fez de muitos os Astros,
Qu'inda no Céu diviso.

Ele pode livrar-me das injúrias
Do néscio, do atrevido ingrato povo;
Em nova flor mudar-me,
Mudar-me em Astro novo.

Porém se os justos Céus, por fins ocultos,
Em tão tirano mal me não socorrem;
Verás então, que os sábios,
Bem como vivem, morrem.

Eu tenho um coração maior que o mundo!
Tu, formosa Marília, bem o sabes:
Um coração..., e basta,
Onde tu mesma cabes.

 

Tomás Antônio Gonzaga. Marília de Dirceu, 1792.

 

2.1. Assinale a afirmação correta sobre os dois textos:

A) Por pertencer à fase heroica ou iconoclasta do Modernismo, Carlos Drummond de Andrade parodia o lirismo sentimental do árcade Tomás Antônio Gonzaga.

B) Enquanto o poeta do Arcadismo, Gonzaga, expressa seu sentimento pela musa Marília, o modernista Drummond reporta- -se, nesse trecho, às divergências ideológicas.

C) Gonzaga, como muitos árcades, é alheio ao que está a seu redor, já Drummond expressa um sentimento de revolta ante um mundo que não compreende as dores do poeta.

D) Em Gonzaga, o coração do poeta alcança a plenitude com a presença da amada. Em Drummond, o coração é insuficiente para abarcar as próprias dúvidas existenciais.

E) Tomás A. Gonzaga usa a imagem do “mundo” para instigar a musa Marília a aceitá-lo; Drummond retoma o procedimento do poeta árcade, ressaltando o sofrimento por causa da amada.

(Correção: alínea D. Fonte: ESPM, 2019/1. Disponível em https://www.aio.com.br/questions/content/considere-os-textos-que-seguem-eu-tenho-um-coracao-maior-que-o-mundo-tu - consultado em 2023-07-14)

 

2.2. Observe que Carlos Drummond de Andrade recupera a última estrofe de Tomás Antônio Gonzaga no seu poema. Considerando a relação intertextual entre ambos os poemas, explique, sem transcrever qualquer excerto do poema, por que Gonzaga julga o seu coração “maior do que o mundo”.

(Proposta de resposta: No poema de Gonzaga, o sujeito poético julga o seu coração “maior do que o mundo” porque o sentimento amoroso idealizado na figura de Marília vai além das injustiças do mundo. Há a supervalorização do amor e do protagonismo feminino. Já no poema de Drummond, o sujeito poético reconhece as suas próprias limitações diante dos problemas da vida. Para se vencer os obstáculos, uma visão coletiva e não individualista deve prevalecer.)

 

2.3. Ambos os poemas trazem uma segunda pessoa, “tu”, para quem cada sujeito poético confessa as suas angústias. No caso de Carlos Drummond de Andrade, estas angústias também se revelam quanto ao próprio processo da escrita. Transcreva do poema “Mundo grande” apenas um verso em que se faz claramente essa referência metalinguística, explicando, com suas palavras, de acordo com o contexto apresentado, o motivo da angústia.

(Proposta de resposta: Cita um dos seguintes versos com clara referência metalinguística: “Por isso gosto tanto de me contar” / “Por isso me dispo” / “por isso me grito” / “por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias”

Na segunda parte da questão, deve mencionar que o sujeito poético tem consciência das mazelas e dores do mundo, e que a sua angústia vem do sentimento de incapacidade perante os sofrimentos e injustiças dos homens, que ele considera maiores do que o seu coração.)

 

2.3. A partir da comparação entre os dois poemas, e considerando que o coração é metáfora para o sentimento amoroso, identifique qual o objeto de amor do poeta, tanto no poema “Lira I”, de Tomás Antonio Gonzaga, como no poema “Mundo grande”, de Carlos Drummond de Andrade.

(Proposta de resposta: O objeto de amor do poema de Tomás Antônio Gonzaga é Marília, a mulher que o sujeito poético ama. Já no poema de Carlos Drummond de Andrade, o objeto de amor é todo o mundo e as suas dores, que o seu coração, pequeno, não suporta.)

(Fonte: adaptado de UFJF– Módulo III DO PISM – Triénio 2012-2014 – Prova Literaturas. Disponível em https://www2.ufjf.br/copese/files/2010/04/LITERATURA.pdf - consultado em 2023-07-14)

 



sexta-feira, 14 de julho de 2023

O amor bate na aorta, Carlos Drummond de Andrade


Produções Fictícias, 2005

 

O AMOR BATE NA AORTA

 

Cantiga do amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito!

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...

