sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

A Cidade da Confusão

Para além do «ser ou não ser» dos problemas ocos,
o que importa é isto:
- Penso nos outros.
Logo existo.

José Gomes Ferreira, Poeta Militante I


Rua do Benformoso, junto à praça do Martim Moniz, 19-12-2024
https://www.rtp.pt/noticias/pais/autarca-de-junta-indignado-com-operacao-policial-no-martim-moniz-pede-saida-da-ministra_n1622798

 

E assim João Sem Medo partiu para a singular Cidade da Confusão.

Os habitantes dessa cidade, como já sabem, andavam de pernas no ar, usavam gravatas na cintura, cintos no pescoço, galochas nas mãos e luvas nos pés. Os prédios em que moravam não dispunham de portas nem de janelas. Entrava-se e saía-se dos andares, através dos telhados, por intermédio de elevadores montados nas paredes exteriores das fachadas. Outra particularidade a distinguia das demais cidades: apresentava diariamente um aspeto panorâmico novo, porque não possuía ruas fixas. Na verdade a Lei obrigava os donos dos prédios a mudarem-nos todos os dias de orientação e de rua, segundo um plano de barafunda paranoica estabelecido por poetas surreal reformados. Para esse fim, e obedecendo a métodos de construção especiais, edificavam-nos sobre largas plataformas metálicas com rodas, para se deslocarem com mais facilidade. Mercê deste processo ideal, a confusão da Cidade atingia requintes impossíveis de ultrapassar porque os habitantes ignoravam onde moravam.

Em resumo: ninguém sabia a quantas andava. Os relógios não marcavam as horas, os minutos e os segundos, mas os séculos. Os governantes, os professores e o escol intelectual, cuidadosamente escolhidos entre as pessoas mais insignificantes da Cidade, pugnavam com denodo pela mumificação do Disparate de pernas para o ar. E ai daquele que não pronunciasse pelo menos dez asneiras por minuto. Ou não sujasse as grandes descobertas e empresas humanas (como a energia atómica ou os satélites, por exemplo) com teorias imbecis de amesquinhamento reles. Considerados moralmente mortos, os colegas tratavam logo de excluí-los, sem relutância nem remorsos, das respetivas Academias e Universidades.

Esta estupidez, preceituada como uma das mais galhardas manifestações da alma da Raça, cultivava-se desde a infância com esmeros maternais. As Escolas, onde os mestres se selecionavam não pela ciência demonstrada mas pela maneira de trajar e de fazer o nó na gravata, incumbiam-se de torcer os meninos até à incapacidade perfeita. Ensinavam-lhes de propósito coisas sem significação, palavras vazias, matérias inoperantes, ideias cadavéricas, sempre com mais de duzentos anos, pelo menos, e que, conservadas em álcool, graças ao seu desuso em cabeças vivas serviam para simulações de sistemas geniais recentes.

Também se chamavam ursos aos raros estudiosos. E, por severa determinação legal, só os incompetentes comprovados, com mais de 80% de erros ortográficos nas provas escritas e total inépcia para acertar nas contas de dividir, podiam ocupar os cargos cimeiros da Cidade da Confusão.

Por isso, ouviam-se com frequência frases elogiosas deste género: «Fulano é um idiota chapado! Está apto a solucionar todos os problemas, sobretudo os insolúveis! O Poeta Tal é um imbecil de génio!», etc., etc.

No meio desta trapalhada, em que tudo parecia desengonçar-se e fazer o pino, o pobre João Sem Medo esforçava-se por se manter imune ao contágio, repugnando-lhe aderir à lógica absurda de certos hábitos e cerimónias.

Assim, por exemplo: porque é que os confusionistas se sentavam sempre de costas voltadas para o palco a aplaudirem-se a si mesmos com delírio? (…) Porque mandavam para os museus os quadros maus? Porque frequentavam as praias de casaca e colarinhos de goma (consoante prescrevia a Lei), enquanto as mulheres passeavam pelas ruas com vestidos de noite e iam a bailes de fato de banho? (…)

As respostas a estas perguntas afiguravam-se tão precárias a João sem Medo que, certa manhã, receoso de ficar com a cabeça do avesso, decidiu meter-se no primeiro comboio (mesmo com asas) e safar-se da Cidade da Confusão.

