A
VESTE DOS FARISEUS
Era
um Cristo sem poder
Sem
espada e sem riqueza
Seus
amigos o negavam
Antes
do galo cantar
A
polícia o perseguia
Guiada
por Fariseus
O
poder lavou as mãos
Daquele
sangue inocente
Crucificai-o
depressa
Lhe
pedia toda a gente
Guiada
por Fariseus
Foi
cuspido e foi julgado
No
centro duma cidade
Insultos
o perseguiram
E
morreu desfigurado
O
templo rasgou seus véus
E
Pilatos seus vestidos
Rasgaram
seu coração
Maria
Mãe de João
João
Filho de Maria
A
treva caiu dos céus
Sobre
a terra em pleno dia
Nem
uma nódoa se via
Na
veste dos Fariseus
Sophia
de Mello Breyner Andresen, Grades
Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1970
O nome do
poema faz referência ao antigo agrupamento religioso hebraico da época
pós-exílica232 de Jerusalém, os fariseus. Nesse período da história,
havia diversos grupos judaicos que divergiam em relação à doutrina religiosa,
mas eles buscavam manter entre si alguns traços essenciais de sua crença. Os
fariseus são uma vertente judaica que preza os rituais e os dogmas da Torá,
livro sagrado do Judaísmo. Vincula-se a esse grupo a formação das sinagogas e,
em 1 a.C., eram as lideranças desses templos religiosos. Estavam também
associados ao ensino e ao culto do Judaísmo.
Para
eles, seguir os ensinamentos sagrados já seria o suficiente para a salvação do
homem. Nesse sentido, não criam, à época de Cristo, em um salvador como o messias,
conforme observa Schubert.233 Assim, o grupo é reconhecido pela
busca da pureza dos preceitos judaicos e, em razão disso, são vistos como
fortes opositores ao Cristianismo. Dessa maneira, encontramos na Bíblia
passagens em que os Fariseus desconfiam das atitudes de Jesus:
1. Jesus tomou de novo a
barca, passou o lago e veio para a sua cidade. 2. Eis que lhe apresentaram um
paralítico estendido numa padiola. Jesus, vendo a fé daquela gente, disse ao
paralítico: "Meu filho, coragem! Teus pecados te são perdoados." 3.
Ouvindo isto, alguns escribas murmuraram entre si: "Este homem
blasfema." 4. Jesus, penetrando-lhes os pensamentos, perguntou-lhes:
"Por que pensais mal em vossos corações? 5. Que é mais fácil dizer: Teus pecados
te são perdoados, ou: Levanta-te e anda? 6. Ora, para que saibais que o Filho
do Homem tem na terra o poder de perdoar os pecados: Levanta-te – disse ele ao
paralítico -, toma a tua maca e volta para tua casa."234
“Escribas”
são referencias aos Fariseus, pois muitos deles em suas origens tinham a
profissão ligada à escrita dos manuscritos sagrados. Eles acreditavam que Jesus
blasfemava ao falar com pecadores, como doentes, prostitutas e arrecadadores de
impostos. Ainda segundo versículo catorze do 12.º capítulo do evangelho de
Mateus, os fariseus tramam a morte de Jesus:
9. Partindo dali, Jesus
entrou na sinagoga. 10. Encontrava-se lá um homem que tinha a mão seca. Alguém
perguntou a Jesus: É permitido curar no dia de sábado? Isto para poder
acusá-lo. 11. Jesus respondeu-lhe: Há alguém entre vós que, tendo uma única
ovelha e se esta cair num poço no dia de sábado, não a irá procurar e retirar?
12. Não vale o homem muito mais que uma ovelha? É permitido, pois, fazer o bem no
dia de sábado. 13. Disse, então, àquele homem: Estende a mão. Ele a estendeu e
ela tornou-se sã como a outra. 14. Os fariseus saíram dali e deliberaram sobre
os meios de o matar.235
De acordo
com a Bíblia, os fariseus não toleravam as ações de misericórdia e compaixão de
Jesus que transgrediam as leis de Moisés pregadas por eles. Para Jesus, o grupo
de fariseus era visto como uma “geração adúltera e perversa”, os quais sempre insistem
que o filho de Deus prove suas palavras, mostrando-lhes um milagre. Jesus ainda
aconselhava a seus apóstolos a resguardarem-se da doutrina dos fariseus.
Entre a
tensão que havia na pregação de Jesus e a busca pelo cumprimento das leis dos
fariseus, encontramos não necessariamente uma disputa, mas, sim, a manutenção
da força ideológica que as leis mosaicas tinham naquela época. Jesus, de facto,
representava uma ruptura com os costumes e, assim, temos a oposição de muitos fariseus
à sua missão, conforme apresenta a Bíblia.
Nesse
sentido, podemos recuperar no poema “A veste dos fariseus” uma visão negativa
desse grupo, pautada na ideia de hipocrisia, traição e busca pelo poder. O
texto, que apresenta cinco estrofes formadas por versos em redondilha maior,
mantém a voz poética descrevendo a cena da Paixão de Cristo, trazendo “um
Cristo sem poder / Sem espada e sem riqueza” que é perseguido pela polícia
“Guiada por Fariseus”. Em referência à cena bíblica de sua negação, o Cristo do
poema é também negado por seus amigos antes do amanhecer. Como relata o texto
sagrado, Jesus, após ser denunciado por seu discípulo Judas, é perseguido pelo
exército romano e, em razão disso, Pedro, seu outro apóstolo, nega-o três vezes
quando questionado.
