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segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Pessoa, leitor de Horácio

foto da biblioteca de Pessoa, na Casa Fernando Pessoa. 
Horácio ao lado de Homero

 

Quem lê Horácio recebe o seu lugar na comunidade das mentes mais argutas do passado, que encontraram neste poeta um estímulo da inteligência. Quando Camões escreveu a ode «Fogem as neves frias» ou a expressão estapafúrdia «Acroceráunios infamados» (ver Lusíadas 6.82), quis mostrar ao leitor que leu Horácio; talvez que tinha inteligência mais do que suficiente para entender Horácio. No âmbito restrito dos Estudos Clássicos, ainda hoje pasmamos com o rol ilustre de nomes que quiseram dedicar ao estudo de Horácio o melhor das suas capacidades intelectuais. Seria possível citar muitos nomes ingleses, alemães, italianos, americanos, etc. Mas vou só referir o nome de uma latinista de referência para mim, uma mulher extraordinária que assinou, em colaboração com o Professor Robin Nisbet, os melhores comentários alguma vez escritos à obra de Horácio: Margaret Hubbard, professora em Oxford (morreu em 2011, aos 86 anos), célebre pela sua inteligência cintilante, pelos três cigarros que fumava ao mesmo tempo (um na mão e dois acesos no cinzeiro), pelo gosto com que bebia quantidades valentes de vinho branco sem que lhe se notasse a mínima alteração; e namorada, em determinada fase da sua vida, da filósofa e escritora Iris Murdoch.

Outro obcecado por cigarros e por Horácio foi Fernando Pessoa, o homem que obrigou o mundo a rever a definição da palavra «génio». Quem visitar a Casa Fernando Pessoa, vê na biblioteca particular do autor a edição parisiense de Horácio, preparada por F. Plessis e P. Lejay (na edição de 1911, segundo o catálogo da biblioteca). Este livro existe também em várias bibliotecas da Universidade de Coimbra. Mas não pode ter sido a única edição de Horácio consultada por Pessoa, porque a edição de Plessis e Lejay omite alguns poemas que, já nos séculos XVI e XVII, eram considerados escandalosos. Um deles é a Ode 1 do Livro 4, em que Horácio se declara apaixonado: não por Lídia, Cloe ou Neera, mas sim por um jovem chamado Ligurino. Um manuscrito conservado no espólio de Fernando Pessoa mostra que Pessoa escolheu justamente esta ode para uma tentativa de tradução do latim para português. Assim, é certo que, além da edição que se encontra hoje na Casa Fernando Pessoa, o criador dos heterónimos consultou também Horácio noutras edições (remeto para o artigo de Luiz Fagundes Duarte, na revista Euphrosyne 1993, pp. 203-216).

Pessoa sabia latim, mas traduziu apenas o princípio da ode horaciana sobre Ligurino. Aliás, fez várias versões dos versos iniciais; e depois desistiu. Fez o mesmo com o início da Arte Poética. Talvez ele tenha sentido aquilo que eu próprio muitas vezes tenho sentido: como é difícil (ou mesmo impossível) transpor para a tradução a beleza das palavras em latim. É a frustração com esse problema que me tem impelido a fazer edições bilíngues de Vergílio e de Horácio: para que, ao menos, o texto latino esteja debaixo dos olhos dos leitores; e para que a tradução portuguesa tenha como objetivo primeiro constituir uma ajuda para a decifração do texto original.

Mas o que Pessoa (esse génio!) conseguiu com as Odes de Horácio foi um feito maior do que traduzi-las. Recriou-as. Fez renascer a voz de Horácio, 2000 anos após a morte do poeta romano. Na verdade, a poesia do heterónimo Ricardo Reis é uma recriação espantosa de Horácio. Sem que haja, porém, uma única citação literal do poeta romano! É como se a alma de Horácio tivesse reencarnado em Pessoa, tal como a de Homero teria reencarnado no poeta romano arcaico Énio (segundo testemunho do próprio Énio... presunção e água benta!). Reis não precisa de citar Horácio para ser Horácio. Aliás, quem cita Horácio literalmente não é Reis mas Álvaro de Campos, dando assim outro testemunho da obsessão de Pessoa por Horácio.

