Tertúlia em casa de Natália Correia. |
O livro é como um rio. Tem a sua nascente e a sua foz.
E assim como o rio se mistura na vastidão oceânica, funde-se o livro na massa
do saber universal. A sua nascente é o autor. A foz, o leitor. Mas esse
percurso não seria possível se dele não fossem motores o editor e o livreiro,
figuras por vezes obscuras, mas não menos importantes na marcha do livro para o
seu destino universal.
Contudo não é sem razão que hoje se levanta um alarme.
Agouros tecnológicos de entre os quais avulta a aldeia global de MacLuan
vaticinam, se não a liquidação do livro pela hipnose dos meios dos meios
audio-visuais, pelo menos a grande redução do seu espaço. Ai de nós se assim
for. Porque a audiovisualidade por mais apuradamente cultural que seja e
dificilmente o será, não permite a retenção da palavra, o voltar atrás que a
escrita faculta, elementos indispensáveis à reflexão, do exercício da memória e
ao despertar da subjectividade cada vez mais apoucada pela tirania da
massificação.
Dignificar o livro e promover a sua expansão é, pois,
obra de quantos se empenham em salvaguardar os valores individualizantes que
poderão resistir à imbecilização de uma humanidade puerilizada pelo
igualitarismo da quantificação tecnológica.
Quando Gutemberg inventou o prelo tipográfico, alguns
viram nesse meio de democratização dos conhecimentos obra faustica de um pacto com
o diabo. E ainda Lope de Vega nela denunciava o perigo de abandalhar pela
quantidade o que devia ser património da qualidade. Contudo, hoje, por ironia
da mudança dos tempos e das vontades, é nesse produto nobre da tipografia que
residem as virtudes da defesa do qualitativo da tecnologia globalista que
despersonaliza e que desidentifica, que anula os indivíduos. Bem hajam, pois,
os que nesta ilha confirmam a tradição da bibliofilia que tanto a tem ilustrado
e a dotam com mais um instrumento de cultura. Porque esta é a própria condição
do fortalecimento da personalidade açórica e da sua invulnerabilidade à usura
de um Estado centralizador, que no seu narcisismo, se condena a afundar-se nas
águas fatais da autocontemplação, tragicamente alheio a realidades
indefectíveis como esta: açorianidade!
Natália Correia, “Ao
princípio era o Livro” - discurso proferido aquando da inauguração da livraria
Nove Estrelas, dirigida por José de Almeida, em 07-12-1981.
(Partilhado
por Carlos Melo Bento, em https://www.facebook.com/carlos.melobento, 23-09-2023)
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