Mas neste entrementes, ao virar a última esquina antes da estação, esbarrou com um indivíduo inquietante. Nada menos, nada mais do que um homem com os pés no chão, as mãos no ar, chapéu na cabeça, gravata em redor do pescoço, cinto na cintura e sapatos nos pés.

Caíram nos braços um do outro como velhos amigos.

— Até que enfim que encontro uma pessoa de juízo, um tipo normal — gritou João Sem Medo eufórico.— Já tinha saudades, palavra.

— E eu, então?... Ah!, quem me dera ter nascido na tua terra — queixou- -se o pobre homem.

— Porquê?

— Porque nesta cidade ninguém me entende… Porque choro quando sofro e rio quando me alegro. Porque digo «boas-tardes» de tarde e «bons-dias» de manhã. Porque não tomo banho vestido. Porque acendo a luz elétrica de noite, etc. — Isso prova apenas que tens a cabeça no lugar próprio — consolou-o João Sem Medo. — Pois é… Mas julgas que alguém acredita em mim? Qual! Todos os dias publico artigos de propaganda no meu jornal clandestino: Mãos no Ar. Pois parece que ninguém os lê. Até hoje, na Cidade da Confusão só consegui arranjar cinquenta adeptos da minha doutrina. (…) As autoridades acusam-me de traidor, calcula. Dizem que quero destruir as tradições da Raça. Fundaram até um jornal de propósito para me refutarem: O Coice. Segundo eles, a posição de mãos no chão e pés no ar é puramente espiritual… Um coice nas estrelas… Um coice para as Alturas…

Não pôde prosseguir. Num burburinho súbito, meia dúzia de homens saltaram dum automóvel aéreo e, com a rapidez petulante dos profissionais de dominar homens, enfiaram-lhe uma camisa de forças, impuseram-lhe uma mordaça e, a pontamãos (comparáveis em violência aos nossos pontapés), arrastaram o desgraçado para o carro.

— Pelo que vejo o senhor é estrangeiro! — observava entretanto um dos assaltantes, dirigindo-se a João Sem Medo.

— E com muito prazer.

— Desculpe o acidente — resmoneou o outro. — Mas o senhor estava a falar com um doido perigoso, fugido do manicómio.

— Um doido?... Devem estar enganados… Pareceu-me inteiramente normal!... Contou-me que era diretor dum periódico…

— Mentira! — interveio outro dos assaltantes (enfermeiro? polícia?) com os olhos cheios de lágrimas de riso. — É um pobre doido com a mania de nos querer obrigar a trazer os pés no chão. Como se isso fosse possível!

— É verdade!... Como se isso fosse possível! – repetiram todos em coro, a chorar às gargalhadas.

Então, João Sem Medo tapou os ouvidos e desarvorou para a estação de caminho de ferro mais próxima.

 

José Gomes Ferreira, “Capítulo VII - A Cidade da Confusão” in Aventuras de João Sem Medo. Lisboa: Dom Quixote, 2012, pp. 70-74

 


Aventuras de João Sem Medo é um livro constituído por 15 capítulos, nos quais se descrevem as aventuras que João viveu, após saltar o Muro que separava Chora-Que-Logo-Bebes, onde vivia, e a Floresta Branca.

Escreve um texto expositivo em que apresentes as linhas fundamentais da leitura do capítulo VII, “A Cidade da Confusão”, do livro Aventuras de João Sem Medo. O teu texto deve incluir uma parte introdutória, uma parte de desenvolvimento e uma parte de conclusão, respeitando os seguintes pontos.

• Explicitação do significado da expressão “singular Cidade da Confusão”.

• Referência ao que está incluído na expressão “Esta estupidez”.

• Indicação do que é normalidade e loucura para João Sem Medo, para os assaltantes e para o homem que é levado numa camisa-de-força.

• Explicitação das razões que levaram à escolha do título Mãos no Ar para o periódico.

• Explicitação da intenção da existência do jornal O Coice.

• Razões para a fuga de João Sem Medo para a estação.