Leia-se o poema de Campos que começa com o verso recheado de palavras latinas «O mesmo "Teucro duce et auspice Teucro"». Campos está aqui a citar uma ode horaciana: em concreto, a Ode 7 do Livro 1. O segundo verso do poema de Campos dá-nos mais uma palavra em latim e mais uma alusão à mesma ode de Horácio: «É sempre "cras" - amanhã - que nos faremos ao mar». Este verso remete para o último da ode de Horácio: «Amanhã araremos de novo o mar enorme». E a expressão de Campos «nada que desesperar...» traduz o latim «nil desperandum» da ode horaciana.

Ricardo Reis não traduz, portanto, versos de Horácio. Transforma-se em Horácio. E escreve os poemas que Horácio poderia ter escrito se tivesse composto em português. Horácio escreveu quatro livros de Odes. Reis acrescentou mais um livro ao conjunto: um livro que destila a quintessência de Horácio e também interpreta e soluciona problemas famosos nas odes horacianas.

Um exemplo fascinante é a ode de Reis que começa com as palavras «Floresce em ti, ó magna terra, em cores / a vária primavera». Este poema de Ricardo Reis explica duas odes horacianas que têm causado perplexidade aos intérpretes, porque são dois poemas sobre a chegada da primavera em que, abruptamente, Horácio muda para o tema da morte (Ode 1.4; Ode 4.7). Reis explica a associação que Horácio fez entre a primavera e a morte: «Mas dorme em cada campo o outono dele. / O inverno cresce com as folhas verdes.» Ou seja: a morte está latente em cada nascimento.

É sabido que Fernando Pessoa quis de tal modo encarnar Horácio que andou às voltas com os problemas da métrica usada pelo poeta romano. No espólio de Pessoa, há testemunhos desse fascínio pela métrica latina, estudados pelo saudoso Fernando Lemos no seu livro «Fernando Pessoa e a Nova Métrica» (Lisboa, 1993). No entanto, não é na métrica de Horácio (impossível de reproduzir em português) que assenta o horacianismo de Ricardo Reis: é muito mais na dicção. A colocação das palavras nas frases lembra os hipérbatos da textura em «puzzle» das frases horacianas. Um exemplo expressivo é o poema de Reis que começa «As rosas amo dos jardins de Adónis, / Essas vólucres amo, Lídia, rosas». Na ordem direta, teríamos «Amo as rosas dos jardins de Adónis; amo essas rosas vólucres, Lídia».

Já agora: vólucres? Os especialistas de Pessoa discutem se o poeta escreveu «vólucres» ou «volúveis». Parece-me claro que Reis está a referir-se ao verso de Horácio «as flores demasiado breves da rosa amena» (Ode 2.3); e, de facto, Horácio usa o adjetivo latino «volucer» (cujo sentido é «alado», «rápido», «fugidio», «transitório»). Mas também usa «volubilis» uma vez nas Odes: curiosamente, é a última palavra da ode sobre a paixão por Ligurino.

E por falarmos em dúvidas quanto a uma palavra que Ricardo Reis escreveu: na única ode ricardiana em que Quinto Horácio Flaco é nomeado, será que o poeta português lhe chamou «louro Flaco» ou «louco Flaco»? As edições de Ricardo Reis são discrepantes: tanto lemos «louco Flaco» como «louro Flaco». Não há nada na poesia do próprio Horácio que nos leve a pensar que ele era louro: o que ele diz do seu cabelo é que ficou prematuramente grisalho (Epístolas 1.20.24). Mas no final da Arte Poética, fica claro que o poeta verdadeiro terá necessariamente um toque de loucura.

