Lucius Sergius Catilina (Roma, 108 a.C. — Pistoia, 62 a.C.) |
CATILINA
Eu sou o solitário e nunca
minto
Rasguei toda a vaidade
tira a tira
E a caminho sem medo e sem
mentira
À luz crepuscular do meu
instinto
De tudo desligado livre
sinto
Cada coisa vibrar como uma
lira
Eu - coisa sem nome em que
respira
Toda a inquietação dum
deus extinto
Sou a seta lançada em
pleno espaço
E tenho de cumprir o meu
impulso
Sou aquele que venho e
logo passo
E o coração batendo no meu
pulso
Despedaçou a forma do meu
braço
Pra além do nó de angústia
mais convulso
Sophia de Mello Breyner
Andresen, Grades
Lisboa, Publicações Dom
Quixote, 1970
Cícero denuncia Catilina, Afresco de Cesare Maccari, que representa o senado romano reunido na Cúria Hostília. Palazzo Madama, Roma |
No soneto “Catilina” temos a alusão explícita a Lucius
Sergius Catilina, um militar e senador da Roma Antiga que ficou conhecido por
sua tentativa de derrubar a República romana e o poder oligárquico do Senado no
ano de 63 a. C. O poema traz a voz poética em primeira pessoa que se define
pela solidão e pela verdade.
Vaidade e mentiras fazem parte de cenários políticos
de distintas épocas, em que a busca pela manutenção do poder confunde-se com o
fazer político. É nesse limiar que a voz poética insere o governador romano.
Nascido em 108 a. C., Catilina pertencia a uma família patrícia que estava
empobrecida, o que o levava a afirmar-se como um político que falava em nome do
povo, colocando-se contra a elite romana. Sua importância histórica advém da
relação política que estabeleceu com Marcus Tulius Cícero, importante político
romano muito conhecido por seus discursos. Entre eles, estão as Catilinárias,
conjunto de ideias que colocam Catilina como um possível conspirador contra
o governo romano.
Sua carreira militar era consolidada: em 68 a. C., era
pretor e, posteriormente, em 67 a. C., tornou-se governador da África (atual
região da Tunísia), quando tentou a candidatura para cônsul. Pairavam, contudo,
dúvidas sobre seu bom caráter, uma vez que seu nome aparecia envolvido no
assassinato de membros de sua família, incluindo a esposa e o próprio filho,
mesmo que nada fosse comprovado. Ele teria ainda cometido um sacrilégio aos
deuses romanos por manter um caso extraconjugal com uma Virgem Vestal220,
que seria meia-irmã da esposa de Cícero. Essa acusação, porém, não foi levada
adiante, pois diversos cônsules, entre eles Catulo, testemunharam a seu favor.
Entretanto, seu nome volta a ser alvo de acusações em
65 a. C., quando surgem alegações de financiamento ilegal de ganhos, por meio
de extorsão, em sua província. Mesmo absolvido dessa e de outras questões, seu
passado fica marcado e as chances de se tornar cônsul eram poucas. Catilina,
então, decide buscar o cargo por meio de uma conspiração ajudado por quatro
jovens nobres endividados. O plano baseava-se no assassinato de dois cônsules
recém-eleitos, Cotta e Torquato.
Sua participação nessa conspiração não é algo unânime
entre os historiadores da época. A conspiração, se realmente existiu, não foi
levada adiante. O evento, porém, tornou Catilina célebre em razão das Catilinárias,
conjunto de discursos elaborados por Cícero então cônsul contrário ao
militar, cuja imagem era descrita de forma amedrontadora, diabólica e
manipuladora. Não é possível, porém, saber se essa noção é real, assim como sua
astúcia para estratégias políticas.221
Apesar disso, convém notar que Catilina tinha carisma
o suficiente, ou motivos, para manter aliados devotos. Ademais, sua pobreza e
frustrações políticas o teriam inspirado a apresentar um posicionamento
contrário às injustiças do sistema no qual estava inserido, o que era relevante
em uma república como a romana, onde a riqueza tornava-se progressivamente
desigual em razão dos desvios de poder e da má gestão.
São discutíveis tanto o caráter de Catilina como sua
participação política, pois não existem depoimentos remanescentes de seu ponto
de vista. O que nos resta é o depoimento de Cícero apresentado nas Catilinárias,
baseadas na vituperação feitas por seu autor. Além disso, Catilina é tematizado
também nos textos de Salústio222 (86-34 a.C.), um dos principais historiadores e
escritores da literatura latina.