(Fonte: Letras & Companhia. Português 9.º Ano. Carla Marques e Inês Silva. Edições Asa, 2013, pág. 227)



quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Do meu país, Eduardo White


 

DO MEU PAÍS

Do meu país. Do país que eu amo, do país que eu temo,
do país que sangro para comer no pão, do país que quero,
do país que doo, do país que amasso como se fosse chão,
do país que tenho, do país que guardo, do país que sonho
como se o lesse na mão, do país que espero, cigarro etéreo,
do país que a minha vida inteira respirou, do país que
lavro, do país que rasgo, do país que a poesia me chorou,
do país com carne, do país com veias, do país que é onde
o sol se deitou, do país que fosse o país que é o país onde
o futuro abalroou, do país do amor, do país dos outros,
do país que é também tudo o que sou, do país chegado,
do país sem barcos, do país que à minha janela me levou.

 

Eduardo White, Até amanhã, coração. Maputo, Imprensa Universitária, 2005


sábado, 14 de dezembro de 2024

Salgueiro Maia

 


SALGUEIRO MAIA

Aquele que na hora da vitória
Respeitou o vencido

Aquele que deu tudo e não pediu a paga

Aquele que na hora da ganância
Perdeu o apetite

Aquele que amou os outros e por isso
Não colaborou com sua ignorância ou vício

Aquele que foi «Fiel à palavra dada à ideia tida»
Como antes dele mas também por ele
Pessoa disse

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Musa, 1.ª ed., 1994, Lisboa, Editorial Caminho • 2.ª ed., 1995, Lisboa, Editorial Caminho • 3.ª ed., 1997, Lisboa, Editorial Caminho • 4 ed., 2001, Lisboa, Editorial Caminho • 5.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho.

 



SALGUEIRO MAIA

Ficaste na pureza inicial
do gesto que liberta e se desprende.
Havia em ti o símbolo e o sinal
havia em ti o herói que não se rende.

Outros jogaram o jogo viciado
para ti nem poder nem sua regra.
Conquistador do sonho inconquistado
havia em ti o herói que não se integra.

Por isso ficarás como quem vem
dar outro rosto ao rosto da cidade.
Diz-se o teu nome e sais de Santarém
trazendo a espada e a flor da liberdade.

“Salgueiro Maia”, Manuel Alegre, 04-04-2012. Disponível em: https://manuelalegre.com/301000/1/002731,000014/index.htm



Os poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen e Manuel Alegre, dedicados a Salgueiro Maia, oferecem duas perspetivas distintas, mas complementares, sobre a figura do Capitão de Abril. Ambos os autores destacam a integridade, a abnegação e o papel crucial de Salgueiro Maia na Revolução dos Cravos, mas com nuances que enriquecem a nossa compreensão do herói.

"Salgueiro Maia" de Sophia de Mello Breyner Andresen:

Este poema foca-se na dimensão ética e moral de Salgueiro Maia. Através de uma estrutura anafórica ("Aquele que..."), Sophia constrói um retrato idealizado do homem justo e virtuoso. Destacam-se os seguintes aspetos:

  • Respeito pelo vencido: Sublinha a nobreza de caráter de Salgueiro Maia, que mesmo na vitória não humilhou ou explorou o adversário. Este traço humanista é fundamental para compreendermos o espírito do 25 de Abril, que se pretendia pacífico e reconciliador.
  • Abnegação e desinteresse: O verso "Aquele que deu tudo e não pediu a paga" enfatiza o altruísmo de Salgueiro Maia, que agiu movido por ideais e não por ambição pessoal. Esta característica contrasta com a postura de outros atores políticos que, após a Revolução, procuraram proveitos e vantagens.
  • Resistência à ganância e à corrupção: Sophia destaca a integridade de Salgueiro Maia, que se manteve imune às tentações do poder e da riqueza. Esta postura é particularmente relevante no contexto pós-revolucionário, marcado por tensões e disputas políticas.
  • Fidelidade aos princípios: A citação de Fernando Pessoa ("Fiel à palavra dada à ideia tida") reforça a ideia de coerência e retidão moral que pautou a vida de Salgueiro Maia. Esta referência intertextual estabelece uma ligação entre o herói de Abril e a tradição da poesia portuguesa, elevando a sua figura a um patamar simbólico.