Dir-se-á que «louCo FlaCo» resulta numa aliteração inestética. Mas é bem horaciana. Veja-se o v. 22 da Arte Poética: «Currente rota Cur urCeus exit?» (em português: «enquanto a roda rodopia, porque sai um cântaro?»).

A dicção de Reis, com o seu puzzle de palavras, é parte integrante do prazer que nos é proporcionado pelos poemas de Ricardo Reis e de Horácio. Em 1973, Margaret Hubbard (certamente com três cigarros acesos e com um copo de vinho branco à sua frente) fez esta pergunta a respeito da poesia lírica horaciana: «what is the nature of the pleasure one feels or should feel in it?»

A resposta, quanto a mim, está na dicção: no puzzle de palavras e de sentidos; e também no desafio prazeroso que coloca à nossa inteligência. É um prazer que nos toma e domina, tal como o dos jogadores de xadrez de Ricardo Reis, que sentem o «inútil gozo / sob a sombra tranquila do arvoredo / de jogar um bom jogo».

Mas este gozo não é tão inútil assim: funciona, como os jogadores de xadrez bem sabiam, como amortecedor pessoal contra as tragédias do mundo. Na 2.ª Guerra Mundial, prisioneiros de guerra alemães e ingleses encontraram um prazer partilhado na poesia de Horácio (como conta Patrick Leigh Fermor - mas isso fica para outro post, pois este já vai longo).

Queremos uma síntese dos 7795 versos de Horácio? Ricardo Reis conseguiu fazê-la numa frase: «Quem quer pouco tem tudo; quem quer nada é livre».

 

Frederico Lourenço, Coimbra, 29/10/2023

“Pessoa, leitor de Horácio” disponível em https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco


quarta-feira, 26 de julho de 2023

Não digas nada, Fernando Pessoa


 

Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada!
Deixa esquecer.

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda esta viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não digas nada.

 

23-8-1934

Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990).  - 167.

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/460

 

Intertextualidade

 

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supôr o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor — muito melhor! —
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espêlho se vê.

Mário Cesariny Vasconcelos, 
O Virgem Negra, Assírio & Alvim, 1989

 

 

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.

In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)

e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Certo poeta intrometeu-se aqui?, Vergílio Ferreira

 


1977

7-Julho (quinta). Que é que importa o meu «inconsciente»? Que é que importam as forças que me determinam, se eu as assumo depois da liberdade? Que importa o «inconsciente», se eu tenho consciência dele? Ninguém fala do inconsciente do cão — já o disse algures. E sobretudo o cão não fala dele. É no podermos falar dele, do «inconsciente», que verdadeiramente o homem começa. Mas se aí começa, o «inconsciente» é só um valor a ter em conta como o corpo (em) que somos. E se o inconsciente pode ser conhecido, ele é menos que isso, porque é já consciência. Disse.

 

*

 

Que era a morte para um grego, um medievo? Xenofonte desvaloriza muito a coragem de Sócrates, ao contrário da legenda que se impôs. Sócrates, com efeito, estava velho, ou seja, tinha à frente um destino de degradação. Entre morrer logo e esperar pela morte num corpo em destruição, preferiu a morte imediata. E assim recusou que os amigos o salvassem. Mas um grego e um medievo ou um qualquer outro para quem a morte não era o nada total, o fim da vida não a punha em questão. O que há de trágico na vida não é o podermos explicá-la (mas ela ainda o não é): é não podermos dar-lhe uma significação. O crente à beira da morte tem uma vergôntea a que se agarrar para não morrer afogado; nós afogamo-nos mesmo. O crente só põe em questão o além; nós pomos o aquém. E como não temos «além», prolongamos o «aquém» para lá de o já não ser. No fundo ninguém pode imaginar a morte, porque o nada é inimaginável. Por isso o preenchemos com a vida que ainda temos para quando já a não tivermos. Toda a moral e ordem humana assentam aí — no inimaginável da morte. É pensando nos vivos para depois de mortos que não desatamos todos a fazer doidices. O nosso nada é o nosso ser pensado para quando não tivermos ser. O nosso nada é a nossa imaginação de vivos. O fundamento das crenças está na impensabilidade da morte, ou seja, da inexistência do nosso «eu».

