quarta-feira, 20 de setembro de 2023

pequeno crime diário (Maria Judite de Carvalho)




 

UM LUGAR NO AUTOCARRO

 

Basta entrar num autocarro, num metropolitano ou num elétrico e olhar. É que vemos sempre coisas ou adivinhamo-las ou imaginamo-las, claro. Mas às vezes acontecem mesmo. Esta foi num autocarro – n.º 5, n.º 7, sei lá, eu e os números…

Sentada logo à entrada, uma menina de uns quinze anos muito bonita. Loiros cabelos verticais até aos ombros, nem um fora do lugar, sardas postiças e, sobre os joelhos, livros, cadernos e duas mãos cuidadas. Uma menina-mulher que talvez tivesse sido chamada e tido uma boa nota, porque nos seus olhos claros havia um brilho feliz. Não sei porquê mas pensei que ela devia ser estudiosa, muito eficiente, extraordinariamente atenta ao mundo apaixonante que a rodeava. Uma rapariguinha completa, há quem diga, como se as raparigas andassem por aí aos bocados.

A certa altura entrou um homem de uns sessenta anos, não mais, e, como todos os lugares estavam ocupados, deixou-se ficar na retaguarda. Era um homem bem conservado, bem vestido, um homem que devia ter sido interessante e que talvez ainda se julgasse capaz de interessar. Era também um homem bem-educado, viu-se depois. Depois, foi quando o olhar claro e lavado da rapariguinha se deteve nele, e ela se levantou, muito amável, para lhe oferecer o lugar. Sabia que se deve oferecer o lugar às pessoas idosas e aquele homem era para ela muito idoso, podia ser seu avô. Então…

Há muito que não vejo uma pessoa tão atrapalhada como aquele homem. Primeiro subiu-lhe ao rosto uma onda de sangue. Depois, em voz um pouco trémula, disse: «Obrigado, mas sinto-me perfeitamente de pé.» A rapariguinha, porém, queria por força levar a cabo a sua boa ação diária e insistiu. Que fizesse favor, que ela ia sair na paragem seguinte… Havia sorrisos em volta, pessoas bichanavam, o homem devia sentir-se horrivelmente infeliz. E acabou por se sentar, com um sorriso muito falso, quase esgar, para fugir aos olhares do carro inteiro.

A rapariguinha saiu, de facto, na paragem seguinte, e eu fiquei a perguntar a mim própria se ela já teria feito mais vezes bonitas ações daquelas. É possível que logo que chegasse a casa pegasse no seu diário – porque quase todas as meninas de quinze anos têm um diário – e escrevesse qualquer coisa à volta disto: «Tive um dezoito em Matemática e dei o meu lugar no autocarro a um pobre velho.» Porque o critério das idades varia conforme vamos envelhecendo. E se aquela menina não rasgasse o tal caderno e pudesse lê-lo daqui a muitos anos, e pudesse também recordar o homem a quem ofereceu o seu lugar, saberia que no dia tal às tantas horas praticara o seu pequeno crime diário.

 

Maria Judite de Carvalho, A janela fingida (Textos publicados entre 1968 e 1969 no Diário de Lisboa e outras publicações). Lisboa, Seara Nova, 1975. Prefácio de Batista-Bastos intitulado “Maria Judite de Carvalho: Uma ternura magoada”.

 


A crónica "Um Lugar no Autocarro" de Maria Judite de Carvalho é uma reflexão delicada e observadora sobre as interações humanas quotidianas. A cronista apresenta uma cena com personagens aparentemente comuns, mas que nos conduzem à reflexão sobre a natureza humana e a passagem do tempo.

A escritora começa por destacar a capacidade das pessoas de observar e imaginar as vidas alheias em espaços públicos como o autocarro, o metropolitano e o elétrico. Essa habilidade permite criar histórias e conjeturas sobre desconhecidos, um tema que ressoa com a nossa curiosidade inerente sobre os outros.

O foco da crónica recai sobre uma jovem estudante e um homem mais velho. A descrição meticulosa dos detalhes físicos da jovem, a sua atitude gentil ao oferecer o seu lugar ao homem mais velho e a reação envergonhada deste último são elementos que evidenciam as complexidades das interações humanas. A autora sugere que a jovem, apesar da sua idade, é madura e generosa, enquanto o homem “idoso”, embora educado, está desconfortável com a inversão de papéis tradicionais.

A expressão final “pequeno crime diário” é uma metáfora que sugere que a menina, ao ceder o seu lugar ao senhor, praticou um ato de violência simbólica contra ele, atingindo a sua dignidade e autoimagem. A expressão revela ainda que a menina desconhece a gravidade do seu gesto, que julga ser uma boa ação, e que o faz todos os dias, por hábito. Essa expressão sintetiza a essência da crónica de Maria Judite de Carvalho, que explora a complexidade das interações sociais, a perceção pública e as motivações por trás das boas ações. Ela convida o leitor a refletir sobre como as nossas ações podem ter interpretações surpreendentes e como a conformidade social pode condicionar a nossa conduta. A crónica evidencia que nem sempre as boas intenções garantem uma boa comunicação e que nem sempre a realidade corresponde às aparências. A crónica propõe também que devemos ter mais respeito e sensibilidade pelos outros, especialmente pelos mais velhos, que muitas vezes são tratados como objetos de piedade ou de desprezo.