O poema de Sophia é, assim, um elogio à virtude e à integridade, personificadas em Salgueiro Maia. A linguagem é concisa e direta, com um ritmo marcado pela repetição anafórica, que confere solenidade e força expressiva ao poema.

"Salgueiro Maia" de Manuel Alegre:

Este poema assume um tom mais épico e celebratório, enfatizando o papel de Salgueiro Maia como líder e símbolo da liberdade. Destacam-se os seguintes aspetos:

  • Pureza do gesto libertador: Alegre evoca a imagem de um gesto inaugural e puro, que marca o início de uma nova era para Portugal. A palavra "desprende" sugere um ato de libertação não apenas do regime ditatorial, mas também das amarras do passado.
  • Figura heroica e idealizada: Salgueiro Maia é apresentado como um herói que "não se rende" e que "não se integra" nos jogos políticos do poder. Esta imagem idealizada reforça o seu estatuto de símbolo da resistência e da integridade.
  • Conquista do sonho da liberdade: O verso "Conquistador do sonho inconquistado" sublinha a dimensão utópica da Revolução dos Cravos, que procurava construir uma sociedade mais justa e livre. Salgueiro Maia surge como o líder que concretiza esse sonho.
  • Ligação à cidade e à memória coletiva: A referência a Santarém, de onde partiu a coluna militar liderada por Salgueiro Maia, e a imagem da "espada e a flor da liberdade" criam uma forte ligação entre o herói, o território e os valores da Revolução. O poema termina com uma nota de esperança e renovação, sugerindo que o nome de Salgueiro Maia continuará a inspirar as gerações futuras.

O poema de Alegre é, assim, uma ode à liberdade e ao heroísmo, com uma linguagem mais rica em imagens e metáforas. O ritmo é mais fluido e narrativo, evocando a marcha vitoriosa de Salgueiro Maia rumo a Lisboa.

Em suma, ambos os poemas celebram a figura ímpar de Salgueiro Maia, destacando a sua integridade, coragem e papel fundamental na história de Portugal. Enquanto Sophia enfatiza a dimensão ética e moral do homem, Alegre foca-se no seu papel como líder e símbolo da liberdade. A leitura conjunta dos dois poemas oferece-nos um retrato multifacetado e enriquecedor de um dos maiores heróis da democracia portuguesa.

 

Gemini 2.0 Flash Experimental (Modelo de Linguagem). (2024). Resposta à pergunta sobre recensão literária dos poemas sobre Salgueiro Maia. Data da consulta: 14-12-2024. Disponível em: https://gemini.google.com/app/33d40e789b812a69?utm_source=app_launcher&utm_medium=owned&utm_campaign=base_all

terça-feira, 30 de julho de 2024

Meu coração é como um peixe cego, Vitorino Nemésio

 

Obra artística de Vitorino Nemésio construída
na Escola Secundária Vitorino Nemésio, 2018






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Meu coração é como um peixe cego,
Só o calor das águas o orienta,
E por isso me arrasta aonde me nego;
De puros impossíveis me sustenta.

O que eu tenho sentido é mais que mar;
Em força e azul, cinco oceanos soma:
Mas ainda há a tristeza a carregar
E as coisas que só pesam pelo aroma.

Há o país da espera e dos sinais,
Se feitos, apagados na neblina,
E a terra de tudo e muito mais,
Onde a minha alma é quase uma menina.

Sentada no jardim de nunca, a triste!
Se vale a pena em flor, essa ainda rego.
Tudo o mais – nem me agrava, nem existe:
Árida1 distração, lânguido2 apego.


Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste, 1940

_______

Notas: 1. árida: estéril, seca, pobre. 2. lânguido: que não tem forças, abatido, fraco.

 

QUESTIONÁRIO

De acordo com a leitura do poema, classifica cada afirmação que se segue como verdadeira ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas. 

1. O poema apresenta um esquema rimático fixo, com rima cruzada em todas as estrofes.

2. A comparação “Meu coração é como um peixe cego” (v. 1) sugere a desorientação do sujeito poético, que se sente perdido e sem direção.