 

*

 

Na tarde obscura de névoa
passam os carros na rua.
A minha vida levo-a
donde ela continua.
E todo o sonho que sou
frente à morte que me ameaça
é ser a vida que passa
e não a de quem passou.
 
Mas sou eu que vou passando
nos que vão passando ali,
enquanto a vida vai estando
nos que estão depois aqui.
 
Escuro da minha sorte!
Quem me dera ter na mão
a vida que chega à morte
e a que não.

 

Bom. Certo poeta intrometeu-se aqui? Talvez. Penso como e não sei. Talvez com o ritmo? Imaginemos então um ritmo diferente. Por exemplo:

 

Na tarde que se alonga em frio e névoa
ouço passar os carros pela rua.
A vida que me deram essa levo-a
donde ela no entanto continua.
 
E todo o sonho que eu agora sou
diante da morte que sinto me ameaça
é ser a própria vida que ali passa
e não a vida de quem lá passou.
 
Mas afinal sou eu que vou passando
em todos os que vão passando ali,
enquanto a vida mesma essa vai estando
nos que depois também estarão aqui.
 
Desce do céu escuro a minha sorte.
Ah, quem pudesse ter na sua mão
a Vida que termina com a morte
e a que não.

 

Versos piores? Talvez não. De qualquer modo, se sim, o pior deles será então o «enchimento» que procurei e que assim mesmo estará a mais. Mas não há dúvida que agora já dificilmente lembram o tal poeta. Aliás, a última estrofe, numa e noutra versão, nada tem dele, sobretudo pela redução silábica do último verso. De qualquer modo, ainda, é agradável de vez em quando jogar à poesia, como deve sê-lo pintar ao domingo. Aliás, sobretudo, o tal poeta foi muitas vezes particularmente um «jogador». Mas o seu mérito é que foi ele quem descobriu as regras do jogo. Admitamos, todavia, que ele persiste nas duas versões pelo «jogo» que persiste dele. Suponhamos então uma versão mais livre em que o especiosismo da finesse se dissolva. Por exemplo:

 

Sob o céu de cinza na tarde que escurece
ouço os carros que passam.

E em cada um vai a vida de quem vai
e eu com ele.
Mas todo o meu sonho se desdobra
entre quem passa, fechado em si, sendo ele
e os que (Interrompido.)

 

Vergílio Ferreira, 07/07/1977

Conta-Corrente (1977-1979) II. Lisboa, Bertrand Editora, 1990 (3.ª edição), pp. 66-69

 

quarta-feira, 3 de maio de 2023

A homossexualidade de Fernando Pessoa


 

A homossexualidade de Fernando Pessoa, Victor Correia

Edições Vieira da Silva, 2023


O objetivo deste livro é mostrar as formas variadas como a homossexualidade aparece tratada, implícita e explicitamente, na vasta obra de Fernando Pessoa. Por outro lado, baseando-nos na sua obra, em alguns pormenores da sua vida, em alguns textos de amigos mais próximos e conhecidos, e em alguns textos de investigadores, este livro mostra, através de uma investigação atenta e sem preconceitos, que Fernando Pessoa era homossexual.

Alguns autores e leitores, embora estando convictos disso, não lhe têm dado a devida importância. Ora, a homossexualidade de Fernando Pessoa não é algo secundário, mas sim fundamental, pois permite compreender melhor muito da obra de Fernando Pessoa, e o próprio Fernando Pessoa enquanto indivíduo. Apesar de ser homossexual, Fernando Pessoa reprimiu a sua homossexualidade, deixando nos seus escritos, muitos deles desconhecidos do grande público, determinados pormenores que aqui revelamos e explicamos.  Juntámos e relacionámos tudo como peças de um puzzle, e dividimos por diversos temas, de modo a uma compreensão mais pormenorizada e profunda.