No poema,
Jesus é perseguido pela polícia, a qual é orientada pelos fariseus. É interessante
observar que o termo “polícia” aparece como uma marca do tempo atual, pois
Cristo é condenado e castigado pelo exército romano, não havia referência à
polícia naquele momento histórico. A noção de força e poderio suscitada pela
imagem da “polícia” se opõe à figura indefesa de Jesus “sem espada e sem
riqueza”. Acima dessa oposição, está a influência dos fariseus que controlam
ideologicamente a polícia que persegue o suposto messias, ressaltando o poder
desse grupo judaico.
Na
estrofe seguinte, é inserida uma segunda entidade histórica: a imagem de Pôncio
Pilatos236 é trazida também a partir da noção do poder:
O poder lavou as mãos
Daquele sangue inocente
Crucificai-o depressa
Lhe pedia toda a gente
Guiada por Fariseus
A relação
dos Fariseus e de Pôncio Pilatos é explicitada nessa estrofe, mostrando, por um
lado, o poder da coerção – efetuada pelo exército e governo romano – e por
outro o poder da ideologia – alusão aos fariseus, que seriam os mentores religiosos
dos judeus. Assim, o poder é associado à injustiça – “O poder lavou as mãos / Daquele
sangue inocente” – e à busca incessante por sua manutenção implícita na figura dos
fariseus, que têm seu poder questionado com a vinda de um homem que se declara filho
de Deus. Somente a morte de Cristo poderia assegurar que o poder da religião e
da lei se reintegrasse.
Se Pôncio
Pilatos lava as mãos em relação à crucificação do homem que se apresenta como
filho de Deus, os fariseus tampouco aparecem explicitamente como culpados ou
responsáveis pelo que se passa. Essa ideia aparece nos versos finais do poema:
“Nem uma nódoa se via / Na veste dos Fariseus”. Suas túnicas não estavam manchadas
pelo sangue do homem que condenaram injustamente. Não há culpa assumida. Esse
aspecto é ressaltado em Grades, pois a imagem da ausência de mancha aparece
destacada na estrutura do texto pelo dístico final. Em Livro Sexto238,
do qual o poema é extraído, os dois dísticos finais aparecem unidos em uma
quadra que encerra o texto.
Nesse
sentido, o poema alude a aspectos ligados à corrupção moral, à mentira e, em
especial, à injustiça e à busca constante pela manutenção do poder. Pela
simbólica construção por meio dos fariseus, temos a denúncia de um tempo
marcado pela não integridade ética e pela não compaixão. Sophia Andresen,
assim, delata por sua poética a manipulação de opiniões e a inverdade entre os
homens e aqueles que têm o poder.
Em
Grades, a autora busca, por meio da poesia, denunciar a corrupção e a injustiça
mascaradas no âmbito político de civilizações importantes para o desenvolvimento
do Ocidente, como Roma, pela grandeza de seu império e pela importância do
Direito romano, que é base para a elaboração do Direito de diversas nações
ocidentais, e Jerusalém, pelo Cristianismo. Além dessas sociedades, Sophia Andresen
também traz o universo de Portugal, pois essa nação se consolida historicamente
como importante para o mundo ocidental a partir das grandes navegações entre os
séculos XV e XVI e a reorganização mundial decorrente delas.
Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello
Breyner Andresen, Nathália
Nahas. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2015
______________
232 Esse
período compreende, aproximadamente, os anos de 333 a.C. a 70 d.C., iniciado
com a conquista da Pérsia por Alexandre, o Grande. Após a sua morte, em 323
a.C., seu império foi dividido entre seus generais e governantes. Os exílios do
povo judeu ocorrem entre os anos 586 e 333 a.C., na Babilônia e na Pérsia.
Havia ainda uma grande comunidade de judeus que partiram para o Egito nesse
período.
233 SCHUBERT,
Kurt. Os partidos religiosos da época Neotestamentária. 2.ª ed. São Paulo:
Paulinas, 1979, p. 32.
234 Evangelho
de São Mateus, capítulo 9. In: Bíblia Sagrada. Versão Eletrônica.
235 Ibidem,
capítulo 12.
236 Pôncio
Pilatos foi prefeito romano da província da Judeia do ano 26 ao 36 d.C. Entre
seus encargos de prefeito, estavam as atividades administrativas e econômicas
do território, mas era sua função também assegurar a ordem na cidade, sendo sua
responsabilidade o aspecto judicial. Ele é mencionado nos evangelhos por ter
mandado executar Jesus de Nazaré, que se proclamava filho de Deus, por uma proposição
do sinédrio local, ou seja, o grupo de autoridades judaicas da província.
Pilatos é representado por sua suposta ação de lavar as mãos quando decide
executar Jesus, o que simboliza sua não responsabilidade pela condenação, a
qual recairia sobre o povo judeu. Informações extraídas de: CARTER, Warren. Pontius
Pilate: portraits of a Roman Governor. Estados Unidos da América: Liturgical
Press, 2003 e Evangelho de Mateus. Português. In: Bíblia Sagrada.
238 Segundo consta na Obra
Poética, edição de Carlos Mendes de Sousa, 2011, p. 434
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CARREIRO, José. “A veste dos fariseus, Sophia M. B. Andresen”. Portugal, Folha de Poesia, 11-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/a-veste-dos-fariseus-sophia-m-b-andresen.html
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