3. A expressão “puros impossíveis” (v. 4) sugere que o sujeito poético se alimenta de esperanças realizáveis.

4. O sujeito poético sente que os seus sentimentos são comparáveis a um pequeno lago.

5. O poema utiliza a conjunção “Mas”, no verso 7, para introduzir a alegria e satisfação do sujeito poético.

6. A conjunção “Mas” no verso 7 indica que, apesar da vastidão dos seus sentimentos, a tristeza é uma presença constante.

7. O “país da espera e dos sinais” (v. 9) representa um lugar de certeza e realização.

8. A terceira estrofe refere-se a sinais claros e visíveis que guiam o sujeito poético.

9. A metáfora da alma “quase uma menina” (v. 12) indica a vulnerabilidade e a pureza do sujeito poético, que se sente exposto e frágil no meio das suas emoções.

10. O sujeito poético sente-se indiferente em relação a tudo, exceto às suas esperanças frágeis, conforme descrito na última estrofe.

11. A imagem do “jardim de nunca” (v. 13) na última estrofe simboliza um lugar de realizações e conquistas.

12. A expressão “árida distração, lânguido apego” (v. 16) sugere que a maior parte da vida do sujeito poético é estéril e sem vitalidade.

13. O uso do ponto de exclamação na última estrofe reforça a intensidade emocional do sujeito poético.

 

Respostas:

1. Verdadeiro.

2. Verdadeiro.

3. Falso. A expressão “puros impossíveis” indica que o sujeito poético se sustenta de sonhos e idealizações que não podem ser alcançadas, destacando a sua tendência para se nutrir de ilusões.

4. Falso. O sujeito poético utiliza a hipérbole para expressar a intensidade dos seus sentimentos, comparando-os a “cinco oceanos” em força e azul.

5. Falso. A conjunção “Mas” é utilizada para introduzir a tristeza como parte das emoções do sujeito poético, contrastando com a imensidão de sentimentos descritos antes.

6. Verdadeiro.

7. Falso. O “país da espera e dos sinais” representa um lugar de incerteza e expectativa, onde os sinais são “apagados na neblina”.

8. Falso. Na terceira estrofe, os sinais são descritos como “apagados na neblina”, sugerindo falta de clareza e orientação.

9. Verdadeiro.

10. Verdadeiro.

11. Falso. O “jardim de nunca” simboliza a eterna espera e a impossibilidade de concretização, um lugar onde os desejos e esperanças do sujeito poético nunca se realizam.

12. Verdadeiro.

13. Verdadeiro.

 


segunda-feira, 29 de julho de 2024

Dança do Vento, Afonso Lopes Vieira

 



DANÇA DO VENTO

Cruel vento, cruel vento,
ah!, roubador maioral!

Romanceiro

O vento é bom bailador,
baila, baila e assobia,
baila, baila e rodopia
e tudo baila em redor!

E diz às flores, bailando:
— Bailai comigo, bailai!
E elas, curvadas, arfando,
começam, débeis, bailando,
e suas folhas, tombando,
uma se esfolha, outra cai,
e o vento as deixa, abalando,
— e lá vai!...

O vento é bom bailador,
baila, baila e assobia,
baila, baila e rodopia
e tudo baila em redor!

E diz às altas ramadas:
— Bailai comigo, bailai!
E elas sentem-se agarradas,
bailam no ar desgrenhadas,
bailam com ele assustadas,
já cansadas, suspirando,
e o vento as deixa, abalando,
— e lá vai!...

O vento é bom bailador,
baila, baila e assobia,
baila, baila e rodopia
e tudo baila em redor!

E diz às folhas caídas:
— Bailai comigo, bailai!
No quieto chão remexidas,
as folhas, por ele erguidas,
pobres velhas ressequidas
e pendidas como um ai,
bailam, doidas e chorando,
e o vento as deixa abalando,
— e lá vai!...

O vento é bom bailador,
baila, baila e assobia,
baila, baila e rodopia
e tudo baila em redor!

