UM LUGAR NO AUTOCARRO
Basta
entrar num autocarro, num metropolitano ou num elétrico e olhar. É que vemos
sempre coisas ou adivinhamo-las ou imaginamo-las, claro. Mas às vezes acontecem
mesmo. Esta foi num autocarro – n.º 5, n.º 7, sei lá, eu e os números…
Sentada
logo à entrada, uma menina de uns quinze anos muito bonita. Loiros cabelos
verticais até aos ombros, nem um fora do lugar, sardas postiças e, sobre os
joelhos, livros, cadernos e duas mãos cuidadas. Uma menina-mulher que talvez
tivesse sido chamada e tido uma boa nota, porque nos seus olhos claros havia um
brilho feliz. Não sei porquê mas pensei que ela devia ser estudiosa, muito
eficiente, extraordinariamente atenta ao mundo apaixonante que a rodeava. Uma
rapariguinha completa, há quem diga, como se as raparigas andassem por aí aos
bocados.
A certa
altura entrou um homem de uns sessenta anos, não mais, e, como todos os lugares
estavam ocupados, deixou-se ficar na retaguarda. Era um homem bem conservado,
bem vestido, um homem que devia ter sido interessante e que talvez ainda se
julgasse capaz de interessar. Era também um homem bem-educado, viu-se depois.
Depois, foi quando o olhar claro e lavado da rapariguinha se deteve nele, e ela
se levantou, muito amável, para lhe oferecer o lugar. Sabia que se deve
oferecer o lugar às pessoas idosas e aquele homem era para ela muito idoso,
podia ser seu avô. Então…
Há muito
que não vejo uma pessoa tão atrapalhada como aquele homem. Primeiro subiu-lhe
ao rosto uma onda de sangue. Depois, em voz um pouco trémula, disse: «Obrigado,
mas sinto-me perfeitamente de pé.» A rapariguinha, porém, queria por força
levar a cabo a sua boa ação diária e insistiu. Que fizesse favor, que ela ia
sair na paragem seguinte… Havia sorrisos em volta, pessoas bichanavam, o homem
devia sentir-se horrivelmente infeliz. E acabou por se sentar, com um sorriso
muito falso, quase esgar, para fugir aos olhares do carro inteiro.
A
rapariguinha saiu, de facto, na paragem seguinte, e eu fiquei a perguntar a mim
própria se ela já teria feito mais vezes bonitas ações daquelas. É possível que
logo que chegasse a casa pegasse no seu diário – porque quase todas as meninas
de quinze anos têm um diário – e escrevesse qualquer coisa à volta disto: «Tive
um dezoito em Matemática e dei o meu lugar no autocarro a um pobre velho.» Porque
o critério das idades varia conforme vamos envelhecendo. E se aquela menina não
rasgasse o tal caderno e pudesse lê-lo daqui a muitos anos, e pudesse também
recordar o homem a quem ofereceu o seu lugar, saberia que no dia tal às tantas
horas praticara o seu pequeno crime diário.
Maria
Judite de Carvalho, A janela fingida (Textos publicados entre 1968 e 1969
no Diário de Lisboa e outras publicações). Lisboa, Seara Nova, 1975. Prefácio
de Batista-Bastos intitulado “Maria Judite de Carvalho: Uma ternura magoada”.
A crónica
"Um Lugar no Autocarro" de Maria Judite de Carvalho é uma reflexão
delicada e observadora sobre as interações humanas quotidianas. Através de uma
narrativa simples, a cronista apresenta uma cena com personagens aparentemente
comuns, mas que nos conduzem à reflexão sobre a natureza humana e a passagem do
tempo.
A
escritora começa por destacar a capacidade das pessoas de observar e imaginar
as vidas alheias em espaços públicos como o autocarro, o metropolitano e o elétrico.
Essa habilidade permite criar histórias e conjeturas sobre desconhecidos, um
tema que ressoa com a nossa curiosidade inerente sobre os outros.
O foco da
crónica recai sobre uma jovem estudante e um homem mais velho. A descrição
meticulosa dos detalhes físicos da jovem, a sua atitude gentil ao oferecer o
seu lugar ao homem mais velho e a reação envergonhada deste último são
elementos que evidenciam as complexidades das interações humanas. A autora
sugere que a jovem, apesar da sua idade, é madura e generosa, enquanto o homem “idoso”,
embora educado, está desconfortável com a inversão de papéis tradicionais.
A
expressão final “pequeno crime diário” é uma metáfora que sugere que a menina,
ao ceder o seu lugar ao senhor, praticou um ato de violência simbólica contra
ele, atingindo a sua dignidade e autoimagem. A expressão revela ainda que a
menina desconhece a gravidade do seu gesto, que julga ser uma boa ação, e que o
faz todos os dias, por hábito. Essa expressão sintetiza a essência da crónica
de Maria Judite de Carvalho, que explora a complexidade das interações sociais,
a perceção pública e as motivações por trás das boas ações. Ela convida o
leitor a refletir sobre como as nossas ações podem ter interpretações
surpreendentes e como a conformidade social pode condicionar a nossa conduta. A
crónica evidencia que nem sempre as boas intenções garantem uma boa comunicação
e que nem sempre a realidade corresponde às aparências. A crónica propõe também
que devemos ter mais respeito e sensibilidade pelos outros, especialmente pelos
mais velhos, que muitas vezes são tratados como objetos de piedade ou de
desprezo.