 

Carlos Drummond de Andrade


 

 

Análise do poema “O amor bate na aorta”

O texto estrutura-se na dicotomia corpo vs. alma / concreto vs. abstrato, partindo de associações sonoras e de sentido:

associação sonora

porta/aorta/horta

associação de sentido

aorta/constipei/cardíaco

 

boca murcha/velho

 

corpos/almas/beijos/mãos

 

As associações de sentido criam imagens contraditórias:

uvas verdes

desejos maduros

ácidos

Adoçam

dentes

não mordem

braços

não prendem

 

O poema é construído do plano denotativo para o conotativo e o amor personificado vai ganhando novas dimensões, com base em um processo polissémico:

o amor bate na porta
o amor bate na aorta
o amor ronca na horta
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
o amor propõe uma geometria

e finalmente aparece o amor irritado, desapontado.

Como vimos, a metáfora pode ser definida como uma transferência de significado que tem como base uma analogia. Em “Amor é bicho instruído”, o campo de abrangência do vocábulo amor é ampliado e toda a sequência vai mostrar essa característica: amor = bicho instruído pulou o muro/subiu na árvore/se estrepou.

Na última estrofe do poema, os versos seguem esse processo de ampliação, através da repetição do verbo vejo, da presença de nome e verbo com o mesmo radical - beijos que se beijam - e de uma certa quebra ou desvio semântico - ouço mãos que se conversam / e que viajam sem mapa - em que as imagens sinestésicas mostram bem a abrangência a que nos referimos: ouço/mãos/conversam/viajam.

vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.

Outro ponto que nos chama a atenção no texto é o emprego dos tempos verbais. O modo é o indicativo, o modo da realidade. Um rápido levantamento mostra-nos o predomínio de verbos no presente, empregado no sentido atemporal, como forma de generalização. As poucas ocorrências de verbos no passado, no pretérito perfeito, portanto no aspecto concluso, apontam para as ações que se desenvolvem no texto: pulou/subiu/estrepou. Assim, podemos perceber no poema um lado descritivo, plástico, de quadro à nossa frente, e um outro lado, o narrativo, na penúltima estrofe. 

Disponível em: http://acd.ufrj.br/~pead/tema11/metafora.html (consultado em: 10-09-2007)

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Confidência do itabirano, Carlos Drummond de Andrade


 

CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO

 

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...


Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

 

Carlos Drummond de Andrade, O Sentimento do Mundo, 1940

 

Questionário sobre o poema “Confidência do itabirano”:

1. O sujeito poético autocaracteriza-se.

1.1 Identifique os seus traços caracterizadores.

1.2 Como os justifica?

2 «Tive ouro, tive gado, tive fazendas» (v. 15)

2.1 Refira as figuras de estilo presentes na expressão e explique o seu valor expressivo.

3. Que sentimentos dominam o «eu» no tempo presente?

4. Você está de acordo com o título? Porquê?

5. Mostre que, no poema, o passado alterna com o presente.

5.1. Justifique essa alternância.

6. Explicite a razão pela qual a palavra Itabira se repete ao longo do texto, sendo também substituída pelo adjetivo gentílico «itabirana».

6.1 Identifique as formas verbais da 1.ª pessoa que se repetem.

6.1.1 Justifique a repetição.

 

 

Chave de correção:

1.1 Triste, orgulhoso, duro, solitário, carente de afecto, sofredor, sentimentalista, crente, tímido, saudoso da sua terra natal e de tudo o que possuiu.

1.2. Como «produto» das características da terra onde nasceu e viveu alguns anos.

2.1. É a repetição anafórica e enumeração. Consiste na reiteração da ideia de posse. Esta reiteração intensifica a valorização da perda que se reflecte no presente.

3. Nostalgia de um passado de que resta «uma fotografia na parede».

4. Sim. Porque o texto é autobiográfico, é um registo da identificação do «eu» poético com o espaço onde nasceu.

5. Passado (Pretérito Perfeito): vivi (v. 1); «nasci» (v. 2); «trouxe» (v. 11); «tive» (v. 15).

Presente (Presente do Indicativo): «é» (v. 6); «paralisa” (v. 7); «vem» (v. 8); «diverte» (v. 9); «é» (v. 10); «sou» (v. 16); «é» (v. 17); «dói» (v. 18).

5.1. Essa alternância deve-se ao facto de o sujeito poético no presente estar a recordar o seu passado.

6. Esta repetição, além de assegurar a coesão lexical, intensifica a importância que a sua terra de origem tem para ele.

6.1. As formas verbais que se repetem são: «sou» e «tive».

6.1.1. «sou»: identificação pessoal. «tive»: posse de bens materiais.