E diz às ondas que rolam:
— Bailai comigo, bailai!
E as ondas no ar se empolam,
em seus braços nus o enrolam,
e batalham,
e seus cabelos se espalham
nas mãos do vento, flutuando,
e o vento as deixa, abalando,
— e lá vai!...

O vento é bom bailador,
baila, baila e assobia,
baila, baila e rodopia
e tudo baila em redor!

E diz à chuva caindo:
— Bailai comigo, bailai!
E ao de ela seu corpo unindo,
beija-a na boca, sentindo
que ela o abraça sorrindo
e desmaia, volteando,
e já verga ao beijo, e cai,
e o vento a deixa, abalando,
— e lá vai!...

 

Afonso Lopes Vieira, Canções do Vento e do Sol. Lisboa, Typ. «A Editora», [1911]. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7894

 

Typ. «A Editora», [1911]


De acordo com a leitura do poema “Dança do Vento”, de Afonso Lopes Vieira (1878-1946), classifica cada afirmação que se segue como verdadeira ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas. 

1. O poema "Dança do Vento" retrata o vento como um elemento estático da natureza.

2. O vento é descrito como uma força destrutiva e violenta sem qualquer beleza ou graça.

3. O vento é personificado como um bailarino incansável.

4. No poema, as flores, ramadas, folhas, ondas e chuva são personificadas.

5. A repetição de frases e estruturas no poema cria um efeito de monotonia e estagnação.

6. A palavra “baila” é repetida várias vezes no poema, criando um ritmo dançante.

7. O poema sugere que o vento apenas causa destruição e não possui qualquer aspeto positivo.

8. As folhas caídas são descritas como envelhecidas, secas e inclinadas como um suspiro.

9. A personificação do vento cria uma ligação emocional entre o leitor e os elementos naturais descritos.

10. O poema termina cada estrofe com a imagem do vento a afastar-se, sugerindo um ciclo contínuo.

11. Cada estrofe termina com a frase "— e lá vai!...", sugerindo um ciclo contínuo de movimento.

12. O poema inclui um diálogo direto do vento com os elementos da natureza.

13. A dualidade entre a beleza e a crueldade do vento é uma temática presente no poema, ecoando a epígrafe que menciona o vento como "cruel" e "roubador maioral".

14. O vento simboliza a estabilidade e permanência da vida.

 

Respostas:

1. Falso. O poema retrata o vento como um elemento dinâmico - O título “Dança do Vento” sugere movimento e ritmo.

2. Falso. O vento é descrito como um "bom bailador" que se move com graça e leveza.

3. Verdadeiro.

4. Verdadeiro.

5. Falso. A repetição cria um efeito cumulativo que enfatiza a persistência e a presença constante do vento.

6. Verdadeiro.

7. Falso. Embora o vento cause algum impacto negativo, ele é também retratado de forma encantadora e graciosa.

8. Verdadeiro (As folhas caídas são descritas como “pobres velhas ressequidas e pendidas como um ai.”)

9. Verdadeiro.

10. Verdadeiro.

12. Verdadeiro.

12. Verdadeiro.

13. Verdadeiro

14. Falso. O vento simboliza a mudança constante e a efemeridade da vida.

 


domingo, 28 de julho de 2024

A rainha de Kachmir, Gomes Leal

 



A RAINHA DE KACHMIR

O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir1
Era a diamantes bordado,
Como luar num terrado2!...
Parecia o céu estrelado
Ou a visão de um faquir3
O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir.

Se é a Via Láctea, em suma,
Não há olhar que destrince4!...
Nenhuma vista, nenhum
Jurará se é neve ou pluma,
Se é leite, ou astro, ou espuma,
Nem o próprio olhar do Lince...
Se é a Via Láctea, em suma,
Não há olhar que destrince!

Levava, nas mãos patrícias5,
Leque de rendas e sândalo6...
Oh! que mãozinhas... delícias
Para amimar com blandícias,
Para beijar com carícias,
Que adorariam um Vândalo...
Levava, nas mãos patrícias,
Leque de rendas e sândalo.

Cor da lua, os sapatinhos
Eram mais subtis que o leque!...
Seu manto, púrpura7 e arminhos8,
Não rojava9 nos caminhos,
Pois sua cauda, aos saltinhos,
Levava-a um núbio muleque10.
Cor da lua, os sapatinhos
Eram mais subtis que o leque!