Foi questor223 no
Senado romano e tinha o apoio de Júlio César. Nos textos de Salústio, Catilina
também é descrito como alguém sagaz, mas de natureza cruel.224
De facto, o que se sabe sobre Lucius Sergius Catilina é apresentado pelos olhos
e pelos interesses de pessoas que não aceitavam os desejos do exercício
político dele. Henrik Ibsen, dramaturgo norueguês do final do século XIX,
observou que Catilina é a melhor representação de personalidades históricas
cuja memória é posse mais de seus conquistadores do que de si mesmo.225
Nesse sentido, Lucius Sergius Catilina configura-se
como uma imagem histórica contraditória. Por um lado, podemos relacioná-la à
busca incessante a qualquer custo pelo poder. Por outro, é possível associá-lo
à luta contra a injustiça e os abusos de poder que definiam a esfera política e
social da Roma Antiga. Entre os extremos, ele dá nome ao segundo poema de Grades,
um soneto decassílabo cuja voz poética fala de alguém que caminha “sem medo e
sem mentira”, descoberto de vaidade.
Em seu poema, Sophia Andresen assume um dos lados
contraditórios da história de Catilina: a pessoa que corajosamente se opôs ao
poder da elite romana, falando em nome do povo, buscando romper o regime de
injustiça do poder. Entretanto, a sua outra face o traidor que conspira contra
seu governo é evocada por Camões em Os Lusíadas, no Quarto Canto:
Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros doa antigos
Que contra vossas pátrias, com profano
Coração, vos fizestes inimigos:
Se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos portugueses
Alguns traidores houve algumas vezes
Sertório, Coriolano e Catilina são três personalidades
romanas conhecidas pela oposição ao governo de Roma que foram condenadas por
traição. Essa estrofe faz parte do conjunto de estrofes no qual Vasco da Gama
conta a história da Batalha de Aljubarrota227, que ocorrera em Portugal em agosto de 1385.
Portugueses e o reino de Castela brigavam pelo domínio das terras lusitanas. O
Exército português era comandado pelo condestável Nuno Álvares Pereira, e seus
irmãos, Diogo e Pedro Álvares Pereira228, lutaram contra Portugal pelas tropas castelhanas. Em
vista disso, os versos que se referem aos traidores da pátria usam a imagem de
Catilina como ilustração.
Distanciando-se dessa visão, em Grades temos
Catilina não como traidor, mas, sim, como alguém íntegro. A voz poética
define-se, logo na primeira estrofe, como alguém determinado e verdadeiro, que
traça o seu itinerário “à luz crepuscular” do seu instinto. Quando ele se apresenta
como “solitário”, podemos pensar como o único político romano daquele contexto
que assumia uma posição contrária à aristocracia romana que comandava o
império. Da vaidade ele se despe, rasgando-como a túnica que os romanos
vestiam. Essa imagem remete à ideia da nudez, da transparência, a qual se aproxima
da verdade.
O soneto, que apresenta o esquema rímico fixo ABBA nos
quartetos, CDC e DCD nos tercetos, traz a imagem de Catilina rasgando sua
vaidade, o que se relaciona com as descrições históricas do momento em que é
acusado por Cícero de traição, em 8 de novembro de 63 a. C., segundo as quais
ele teria se defendido sozinho, deixando Roma posteriormente, uma vez que não
contava com o apoio dos demais senadores. Nesse momento, ele se junta às suas
tropas na região de Etrúria. Temos, assim, a visão do indivíduo que está
isolado, defendendo-se de acusações sobre mentir. A vaidade rasgada pode ser
lida pela ideia das palavras que o acusam desfazendo seu caráter e seu ego.
É possível compreender essa imagem pela ideia da
defesa que Catilina faz de si mesmo. A exposição de seus propósitos, de suas
intenções e de suas pretensões, no momento em que é acusado, deixa-o “nu”, ou seja, suscetível e desprotegido, por isso sua
túnica aparece rasgada tira a tira. Ademais, a expressão “tira a tira” também
nos remete à noção de algo que ocorre
paulatinamente, pois Catilina tem um percurso de insucessos na sua trajetória
política, que culmina com sua morte, logo após ser condenado por Cícero. De
tentativas fracassadas de eleger-se como cônsul, restou a ele a fama de
desertor de sua nação, acusações por ele negadas, “sem medo e sem mentira”.