No panorama editorial, tanto a nível nacional como internacional, não existe nenhum livro de análise específica sobre a homossexualidade de Fernando Pessoa, e portanto este é o primeiro livro que é publicado em todo o mundo, analisando exclusivamente este tema.

 

https://www.edicoesvieiradasilva.pt/livros/ensaio/ahomossexualidadedefernandopessoa

quinta-feira, 6 de abril de 2023

O olfato é uma vista estranha, Bernardo Soares

https://picsart.com/ (03-04-2023)

 

O olfato é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente. Tenho sentido isto muitas vezes. Passo numa rua. Não vejo nada, ou antes, olhando tudo, vejo como toda a gente vê. Sei que vou por uma rua e não sei que ela existe com lados feitos de casas diferentes e construídas por gente humana. Passo numa rua. De uma padaria sai um cheiro a pão que nauseia por doce no cheiro dele: e a minha infância ergue-se de determinado bairro distante, e outra padaria me surge daquele reino das fadas que é tudo que se nos morreu. Passo numa rua. Cheira de repente às frutas do tabuleiro inclinado da loja estreita; e a minha breve vida de campo, não sei já quando nem onde, tem árvores ao fim e sossego no meu coração, indiscutivelmente menino. Passo uma rua. Transtorna-me, sem que eu espere, um cheiro aos caixotes do caixoteiro: ó meu Cesário, apareces-me e eu sou enfim feliz porque regressei, pela recordação, à única verdade, que é a literatura.

Bernardo Soares, Livro do desassossego. Edição de Teresa Sobral Cunha disponível em: https://ldod.uc.pt/reading/fragment/Fr151/inter/Fr151_WIT_ED_CRIT_SC

 

***

Quando Bernardo Soares passa por uma rua, ele sente cheiros que evocam memórias da sua infância e de outras experiências passadas, levando a um "desenhar súbito do subconsciente".

O olfato é o único sentido que está diretamente conectado ao sistema límbico, a parte do cérebro responsável pelas emoções e memórias. Isso significa que os cheiros podem desencadear uma resposta emocional intensa e evocar lembranças antigas de forma vívida e realista.

Bernardo Soares utiliza a palavra "vista" de forma figurada para descrever o poder do olfato em evocar paisagens sentimentais de forma instantânea, como se a pessoa estivesse "vendo" essas paisagens na mente. Essa figura de linguagem também sugere a importância do olfato na perceção e na experiência sensorial do autor.

A referência feita por Bernardo Soares ao poeta Cesário Verde no excerto do Livro do Desassossego pode ser interpretada como uma homenagem à sua poesia visualista e realista. O autor menciona o poeta ao descrever a evocação de memórias pela fragrância dos caixotes do caixoteiro, sugerindo que a obra de Cesário Verde tem um poder semelhante de evocação e de conexão com a realidade sensorial. Aliás, Bernardo Soares, num dos fragmentos do Livro do Desassossego, sentiu-se a viver no tempo de Cesário e tendo em si «não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele».

Bernardo Soares termina o seu texto afirmando que a literatura é a única verdade na sua vida e é capaz de evocar sentimentos e emoções mais verdadeiros do que a própria realidade. O olfato, por sua vez, é mencionado como um gatilho para essas emoções e memórias, que são capturadas pela literatura. Portanto, a literatura é vista como uma forma de registar e preservar as experiências sensoriais, incluindo o olfato.

 

Intertextualidade: Crónica de José Tolentino Mendonça

«O olfato é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente. Tenho sentido isto muitas vezes», confessava Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego. Um odor é, de facto, suficiente para desfolhar as páginas de uma história íntima. Ele mobiliza a nossa subjetividade e a nossa memória. Tem uma longuíssima duração. Por vezes, tocados pela sugestão de um odor, os olhos alargam-se num perfeito sorriso ou alagam-se numa brusca emoção. Os odores permitem-nos viajar no tempo e dentro de nós. São um instrumento interno de rememoração. E a nossa memória é uma paleta de odores.