Eis que, no meio da boda,
Entrou um moço estrangeiro...
Calou-se a alegria doida
Da grande assembleia, em roda!
E a brilhante sala toda
Fitou o jovem romeiro.
Eis que, no meio da boda,
Entrou um moço estrangeiro...

Pegou no copo, com graça,
E brindou, em língua estranha...
E a rainha, a vista baça,
Como a um punhal que a trespassa,
Encheu de prantos a taça,
E o seu lenço de Bretanha...
Chorou baixinho, ao ouvir, com graça,
Esse brinde, em língua estranha!

Encheu de pranto o vestido,
Encheu de pranto os anéis...
E, sem soltar um gemido,
Chorou, num pranto sumido,
O seu passado perdido,
Os seus amores tão fiéis!...
Encheu de pranto o vestido,
Encheu de pranto os anéis.

Quem era o moço viajante
Que fez turbar11 a rainha?...
Era o seu primeiro amante,
Tão leal e tão constante,
Que, do seu reino distante,
Brindar ao Passado vinha...
Tal era o moço viajante,
Que fez turbar a rainha.

Saudades de amor quebrado
Fazem lágrimas cair!
Por um brinde ao amor passado,
Ficou de pranto alagado
O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir.
Saudades de amor quebrado
Fazem lágrimas cair!...

 

Gomes Leal (1848-1921)

 

____________

Notas: 1. Região da Índia. 2. Terraço, terreno. 3. Asceta indiano. 4. Desvende. 5. Nobres. 6. Madeira perfumada. 7. Tecido vermelho usado pelos nobres. 8. Pele branca e rara. 9. Arrastava. 10. Rapaz africano (da Núbia, Norte do Sudão). 11. Perturbar.

 

Leitura

O poema "A Rainha de Kachmir" é um texto lírico de Gomes Leal, um poeta português do século XIX e início do século XX, cujo estilo é marcado pelo simbolismo e pelo romantismo tardio.

Desde o início, o poema destaca a opulência e a beleza do vestido de noivado da rainha de Kachmir, bordado com diamantes, comparado a "luar num terrado" e ao "céu estrelado". Essa imagem estabelece um contraste entre a riqueza material e a fragilidade emocional que será explorada posteriormente. As descrições detalhadas dos acessórios e do vestuário da rainha - leque de rendas e sândalo, manto de púrpura e arminhos, sapatinhos de cor da lua - sublinham a estética visual, criando um cenário de grande esplendor e requinte. A repetição de frases e palavras-chave, como "O vestido de noivado" e "Levava, nas mãos patrícias", cria um efeito hipnótico e sublinha a importância desses elementos no contexto do poema. A repetição serve também para enfatizar a constante presença do passado e da dor emocional, que persiste apesar das circunstâncias presentes.

O clímax emocional do poema ocorre com a entrada do "moço estrangeiro", que interrompe a celebração da boda. Essa personagem, revelada posteriormente como o primeiro amante da rainha, simboliza o retorno de um passado não resolvido. A reação da rainha, descrita com detalhes sensíveis como "a vista baça" e o pranto que enche "a taça" e "os anéis", sugere uma dor profunda e um conflito interno entre o dever presente e os sentimentos passados.

A saudade é um tema central no poema, manifestada através do pranto da rainha que "encheu de pranto o vestido" e os "anéis". A presença do antigo amante reaviva memórias de um amor perdido, contrastando com a opulência do presente. O poema enfatiza que mesmo os bens materiais mais preciosos não podem suprimir a dor de uma perda emocional. O último verso, "Saudades de amor quebrado / Fazem lágrimas cair!", contém a essência melancólica do poema, refletindo a inevitabilidade do sofrimento amoroso.

 


sábado, 27 de julho de 2024

Pastoral, António Gedeão


 

PASTORAL

Não há, não,
duas folhas iguais em toda a criação.

Ou nervura a menos, ou célula a mais,
não há, de certeza, duas folhas iguais.