*
Do ponto de vista literário, a crónica
de Maria Judite de Carvalho intitulada «Um lugar no autocarro» pode ser
analisada como um texto que apresenta as seguintes características:
Estrutura: A crónica tem uma estrutura simples, composta por três partes: a
introdução, onde o narrador apresenta o cenário e as personagens; o
desenvolvimento, onde o narrador relata o conflito entre as personagens e as
suas reações; e a conclusão, onde o narrador faz uma reflexão sobre o
significado do episódio.
Narrador: O narrador é um observador que testemunha e comenta o que se
passa no autocarro. Ele usa a primeira pessoa do singular, mas não se
identifica nem revela os seus sentimentos ou opiniões. Ele mantém uma certa
distância e neutralidade em relação às personagens, mas também mostra alguma
simpatia e compreensão pelo homem. Ele usa um tom coloquial e informal, mas
também recorre a algumas expressões cultas e eruditas.
Personagens: As personagens principais são a rapariguinha e o homem, que
representam dois tipos humanos opostos: a juventude e a velhice, a inocência e
a experiência, a idealização e a realidade. As personagens secundárias são os
outros passageiros do autocarro, que funcionam como um coro que reforça a
ironia e o humor da situação.
Espaço: O espaço é o autocarro, que simboliza um lugar de encontro e de
desencontro entre as pessoas. É um espaço fechado, limitado e transitório, onde
se manifestam as diferenças sociais, culturais e geracionais.
Tempo: O tempo é o presente, que coincide com o tempo da narração. É um
tempo breve, que corresponde à duração da viagem de autocarro. É um tempo que
marca a passagem da vida e que evidencia o contraste entre o tempo cronológico
e o tempo psicológico das personagens.
Tema: O tema é o conflito entre as gerações, que resulta da incompreensão
mútua e da falta de comunicação. É também o tema da solidão humana, que se
manifesta na dificuldade de estabelecer laços afetivos e de reconhecer o valor
do outro.
Estilo: O estilo é marcado pela ironia, que se expressa na discrepância
entre o que as personagens pensam, dizem e fazem. A ironia também se manifesta
na contraposição entre os adjetivos usados para caracterizar as personagens e
os seus comportamentos. O estilo é ainda caracterizado pelo humor, que se
baseia no exagero, na surpresa e na antítese. O humor serve para criticar os
preconceitos e os estereótipos sociais, mas também para suavizar a amargura e a
tristeza do tema.
*
Do
ponto de vista sociológico, a crónica revela alguns aspetos da sociedade
portuguesa dos anos 60 do século XX, como o papel da mulher, a educação, o
envelhecimento e as relações intergeracionais. A rapariguinha que oferece o seu
lugar ao homem é apresentada como uma menina-mulher, estudiosa, eficiente e
atenta ao mundo, mas também como alguém que segue as normas sociais de cortesia
e de boa ação diária. Ela representa uma geração que procura o sucesso escolar
e a integração social, mas que ainda não questiona os valores tradicionais. O
homem que aceita o lugar é descrito como um homem bem conservado, bem vestido e
bem-educado, mas também como alguém que se sente humilhado e infeliz por ser
considerado velho e incapaz. Ele representa uma geração que se vê confrontada
com o declínio físico e social, mas que ainda se julga interessante e ativo. A
crónica mostra, assim, o contraste entre duas formas de estar no mundo e de
lidar com o tempo, que geram mal-entendidos e conflitos.
*
Do
ponto de vista psicológico, a crónica explora os sentimentos e as reações das
personagens perante uma situação aparentemente banal, mas que se revela
significativa. A rapariguinha oferece o seu lugar ao homem com uma intenção
bondosa, mas também com uma certa ingenuidade e presunção. Ela não se apercebe
do impacto que o seu gesto tem na autoestima do homem, nem da ironia dos outros
passageiros. Ela vive num mundo idealizado, onde as boas ações são
recompensadas e os velhos são pobres e agradecidos. O homem recebe o lugar da
rapariguinha com uma mistura de gratidão e ressentimento. Ele não consegue
recusar o lugar sem parecer mal-educado ou orgulhoso, mas também não consegue
aceitá-lo sem se sentir diminuído e ridicularizado. Ele vive num mundo
realista, onde as aparências enganam e os jovens são arrogantes e insensíveis.
A crónica mostra, assim, o abismo que separa as duas personagens e que impede
uma verdadeira comunicação e compreensão.
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também gostar de
A Vida é um Autocarro Vazio - Uma crónica sobre a vida e obra de Maria Judite de Carvalho, disponível na RTP Play, 19-09-2023.
Figura incontornável da
literatura portuguesa do século XX, Maria Judite de Carvalho preferiu sempre
observar à exposição. Apelidada por Agustina Bessa Luís como "flor
discreta da literatura", não poupou nas palavras que escreveu sobre a
sociedade portuguesa, com uma acutilância que poucos conseguiram alcançar.
Talvez o silêncio que preferia a fazia mais atenta aos pequenos pormenores do
quotidiano. Casada com Urbano Tavares Rodrigues, passou alguns anos em Paris,
mas foi em Lisboa que encontrou o território perfeito para os seus romances e
crónicas que tantos jornais popularam. Publicou 13 romances, venceu o Grande
Prémio de Conto Camilo Castelo Branco por duas vezes e foi ainda feita
Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Quem lê Maria Judite de
Carvalho antevê um pouco daquilo que foi a sua vida. Com este documentário,
mergulhamos no seu percurso e esperamos que nos possa dar algumas pistas para
desvendar os silêncios de uma das maiores escritoras portuguesas
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