IDÍLIO
Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;
Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:
Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalideces
O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.
Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;
Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:
Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalideces
O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.
Antero de
Quental
Notas de leitura:
v.
1 e segs. António Sérgio (Antero de Quental, Sonetos, Lisboa [1967],
pág. 40) considera este soneto uma maravilha de musicalidade expressiva, que
analisa primorosamente. Faz notar o ritmo vivo, matinal, fresquíssimo das
duas quadras, com a sua estrídula rapidez de ascenso e suas duas
rimas em a e i - violinos, flautas; as três sílabas
em on (cf. v. 8); a amplitude que
se quebra a súbitas com um verso isolado (v. 9);
o movimento afrouxa, ensurdece em uu, é soturno e fundo (v. 10); toda a orquestração vai descer aos
baixos (com nasais e com uu), lembrando não sei quê de violoncelo e de fagote
(vs. 12-14).
vv.
1-4. Repare-se nas representações de movimentos.
vv.
6-8. Na contemplação do céu, do horizonte, encontra expressão libertadora a imaginação
visionária do poeta.
vv.
9-11. O amor revela-se pelos movimentos íntimos, indizíveis.
vv.
12-14. O amor abrange a natureza, santifica a paisagem, permite a identificação
com o mistério que envolve o Homem. - Recorde-se o comentário de Ruy Galvão de
Carvalho (Três Ensaios sobre Antero de Quental, Coimbra, 1934, pág. 29):
«O mar e o vento são os dois elementos que melhor exprimem toda a ânsia
libertadora da alma humana.» (Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia Literária Comentada. Século XIX.
Do Romantismo ao Realismo. Poesia, Lisboa, Editora Ulisseia, 1985, 2ª
edição.)
v.
13. Um poema, não sendo obviamente uma construção teórica, pode ter uma
referencialidade que é a do pensamento, da reflexão, sempre que em relação a
eles, como diria Antero de Quental, “a poesia das cousas se insinua”. Da poesia
à filosofia e desta àquela pode estabelecer-se o mesmo “caminho da verdade”.
Neste caso é o que vai ou ascende do particular para o geral, da palavra para a
multiplicidade de sentidos. (“Ser, um problema filosófico-poético?”,
Fernando Guimarães. Filosofia e Poesia - Congresso Internacional de Língua
Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
2016. )
Inserido
na expressão do lirismo amoroso, Idílio
retrata uma situação de amor ideal.
O
soneto narra momentos de grande tranquilidade do poeta com uma mulher. Calmamente,
os dois amantes vão conjugando o seu amor com o próprio cenário. Verifiquemos a
importância dos verbos “vamos”, “galgamos”, “contemplamos” que transmitem
a ação na primeira pessoa do plural, facto que inclui o próprio sujeito poético
na felicidade comungada pelos dois, induzindo a uma união não só física “Quando
vamos ambos, de mãos dadas,”, mas também espiritual “Contemplamos as nuvens
vespertinas”.
As
duas primeiras quadras são, não só narrativas, mas também extremamente descritivas,
na medida em que predominam adjetivos bastante expressivos – “orvalhadas”, “ermas”,
“vespertinas”, “fantásticas”, “amontoadas” – que contribuem para que o leitor
visualize o cenário que os dois amantes desfrutam. Este cenário está carregado
de misticismo e é, igualmente, um ambiente contemplativo: “ermas cumeadas”, “fantásticas
ruínas”, “o vento e o mar murmuram orações”, fazendo-nos lembrar a natureza
dos românticos.
Perante
este espaço, a companheira do poeta reage de um modo sui géneris – “de
súbito, emudeces!” / Não sei que luz no teu olhar flutua; / Sinto tremer-te a
mão, e empalideces…”, perturbando o sujeito poético que não encontra explicação
para o seu comportamento. Porém, no último terceto, a vivência romântica é retomada
com a personificação do vento e do mar que “murmuram orações” e, deste
modo, nos seus corações se insinua a poesia que mais não é do que a harmonia que
colhem do espaço onde se encontram:
“E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.”
A
dupla adjetivação presente no último verso evidencia mais intensamente a sensação
de amor e tranquilidade dos dois amantes. Este ambiente pacífico é também sugerido
pela pontuação.
Cecília Sucena e Dalila Chumbinho, Sebenta de
Português: Antero de Quental – introdução ao estudo da obra, Estoril, Edição da
papelaria Bonanza, [Edição: 2006]
A geometria
da razão opõe-se à lógica do coração, intuitiva do "fundo essencial da
alma". Pergunta-se, se o conteúdo desta "deixará de ser (...)
verdadeiro só por não ser rigorosamente lógico?" E afirma que "há
muitas lógicas" e a do coração é onde se "sente a verdade
eterna". Trata-se da lógica do sentimento que se manifesta na poesia, pois
que "a poesia é também verdade [já que] é a evidência da alma".
Devedor em certa medida do espírito romântico, reabilita Antero o carácter
revelador e sublime da poesia, que brota da alma e que "prende as vontades
e arrebata os corações”. É a poesia a palavra possível do silêncio em que a
consciência se remete para si, pela sublimidade do momento em que a vontade é
presa e o coração arrebatado. O real aí transfigura-se, pois que, enquanto o
"contemplamos":
O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das cousas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.
Todo
o soneto "Idílio" ativa motivos naturais - o vento, o mar, as
orvalhadas - a par de elementos humanos, que na sua combinação e relação
sugerem e fazem conhecer pelo sentimento e pela intuição. A poesia nasce aí
como a palavra própria de um silêncio "sobre-real", fruto de um pathos
que premeia esse que a profere com "o batismo dos poetas".
A sabedoria oriental na obra poética de Antero de Quental e
ensaística de Manuel da Silva Mendes, Carlos
Miguel Botão Alves, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do
Algarve, 2014.
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crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero
de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da
língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>
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