Limbo todas têm,
que é próprio das folhas;
pecíolo algumas;
bainha nem todas.
Umas são fendidas,
crenadas, lobadas,
inteiras, partidas,
singelas, dobradas.
Outras acerosas,
redondas, agudas,
macias, viscosas,
fibrosas, carnudas.
Nas formas presentes,
nos atos distantes,
mesmo semelhantes
são sempre diferentes.

Umas vão e caem no charco cinzento,
e lançam apelos nas ondas que fazem;
outras vão e jazem
sem mais movimento.
Mas outras não jazem,
nem caem, nem gritam,
apenas volitam
nas dobras do vento.

É dessas que eu sou.

 

António Gedeão, Teatro do mundo. Coimbra: Oficinas da Atlântida, 1958

 

Sobre o poema

António Gedeão começa por constatar que não há duas folhas iguais em todo o Universo, aludindo desta forma à grande diversidade biológica que também nelas se manifesta. Mesmo naquelas que parecem ser iguais, há com certeza uma diferença: é o que o poeta pretende dizer quando afirma “ou nervura a menos, ou célula a mais, não há, de certeza, duas folhas iguais”.

Depois passa à descrição da morfologia da folha e à sua classificação quanto ao recorte da margem, à forma da folha e à consistência. Na quadra seguinte reafirma que, apesar de as folhas poderem ser classificadas e separadas, mesmo entre aquelas que têm mesma forma − “semelhantes”− há sempre diferenças que as tornam únicas.

António Gedeão revela neste poema um bom conhecimento da morfologia e classificação botânica das folhas, mas comete um lapso comum ao afirmar que todas as folhas têm limbo. Embora seja verdade para a maioria, há algumas exceções, como por exemplo, as folhas da acácia.

Recorda que as folhas podem cair e …”jazem sem movimento”, referindose às folhas caducas, e às outras que “nem jazem, nem caem” as folhas perenes.

Por fim classificase a si próprio como pertencendo ao grupo das folhas que “não jazem, nem caem, nem gritam, apenas volitam nas dobras do vento”, isto é, como uma pessoa resistente e com personalidade.

 

Maria Cristina Gusmão Pinheiro, Ciência em poetas portugueses do século XX:

implicações na comunicação da Ciência. Universidade de Aveiro, 2007

 

Classificação das folhas quanto à constituição


De acordo com a leitura do poema “Pastoral”, de António Gedeão, classifica cada afirmação que se segue como verdadeira ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas.

1. O poema “Pastoral” celebra a diversidade e singularidade das folhas.

2. O poema destaca que não há duas folhas iguais em toda a criação e enfatiza a individualidade de cada ser.

3. O poema sugere que todas as folhas possuem limbo sem exceção.

4. No poema sugere-se que todas as folhas têm bainha.

5. As folhas que "jazem sem movimento" no poema referem-se às folhas perenes.

6. A enumeração é uma técnica estilística presente no poema, especialmente na descrição das diferentes formas das folhas.

7. As folhas mencionadas no poema representam apenas características botânicas, sem nenhuma alegoria para a condição humana.

8. As folhas que “não jazem, nem caem, nem gritam” representam a efemeridade da vida.

9. O poema sugere que as folhas que "volitam nas dobras do vento" são um símbolo de resignação e derrota.

10. O sujeito poético descreve folhas que se adaptam e resistem, comparando-as à sua própria personalidade.

 

Respostas:

1. Verdadeiro

2. Verdadeiro

3. Verdadeiro. Embora Gedeão escreva isso no poema, na realidade, há exceções como mencionado na análise de Maria Cristina Gusmão Pinheiro.

4. Falso. Afirma-se que "bainha nem todas," indicando que nem todas as folhas possuem bainha.

5. Falso. No poema, as folhas que "jazem sem movimento" referem-se às folhas caducas, que caem e ficam imóveis.

6. Verdadeiro.

7. Falso. As folhas simbolizam também diferentes formas de existência e individualidade humana.

8. Falso. Essas folhas simbolizam a resistência e a persistência diante das adversidades.

9. Falso. Estas folhas simbolizam resiliência e a capacidade de adaptação, qualidades com as quais o sujeito poético se identifica.

10. Verdadeiro.