terça-feira, 29 de outubro de 2019

São tantas coisas para perder - Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre O jogo de fazer versos, de Luís Filipe de Castro Mendes




SÃO TANTAS COISAS PARA PERDER

A evitar: o constrangimento. Como se a amizade que me liga a um autor (neste caso, Luís Filipe de Castro Mendes) me pudesse, ou devesse, impedir de escrever sobre ele. Nem a amizade nem o ódio. Tenho procurado que a escrita se não mova por afetos que não derivem da própria escrita. Daí a rejeição de frases deste tipo: "odeia-me tanto que até escreve..." Puro engano. Odeio frases, ideias, propósitos de fala, mas não odeio pessoas, não odeio ninguém, quando escrevo sobre alguém. O mesmo em relação à estima, aos afetos antigos, às cumplicidades. A amizade está antes, atenta, suspensa, mas suspende-se a si própria no limiar do texto para se entregar ao puro exercício da leitura. E só depois regressa, grata, reconhecida, comovida, para celebrar o facto de um texto ter sido possível entre dois momentos de amizade.
2. A evitar ainda: o reconhecimento precipitado de um gesto, ou do sentido que somos levados a atribuir-lhe. Neste caso, o de Luís Filipe de Castro Mendes, no seu último livro. O jogo de fazer versos (Quetzal Editores), que parece erguer-se inteiramente apolado na intenção de regressar a uma poética clássica.
Assim, aconselha-nos Castro Mendes a não tomar inteiramente à letra a recomendação de Ezra Pound: "Make it new". Pois sim: "MAKE IT NEW – e que inventaste?/ Os ritmos canónicos guardaste.// A rima pobre e a graça faceira/ de quem a poesia não se abeira// foram só uma pose na paisagem./ Depois de tudo embalar, seguir viagem".
Donde, evitar a pose do novo. Equiparada no poema-carta a Fernando Echevarria a "mastigadas fórmulas sem ama/ sem dono nem senhor há tanto ano." Poderíamos daqui retirar a convicção de que Castro Mendes se teria assumido numa postura dita pós-moderna. Só um pormenor estraga a dedução: Castro Mendes acredita, plenamente, numa crença sem falhas, na poesia como senhor absoluto, soberano, impiedoso, no fausto dos seus cânones e preceitos. É até essa crença que funciona aqui como pedra de escândalo. Onde outros escolhem uma estratégia furtiva, para se não deixarem comprometer com o excesso de lirismo que nos sobrou neste tempo de desertos (cf. Vasco Graça Moura), Castro Mendes prefere um empenhamento integral no jogo de fazer versos, com a plenitude dos seus códigos e convenções. Há portanto um movimento de retorno, e uma dúvida generalizada em relação a tudo o que foi o aparato das vanguardas, e que hoje aparece como “poetar sem cor e sem surpresa". Neste ponto Castro Mendes rompe com um dos pressupostos da modernidade, que era o de um nó de solidariedade ativa entre a vanguarda política e a vanguarda literária. É verdade que alguns já tinham feito algo de semelhante quando procuraram na tradição de uma literatura reconstituir o corpo verbal de um povo (de Aragon a Alegre, passando episodicamente por algum Guillevic ou algum Carlos Oliveira). Só que em Castro Mendes essa dimensão está ausente: corpo, sim, mas apenas o corpo da poesia, sem transferências.
Contudo, devemos abordar esta questão com algumas precauções. O que sinto como leitor atento deste livro é que o regresso surge ao mesmo tempo como inevitável e impossível. Regresse-se, sim, mas ao lugar de uma perda. A poesia, esta poesia, é um trabalho sobre restos. Mais do que nunca a poesia de Luís Filipe de Castro Mendes nos surge como um trabalho de luto ("Se nos morreu às mãos toda utopia/ é que sobra em palavras a Poesia", e assim "poesia é o que faço desses restos / que ficam nas palavras por mudar"). São tantas coisas para perder!


3. A grande tarefa do leitor consiste em tentar apreender até que ponto esta perda inevitável se escreve no registo específico da enunciação deste livro. E também da sua montagem. Não é paródia (daí a recusa das etiquetas pós-modernas). Mas não é também necessariamente ironia. Há alguma distância no virtuosismo prosódico, mas também um enorme comprazimento, que só acontece porque o autor acredita numa ética da forma, mesmo quando essa forma é apenas a forma de uma ausência. Tudo se perde, a começar pelo tempo, que é o lugar expansivo da ilimitada perdição. Mas é precisamente porque tudo se perde que um verso se não pode perder. Donde, um verso diz o que se perde num movimento íntimo que o desdiz. E o tom em que este livro se grava em nós, o seu timbre e o seu humor, têm muito a ver com este jogo, sério como nenhum mais, entre o dizer e o desdizer. Nem ironia nem paródia. Antes o sentido benjaminiano da alegoria e das ruínas. E o registo freudiano de "Unheimlich": não a presença do infamiliar, mas a infamiliarização da presença, o que nela se desprende de nós ao prender-nos. "Nada sabemos e de não saber/ é que acontece ser a voz inteira"
Daí a dificuldade e alguma resistência que sentimos ao ler estes poemas. Porque eles são-nos estranhos na sua recusa dos nossos atuais códigos de reconhecimento, e nós deslizamos sobre a mecânica demasiado certeira da letra e da literalidade do dizer, e somos tentados a deixar descair a atenção para o andamento quase monótono das formas e a esquecer a densa engrenagem conceptual que a letra sustenta. Ou a senti-los como um jogo em que o lúdico se sobrepõe a tudo o mais. E isto apesar de um portentoso trabalho de montagem e composição realizado pelo autor: a organização deste livro como uma espécie de malha de textos, citações, alusões, traduções, retroversões, referências e intertextualidades explícitas ou difusas, é absolutamente exemplar.
4. A lembrar: que poetas portugueses, como Luís Filipe de Castro Mendes, falam de Sarajevo: "Vivemos esta espécie de anos trinta/ com bandeiras e dor por pensamento/·causas que a guerra torce num lamento/ e da desolação da matéria-prima// O fumo além das terras percebido/ deixa-nos vaguear neste deserto/ feito pura incerteza e desconcerto,/ dos sonhos da Razão perfeito olvido.// Demora-se entre sombras a figura/ que vimos prender fogo nas areias / acesas num rumor de noite escura.// Quanto custa esquecer as nossas ideias,/ quando vemos que o brilho dessa cura/ resplandece nas mais dúbias bandeiras!"
Ou como João Miguel Fernandes Jorge, nesse esplêndido livro que é "O Barco Vazio": "Na Europa, se estivermos voltados para o norte,/ situa-se à direita esse tão fundo pátio de/ chão cimentado por cadáveres. Corpos/ alinhados na sombra,/  superfície de parede/ devorada, outono e inverno, pelo estéril/ salitre. Uma voz sobrevoa. Ninguém/ conhece o profeta que/ a faz dizer a verdade e não ser acreditada.// Sobrevive à guerra e vive o disfarce do seu grito/ num domínio da Bósnia. Voz que gravou/ o que tinha sido obrigada a esquecer./ A terra possui o coração do açougueiro. "
Em véspera de eleições europeias, é útil que poetas o recordem.

São tantas coisas para perder”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 4 de junho de 1994, p. 12.



CARREIRO, José. “São tantas coisas para perder  - Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre O jogo de fazer versos, de Luís Filipe de Castro Mendes”. Portugal, Folha de Poesia, 29-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/sao-tantas-coisas-para-perder-por.html


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