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Do ponto de vista literário, a crónica de Maria Judite de Carvalho intitulada «Um lugar no autocarro» pode ser analisada como um texto que apresenta as seguintes características:

Estrutura: A crónica tem uma estrutura simples, composta por três partes: a introdução, onde o narrador apresenta o cenário e as personagens; o desenvolvimento, onde o narrador relata o conflito entre as personagens e as suas reações; e a conclusão, onde o narrador faz uma reflexão sobre o significado do episódio.

Narrador: O narrador é um observador que testemunha e comenta o que se passa no autocarro. Ele usa a primeira pessoa do singular, mas não se identifica nem revela os seus sentimentos ou opiniões. Ele mantém uma certa distância e neutralidade em relação às personagens, mas também mostra alguma simpatia e compreensão pelo homem. Ele usa um tom coloquial e informal, mas também recorre a algumas expressões cultas e eruditas.

Personagens: As personagens principais são a rapariguinha e o homem, que representam dois tipos humanos opostos: a juventude e a velhice, a inocência e a experiência, a idealização e a realidade. As personagens secundárias são os outros passageiros do autocarro, que funcionam como um coro que reforça a ironia e o humor da situação.

Espaço: O espaço é o autocarro, que simboliza um lugar de encontro e de desencontro entre as pessoas. É um espaço fechado, limitado e transitório, onde se manifestam as diferenças sociais, culturais e geracionais.

Tempo: O tempo é o presente, que coincide com o tempo da narração. É um tempo breve, que corresponde à duração da viagem de autocarro. É um tempo que marca a passagem da vida e que evidencia o contraste entre o tempo cronológico e o tempo psicológico das personagens.

Tema: O tema é o conflito entre as gerações, que resulta da incompreensão mútua e da falta de comunicação. É também o tema da solidão humana, que se manifesta na dificuldade de estabelecer laços afetivos e de reconhecer o valor do outro.

Estilo: O estilo é marcado pela ironia, que se expressa na discrepância entre o que as personagens pensam, dizem e fazem. A ironia também se manifesta na contraposição entre os adjetivos usados para caracterizar as personagens e os seus comportamentos. O estilo é ainda caracterizado pelo humor, que se baseia no exagero, na surpresa e na antítese. O humor serve para criticar os preconceitos e os estereótipos sociais, mas também para suavizar a amargura e a tristeza do tema.

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Do ponto de vista sociológico, a crónica revela alguns aspetos da sociedade portuguesa dos anos 60 do século XX, como o papel da mulher, a educação, o envelhecimento e as relações intergeracionais. A rapariguinha que oferece o seu lugar ao homem é apresentada como uma menina-mulher, estudiosa, eficiente e atenta ao mundo, mas também como alguém que segue as normas sociais de cortesia e de boa ação diária. Ela representa uma geração que procura o sucesso escolar e a integração social, mas que ainda não questiona os valores tradicionais. O homem que aceita o lugar é descrito como um homem bem conservado, bem vestido e bem-educado, mas também como alguém que se sente humilhado e infeliz por ser considerado velho e incapaz. Ele representa uma geração que se vê confrontada com o declínio físico e social, mas que ainda se julga interessante e ativo. A crónica mostra, assim, o contraste entre duas formas de estar no mundo e de lidar com o tempo, que geram mal-entendidos e conflitos.

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Do ponto de vista psicológico, a crónica explora os sentimentos e as reações das personagens perante uma situação aparentemente banal, mas que se revela significativa. A rapariguinha oferece o seu lugar ao homem com uma intenção bondosa, mas também com uma certa ingenuidade e presunção. Ela não se apercebe do impacto que o seu gesto tem na autoestima do homem, nem da ironia dos outros passageiros. Ela vive num mundo idealizado, onde as boas ações são recompensadas e os velhos são pobres e agradecidos. O homem recebe o lugar da rapariguinha com uma mistura de gratidão e ressentimento. Ele não consegue recusar o lugar sem parecer mal-educado ou orgulhoso, mas também não consegue aceitá-lo sem se sentir diminuído e ridicularizado. Ele vive num mundo realista, onde as aparências enganam e os jovens são arrogantes e insensíveis. A crónica mostra, assim, o abismo que separa as duas personagens e que impede uma verdadeira comunicação e compreensão.

 

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A Vida é um Autocarro Vazio - Uma crónica sobre a vida e obra de Maria Judite de Carvalho, disponível na RTP Play, 19-09-2023.

Figura incontornável da literatura portuguesa do século XX, Maria Judite de Carvalho preferiu sempre observar à exposição. Apelidada por Agustina Bessa Luís como "flor discreta da literatura", não poupou nas palavras que escreveu sobre a sociedade portuguesa, com uma acutilância que poucos conseguiram alcançar. Talvez o silêncio que preferia a fazia mais atenta aos pequenos pormenores do quotidiano. Casada com Urbano Tavares Rodrigues, passou alguns anos em Paris, mas foi em Lisboa que encontrou o território perfeito para os seus romances e crónicas que tantos jornais popularam. Publicou 13 romances, venceu o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco por duas vezes e foi ainda feita Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Quem lê Maria Judite de Carvalho antevê um pouco daquilo que foi a sua vida. Com este documentário, mergulhamos no seu percurso e esperamos que nos possa dar algumas pistas para desvendar os silêncios de uma das maiores escritoras portuguesas


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