O poema continua com uma imagem muito significativa: “De
tudo desligado livre sinto / Cada coisa vibrar como uma lira”. Retomando a sua
túnica rasgada tira a tira, podemos compreender que Catilina
está livre, pois se desliga de todas as ambições e pretensões de poder que
poderia ter como político na Roma antiga. Desliga-se também do cenário de
corrupção e de busca do poder que formam o Império Romano, uma vez que rasga
aos poucos sua vaidade. É possível ainda pensar que a liberdade vem pela sua
morte, que o afasta de um sistema movido pelo poder e pelo orgulho.
A lira é um instrumento de larga difusão na
Antiguidade e pode simbolizar a harmonia. Nesse sentido, após estar livre das
corrupções morais do poder ou após sua morte, Catilina pode unir-se de maneira
harmoniosa às coisas do mundo, sentindo-as vibrar. Essa imagem alude à ideia de
religação a qual abordamos anteriormente. É interessante notar também que a
lira é um dos atributos de Apolo, o deus grego que possui flechas letais, o
qual pode se relacionar com o “deus extinto” trazido no último verso da
estrofe. Esse deus é “Realizador do equilíbrio e da harmonia dos desejos, não
visava a suprimir as pulsões humanas, mas orientá-las no sentido de uma
espiritualização progressiva, mercê do desenvolvimento da consciência”229,
ideia que se aproxima da imagem de um homem que lutou contra a corrupção do
poder.
A ideia de libertação torna Catilina “coisa sem nome”, o que pode ser lido
pelo viés do orgulho e do poder. O nome
presentifica e identifica o ser, individualizando-o. O “não nome” é a não
existência. Nesse contexto, podemos pensar novamente na ideia da morte de
Catilina, talvez não a física, mas, sim, a morte de seus ideais e desejos de
poder e de mudança. Não ser nomeado é não estar presente, é estar ausente desse
cenário de corrupção do poder. Mas ainda que tenha abandonado a “batalha”
contra o poder, vibra nessa “coisa sem nome” a “inquietação de um deus extinto”,
que podemos ler como Apolo, um deus grego assimilado pela cultura romana.
É interessante notar que a figura desse deus grego é
também ambígua como a de Catilina. Em um primeiro momento, nos cantos
homéricos, ele é descrito como um deus vingador, lunar, de arco e flechas
mortíferas. Em um segundo momento, talvez em razão do sincretismo natural do
desenvolvimento da cultura grega, ele passa a ser visto como um deus solar, simbolizando
a inspiração, o equilíbrio, a colheita sadia, entre outros amplos atributos,
conforme analisa Junito Brandão.230
A voz poética define-se ainda como “a seta lançada em
pleno espaço” no início da terceira estrofe do poema. A seta pode ser lida a
partir de duas ideias: primeiramente, temos a ideia da direção certeira da
flecha, isto é, da determinação. Catilina pode ser visto como imagem daquele
que estava determinado a obter o poder e falar pelo povo. Seu rumo é cumprir o
seu impulso, estabelecer aquilo em que acredita. Mas, para tanto, é preciso
também alterar as estruturas fixas já existentes. Por isso, a flecha também
pode ser vista por seu movimento que rompe e que penetra. Catilina representa
no poema aquele que modifica ou que buscou modificar uma organização política
pouco justa com seu povo. A estrutura da aristocracia romana que controlava o
império pode ser lida como uma alusão às estruturas militares que comandavam
Portugal. Estruturas fixadas em seu poder, assentadas no desejo de exercer o
poder, identificando-se a ele, e não ao seu povo.
A flecha é também instrumento da luta e da caça,
podendo simbolizar a morte. Nesse sentido, é possível ler a metáfora da seta
como alguém que busca seus objetivos de mudança, lutando por eles e caçando
aqueles que são obstáculos. Além disso, é um dos símbolos de Apolo, podendo se
relacionar com a imagem lunar do deus de flechas que matam, o que representa a
vingança e também o poder. Entretanto, como o poema mantém-se em um viés mais
positivo sobre Catilina, podemos pensar no movimento da flecha e no seu efeito
como símbolos de luta pelos ideais de mudança do contexto corrompido romano por
aquele que busca cumprir seu impulso acredita, o que é reforçado pela imagem de
Apolo e seu propósito de equilíbrio.