A dificuldade de narrar um odor (é impossível fazê-lo com precisão, apenas com o recurso a metáforas e comparações lá chegamos) está bem expressa no diálogo perfumado de ironia das Investigações Filosóficas, quando Wittgenstein1 pergunta: «Procuraste já descrever o aroma do café sem conseguir?»

Num ensaio sobre a antropologia do olfato, David Le Breton2 escreve que as sociedades ocidentais deixaram de valorizar os odores. E dá dois exemplos: na época de Dürer3, existiam na língua alemã mais de cento e cinquenta e oito palavras para designar cheiros diferentes. Dessas, apenas trinta e duas hoje subsistem, e frequentemente como formas dialetais muito localizadas. Pelo contrário, no mundo árabe-muçulmano, que mantém mais viva a sabedoria dos odores, há cerca de duzentos e cinquenta termos a ela relativos. E os odores fornecem metáforas para todos os domínios da vida, desde as imagens mais triviais às mais sofisticadas. Para lá, claro, de encherem habitualmente as casas e transbordarem agilmente pelas ruas.

Freud4 associa o recuo cultural dos odores ao progresso civilizacional das nossas sociedades. E diz que o olfato perdeu importância em favor da visão. O odor está demasiado próximo dos estádios primitivos, expõe excessivamente a individualidade, lembra que há uma corporeidade que não passa despercebida, como seria conveniente.

Passou-se a viver numa insegurança em relação às emanações do próprio corpo. A narrativa publicitária agudiza essa incerteza em nome da necessidade de vender desodorizantes e perfumes. Esforçamo-nos por esconder os odores naturais e levamos a cabo verdadeiras operações de recomposição das paisagens olfativas onde nos movemos. Cresce todo um comércio ligado ao olfato ambiental, com aromas para as várias divisões da casa e para o automóvel, líquidos que imitam o odor do pinheiro ou da lavanda, mesmo se os nossos estilos de vida nos distanciam cada vez mais da natureza. O nosso olfato capturado pelas diretivas do comércio torna-se mais controlado, mas também mais artificial.

José Tolentino Mendonça, Expresso, «Revista», 27-09-2014

(adaptado pelo IAVE– Instituto de Avaliação Educativa in Exame Final Nacional do Ensino Secundário n.º 639 - Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho. Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade, 2015, 1.ª Fase. Disponível em: https://iave.pt/wp-content/uploads/2020/04/EX-Port639-F1-2014-V1.pdf)

______________
1 Wittgenstein – filósofo (n. 1889 – f. 1951).
2 David Le Breton – antropólogo e sociólogo (n. 1953 –).
3 Dürer – artista plástico (n. 1471 – f. 1528).
4 Freud – médico neurologista, fundador da Psicanálise (n. 1856 – f. 1939).

 


CARREIRO, José. “O olfato é uma vista estranha, Bernardo Soares”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 06-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/o-olfato-e-uma-vista-estranha-bernardo.html


quarta-feira, 8 de março de 2023

Só o ter flores pela vista fora, Ricardo Reis

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Só o ter flores pela vista fora
Nas áleas1 largas dos jardins exatos
         Basta para podermos
         Achar a vida leve.

De todo o esforço seguremos quedas2
As mãos, brincando, pra que nos não tome
         Do pulso, e nos arraste.
         E vivamos assim,

Buscando o mínimo de dor ou gozo,
Bebendo a goles os instantes frescos,
         Translúcidos como água
         Em taças detalhadas,

Da vida pálida levando apenas
As rosas breves, os sorrisos vagos,
         E as rápidas carícias
         Dos instantes volúveis.