(Página Seguinte – Português 10.º Ano, Filomena Martins e Graça Moura. Lisboa, Texto Editora, 2007, p. 232)

 

Sugestão bibliográfica:

Confidência do Itabirano: uma leitura do país”, Alexandre Simões Pilati. In: Colóquio Marx e Engels, Campinas, 2005.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Jovens à porta do Chiado, Gastão Cruz

Moby&The Void Pacific Choir – Are You Lost In The World Like Me

 

JOVENS À PORTA DO CHIADO

Veem-se ao telemóvel como ao espelho
nos nomes e nos números buscando
o lodo morno dum profundo poço

O seu mundo está preso àquele fio
de presente irreal que não explica
o facto de ser a pele a pele ainda

Tudo fica no raio do olhar
brevemente fictício a vida reduzindo
ao enredo menor das chamas perdidas

das mensagens que vindas ou não vindas
fazem tremer do dia o edifício
Disso vivem fingindo que se veem

a si somente enquanto o mundo escorre
com a rapidez do dia para o poço

 

Gastão Cruz, Escarpas, Assírio & Alvim, 2010

 

Muitos livros de Gastão Cruz (1941-2022) têm como título uma só palavra, ou, quando não, duas palavras (o artigo e o nome). Hematoma (1961), Escassez (1967), Campânula (1978), O Pianista (1984), Crateras (2000), Fogo (2013), Óxido (2015), Existência (2017). A palavra nuclear que, do título aos poemas de um livro, faça irradiar a mensagem, essa uma das linhas da obra deste enorme poeta. Em 2010, Escarpas convidava-nos a lermos o tempo e o seu sentido ou a ausência de sentido no tempo. Nas suas cinco secções, na melodia dos ritmos e no trabalho rigoroso da frase, escrevendo-se sobre pianistas (Emil Gilels, Richter, Horowitz), pintura (Holbein), cinema (W. Allen), sobre o amor e o desencontro, o corpo e o desencanto, é da vida que a poesia sempre fala. Gastão Cruz, como nenhum outro poeta, leu a nossa época e, atualíssimo, sintetizou em versos impressionantes: "A perda real é a perda do sentido/Só se perde o sentido do que não/ foi nunca real senão quando perdido." Em tempo de preparação do verão, que se leia este poeta.

António Carlos Cortez, sinopse do livro Escarpas. In: Diário de Notícias, 02-07-2023. Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/appetite-for-destruction-a-geracao-mais-bem-preparada-de-sempre-2-parte-16623307.html

 

Linhas de leitura

“Jovens à porta do Chiado”, de Gastão Cruz, é um poema que retrata a alienação dos jovens com o mundo digital.

  • Os jovens estão constantemente conectados ao telemóvel, vendo-se refletidos nele como se estivessem diante de um espelho.
  • Eles estão imersos num ambiente superficial, representado pelo "lodo morno dum profundo poço".
  • O seu mundo é limitado e dependente dessa conexão virtual, que não explica a verdadeira experiência da interação física.
  • Tudo o que lhes importa é o que está ao alcance dos seus olhos, reduzindo a vida a uma realidade momentaneamente fictícia, limitando-a ao enredo trivial das chamas perdidas.
  • Esses jovens dependem das mensagens, mesmo que não cheguem, para manterem a ilusão de estarem a viver.
  • Eles fingem que se veem e se conhecem, mas a verdade é que estão isolados na sua própria superficialidade, enquanto o mundo ao seu redor escorre rapidamente, como o tempo que passa, para o poço da insignificância.

 

Poderá também gostar de:

Opinião

Appetite for destruction: a "geração mais bem preparada de sempre" (2.ª parte)

Veem-se ao telemóvel como ao espelho
nos nomes e nos números buscando
o lodo morno dum profundo poço
Gastão Cruz, Escarpas, Assírio & Alvim, 2010, p. 39

 

Acrescento mais alguns argumentos ao artigo de 8 de junho aqui publicado. As críticas que tenho feito ao digital na escola e na universidade têm tido algum eco junto de professores e outros agentes educativos. Mas não era previsível a alienação, a ignorância, a incuriosidade dos "nativos digitais" quanto aos mais diversos saberes, uma vez imersos no mundo digital? Todos vemos que nada leem e pouco sabem, porque se tudo o que importa está "à distância de um clique", tudo o que exija esforço lhes é odioso. Jamais o "como" e o "para quê" das aprendizagens é questionado pelos estudantes. Decorar sem saber, dizer umas quantas coisas politicamente corretas, isso basta para garantir classificações acima do 16. Os professores, salvo raríssimas exceções, estão reféns desta lógica alienante. Todavia, ouve-se dizer que "esta é a geração mais bem preparada de sempre". Uma mentira soez. Propaganda pura. Estamos confrontados com um problema que Heidegger enunciou há décadas: a ausência de linguagem. "Débito e crédito", eis a novilíngua. O poeta António Ramos Rosa, nos anos 60, denunciava no Poema dum funcionário cansado o terror de vivermos num quotidiano que esmaga a imaginação e a curiosidade, tudo vendo sob a ótica do lucro imediato.