A imagem de Catilina é retomada por Sophia Andresen em
um contexto no qual um homem mantinha-se como ditador da pátria. Qualquer
pessoa em uma situação como essa que se colocasse contra os ideais do governo
era acusada de desertora, assim como fora Catilina. A tentativa de enfrentar o
poder político, de questioná-lo e de resistir a ele pode ser lida na figura do
romano, mas pode ser vista também na tentativa de escritores e pensadores
portugueses que buscavam, da maneira que fosse possível, expor seu
descontentamento e seu desejo de ver em Portugal um governo livre da opressão e
da manipulação. Catilina é um símbolo daquele que busca romper uma estrutura de
governo que se identifica com o poder, que governa para si e para seus
interesses.
Portanto, mesmo que historicamente Lucius Sergius
Catilina seja descrito de forma contraditória, associado muitas vezes à
injustiça, imoralidade e corrupção, não é essa a imagem recuperada por Sophia
Andresen em seu poema publicado originalmente em Dia do Mar. “Catilina” suscita
a busca pela justiça, pelo rompimento com estruturas de poder que não permitem
a verdade e a integridade. Há a determinação em buscar incessantemente aquilo
em que se acredita: a mudança. Essa busca é vital, mas é dilacerante também: “E
o coração batendo no meu pulso / Despedaçou a forma do meu braço”. Em um contexto
político de corrupção e injustiça, a busca pela mudança tem seu preço. Para
Catilina, o preço foi a sua honra e sua vida.
O tema da injustiça é também apresentado por Sophia
Andresen em Grades por meio de outra evocação simbólica do poder político
na história no poema “A veste dos Fariseus”.
Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello
Breyner Andresen, Nathália Nahas. Dissertação de mestrado
apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, 2015
________________________
220 As Virgens Vestais eram sacerdotisas que
cultuavam a deusa romana Vesta. Durante o sacerdócio exclusivamente feminino,
cerca de 30 anos, as mulheres deveriam manter-se virgens e castas.
221 Essa ideia é afirmada por Michael Grant
justamente pelo fato de termos acesso a informações sobre Catilina em obras que
se opunham a ele. In: CICERO, Marcus Tulius. Selected Political Speeches. Trad.
e comentários Michael Grant. Reino Unido: Penguin Books, 1969.
222 Convém notar que, no texto de Salústio, no
qual ele descreve o discurso de César sobre Catilina e sua conspiração, temos a
ideia de que aquele buscou poupar a vida deste, uma vez que sua morte
significaria para o povo de Roma vingança, e não justiça, como gostaria Cícero.
Em razão disso, Catão, outro senador que defendia a morte de Catilina,
especulou que Júlio César também pudesse ser parte da conspiração.
223 Questor é um cargo político da antiga Roma
ligado ao trabalho com as questões financeiras, lidando diretamente com as
arrecadações públicas.
224 TINGAY, Graham. Júlio
César. Madrid: Ediciones Akal, 1994. Coleção Historia del Mundo para
Jovenes, p. 18. Título original: Julius
Caesar (em inglês). Cambrigde: Cambridge University Press, 1991.
225 Henrik Ibsen (1828-1906) elabora sua primeira
peça, Catilina, inspirado pelas Catilinárias e discursos de Salústio. O
dramaturgo norueguês é reconhecido por suas peças inspiradas na filosofia e nas
denúncias contra uma sociedade assentada no conformismo, na injustiça e na
mediocridade. Catilina é escrita em 1848-49, mas encenada pela primeira
vez muitos anos depois, em 1881. (GOOSE, E., 1926)
227 Informações extraídas do documento “A Batalha
de Aljubarrota”, da Fundação Batalha de Aljubarrota. Disponível em:
http://www.fundacao-aljubarrota.pt/. Acesso em: 01 dez 2014.
228 Ibidem.
229 BRANDÃO, Mitologia Grega. Petropolis:
Vozes, 1987, p. 85.
230 BRANDÃO, 1987, pp. 85-87.
LUSOFONIA Plataforma de apoio ao estudo da
língua portuguesa no mundo https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/
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CARREIRO, José. “Lucius
Sergius Catilina num poema de Sophia Andresen”. Portugal, Folha
de Poesia, 10-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/lucius-sergius-catilina.html
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