Pouco tão pouco pesará nos braços
Com que, exilados das supernas3 luzes,
         Scolhermos4 do que fomos
         O melhor pra lembrar

Quando, acabados pelas Parcas, formos,
Vultos solenes de repente antigos,
         E cada vez mais sombras,
         Ao encontro fatal

Do barco escuro no soturno rio,
E os nove abraços do horror estígio5,
         E o regaço insaciável
         Da pátria de Plutão7.

 

Ricardo Reis, Poesia, edição de Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, pp. 36-37

 

__________

1 áleas (verso 2) – caminhos ladeados de árvores ou arbustos.

2 quedas (verso 5) – quietas; imóveis.

3 supernas (verso 18) – supremas; superiores.

4 Scolhermos (verso 19) – escolhermos.

5 Parcas (verso 21) – três divindades da mitologia romana que representam o destino: uma preside ao nascimento, outra ao casamento e a terceira à morte.

5 estígio (verso 26) – relativo ao Estige, rio dos Infernos na mitologia grega.

7 Plutão (verso 28) – deus dos Infernos, na mitologia romana.

 

Apresente as suas respostas de forma bem estruturada.

1. Explicite três traços da filosofia de vida exposta nas quatro primeiras estrofes. Fundamente a resposta com transcrições pertinentes.

2. Justifique o recurso à primeira pessoa do plural ao longo do poema.

3. De acordo com o conteúdo das três últimas estrofes, explique o modo como o sujeito poético perspetiva a morte.

 

Cenários de resposta

1. Nas quatro primeiras estrofes, é exposta uma filosofia de vida que se caracteriza por:

– um gosto pela fruição estética da natureza – «Só o ter flores pela vista fora / Nas áleas largas dos jardins exatos / Basta para podermos / Achar a vida leve.» (vv. 1-4);

– uma escolha da serenidade, o que conduz a uma atitude contemplativa – «De todo o esforço seguremos quedas / As mãos, brincando, pra que nos não tome / Do pulso, e nos arraste.» (vv. 5-7);

– uma atitude epicurista, que valoriza o prazer moderado – «Buscando o mínimo de dor ou gozo, / Bebendo a goles os instantes frescos,» (vv. 9-10);

– uma consciência da brevidade da vida, que conduz ao desejo de fruição do momento presente (carpe diem) – «As rosas breves, os sorrisos vagos, / E as rápidas carícias» (vv. 14-15).

2. O sujeito poético expõe um conjunto de normas que devem ser seguidas por todas as pessoas de modo a facilitar a vida humana e a aligeirar a dor provocada pelo facto de a vida ser efémera.

Neste sentido, o uso da primeira pessoa do plural – que surge nas formas verbais «podermos» (v. 3), «seguremos» (v. 5), «vivamos» (v. 8), «escolhermos» (v. 19), «fomos» (v. 19), «formos» (v. 21) e no pronome pessoal «nos» (vv. 6 e 7) – decorre de uma atitude normativa (ou exortativa) assumida pelo sujeito poético, incluído nessa primeira pessoa do plural.

Nota – não é obrigatória a apresentação de exemplos do uso da primeira pessoa do plural, ainda que estes figurem, a título ilustrativo, no cenário de resposta.

3. O sujeito poético perspetiva a morte de acordo com a conceção própria da antiguidade clássica, evidente:

– na ideia de que a vida humana é comandada pelo Destino, ou pelas Parcas, e de que as almas atravessam o rio Estige e chegam aos Infernos, à «pátria de Plutão» (vv. 21-28);

– na aceitação da morte, momento a que se deve chegar sem apego a nada e apenas recordando o que foi agradável, para que o sofrimento não seja tão penoso – atitude estoica (vv. 17-20).