Os exames nacionais provam as consequências desta lógica alienante. A geração mais bem preparada de sempre é filha deste sistema, errado, assassino e corruptor. Os exames de Português e de Matemática relacionam-se, claro, porque revelam: 1.º não há como avaliar a expressão escrita e a análise do texto literário de forma séria e rigorosa, porquanto isso equivaleria a formular questões de natureza hermenêutica a que nenhum aluno sabe hoje responder com propriedade. Nas aulas de Português quase nunca leem ensaio e crítica, impera ainda o impressionismo como "método" de compreensão de um texto literário. Daí os verdadeiro-falso e as cruzinhas e a escolha múltipla, isto numa disciplina que já foi a base do ler e do escrever; 2.º as dificuldades do exame de Matemática devem-se à incompreensão dos enunciados. Linguagem, uma vez mais. É que "a geração mais bem preparada de sempre" à saída do 12.º ano pouco sabe ou mesmo nada. Redige uns quantos lugares-comuns sobre as obras do currículo, que não leu. Em Matemática, se não sabem o sentido dos verbos ou se se crê que armadilhar um exame é ser exigente, como não terão dificuldades? Que educação é esta?

A Suécia proibiu o uso de tablets e de quaisquer suportes multimediáticos na escola, investindo 60 milhões de euros em livros e manuais; nós por cá insistimos nos tablets e demais parafernália tecnológica. Somos um país progressista, pois claro. Somos modernos, pois então! Manuel Cruz, filósofo espanhol, escreveu em 2016, em Ser Sin Tiempo (ed. Herder, Barcelona), que a nossa época, desmaterializada, se caracteriza pela instantaneidade, pelo impensado. Tudo - das escolas às empresas, dos programas de televisão aos programas políticos - obedece à lógica do "não há tempo a perder, porque não há tempo". A geração "mais bem preparada de sempre" nunca será filha de Voltaire: "Na educação, a questão não é ganhar tempo, mas perdê-lo." Do TikTok às redes sociais, dos ecrãs à infantilização das aprendizagens, os nossos estudantes são desmemoriados e insensíveis. Viverão "cantando e rindo", olhando-se nos telemóveis como num espelho. No "profundo poço" de uma existência morna, serão incapazes de lidar com o "não", porque tudo foi "sim" nas suas vidas. Mais violentos e inconscientes, o pragmatismo destes "nativos digitais" é sinónimo de individualismo - o totalitarismo egóico. É o Portugal futuro? É o Portugal presente.

Gastão Cruz, pela mão da poesia, viu-os às portas do Chiado. A geração mais bem preparada de sempre não lerá poesia. Lerá simulacros. A sua música é a da pornografia. A imaginação, a beleza, o estranho da arte e das disciplinas que exigem escrita e leitura confronta-os com o que ignoram. Não gostam. Na escola da felicidade - onde todos são educados para serem "todos iguais" e geniais - o apetite pela destruição é a única linguagem com que dizem um mundo escarpado.

António Carlos Cortez, Diário de Notícias, 02-07-2023. Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/appetite-for-destruction-a-geracao-mais-bem-preparada-de-sempre-2-parte-16623307.html




 ARE YOU LOST IN THE WORLD LIKE ME


Look harder, say it’s done
Black days and a dying sun
Dream a dream of god lit air
Just for a minute you’ll find me there
Look harder and you’ll find
The 40 ways it leaves us blind
I need a better place
To burn beside the lights

Come on and let me try

Are you lost in the world like me?
If the systems have failed?
Are you free?
All the things, all the loss
Can you see?
Are you lost in the world like me?
Like me?

Burn a courtyard, say it’s done
Throwing knives at a dying sun
A source of love in the god lit air
Just for a minute, you’ll find me there

Look harder and you’ll find
The 40 ways it leaves us blind
I need a better way
To burn beside the lights

Come on and let me try

Are you lost in the world like me?
If the systems have failed?
Are you free?
All the things, all the loss
Can you see?
Are you lost in the world like me?
Like me? [x2]

 

Moby & The Void Pacific Choir