 

Fonte: Exame Final Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, IAVE-Instituto de Avaliação Educacional, I.P., 2016, 2.ª Fase

 

https://picsart.com/create/editor?category=photos&app=t2i&projectId=6404b73113798f0012d40a61 (05-03-2023)



Outro questionário sobre o poema “Só o ter flores pela vista fora”, de Ricardo Reis:

1. Centre a sua atenção na primeira parte do poema (da 1.ª à 4.ª estrofes).

1.1. Explicite a feição moralista/didática aí presente, apoiando a sua resposta em marcas textuais.

1.2. Prove que este momento textual encerra uma lição de vida epicurista.

2. Identifique o tempo verbal que o poeta privilegia na segunda parte do texto (da 5.ª à 7.ª estrofes), justificando o seu emprego.

3. “Quando, acabados pelas Parcas, formos,”.

     Aponte a figura de estilo presente nesta citação textual, referindo o seu valor expressivo.

4. Mostre que o texto contém elementos clássicos e mitológicos.

Ponta Delgada, Escola Secundária Domingos Rebelo, 2006


https://picsart.com/create/editor?category=photos&app=t2i&projectId=6404b73113798f0012d40a61 (05-03-2023)

 


Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.


terça-feira, 7 de março de 2023

Cada coisa a seu tempo tem seu tempo. (Ricardo Reis)

 







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Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
        Nem pela primavera
        Têm branco frio os campos.

À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
        Com mais sossego amemos
        A nossa incerta vida.

À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
        Não puxemos a voz
        Acima de um segredo,

E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
         (Não para mais nos serve
        A negra ida do sol).

Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
        Agora duas vezes
        Histórias, que nos falem

Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
        E sob uma outra espécie
        De olhar lançado ao mundo.

E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares1, ali na eternidade,
        Como quem compõe roupas
        O outrora componhamos

Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
        Naquilo que já fomos,
        E há só noite lá fora.

 

Ricardo Reis, Poesia, edição de Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000

 

_______

1 Deuses lares (verso 26) – deuses domésticos que protegem a habitação e a família.

 

Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Relacione o sentido do primeiro verso com as referências à Natureza presentes nos versos 2 a 4.

2. Refira as normas de vida expostas nos versos 5 a 24, fundamentando a sua resposta com referências textuais pertinentes.

3. Explicite os valores simbólicos do espaço e do tempo em que ocorrem as recordações do passado.

4. Explique o conteúdo das duas últimas estrofes enquanto conclusão do poema.

 

Cenários de resposta

1. No primeiro verso, o sujeito poético expõe a ideia de que tudo ocorre num contexto preciso, determinado pelo curso natural das coisas.

As referências à Natureza presentes nos versos 2 a 4 sustentam esta ideia, fornecendo exemplos concretos. Estes mostram que a cada estação do ano corresponde um ambiente específico: no inverno, há frio e neve e é na primavera que as árvores florescem.

2. De acordo com os versos 5 a 24, é importante:

– viver de forma moderada e tranquila – «Com mais sossego amemos / A nossa incerta vida.» (vv. 7 e 8);

– evitar todo o esforço inútil – «Não puxemos a voz / Acima de um segredo» (vv. 11 e 12);

– lembrar o passado de forma ligeira, despreocupada e breve – «E casuais, interrompidas sejam / Nossas palavras de reminiscência» (vv. 13 e 14);

– rememorar as histórias «que nos falem» (v. 20) da «infância» (v. 21).

3. As recordações do passado ocorrem:

– numa noite de inverno, que, metaforicamente, corresponde à velhice;

– à «hora dos cansaços» (v. 10), propícia à rememoração e ao diálogo calmo e íntimo;

– à «lareira» (vv. 9 e 25), espaço associado ao conforto e à proteção.

4. As duas últimas estrofes sintetizam as ideias apresentadas anteriormente. Reafirma-se que a passagem do tempo conduz inevitavelmente à noite da vida e à recordação do «outrora» (v. 28).

Chegado este momento, deve adotar-se uma atitude serena, semelhante à dos «Deuses lares» (v. 26), e rememorar o passado de modo a tornar a passagem do tempo aceitável e agradável no presente.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2013, 1.ª Fase

 


 

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