sexta-feira, 7 de março de 2014

AUTOGÉNESE (Natália Correia)


 
           
      
       AUTOGÉNESE
     

Nascitura estava

Esquema Rítmico: 5 (acentos na 3ª e 5ª)

sem faca nos dentes

E. R.: 5 (2-5)

cómoda e impura

E. R.: 5 (1-5)

de não ter vontade

E. R.: 5 (3-5)

de bater nas gentes.

E. R.: 5 (3-5)

                  

                    

Nasce-se em setúbal

E. R.: 5 (1-5)

nasce-se em pequim

E. R.: 5 (1-5)

eu sou dos açores

E. R.: 5 (5)

(relativamente

E. R.: 5 (5)

naquilo que tenho

E. R.: 5 (2-5)

de basalto e flores)

E. R.: 5 (3-5)

mas não é assim:

E. R.: 5 (3-5)

a gente só nasce

E. R.: 5 (2-4-5)

quando somos nós

E. R.: 5 (3-5)

que temos as dores;

E. R.: 5 (2-5)

                  

                  

pragas e castigos

E. R.: 5 (1-5)

foram-me gerando

E. R.: 5 (1-5)

por trás dos postigos

E. R.: 5 (2-5)

e fórceps de raiva

E. R.: 5 (2-5)

me arrancou toda

E. R.: 5 (3-5)

em sangue de mim.

E. R.: 5 (2-5)

                  

                  

Nascitura estava

E. R.: 5 (3-5)

sorria e jantava

E. R.: 5 (2-5)

e um beijo me deste

E. R.: 5 (2-5)

tu Pedro ou Silvestre

E. R.: 5 (2-5)

turvo namorado

E. R.: 5 (1-5)

do verão ou de outono

E. R.: 5 (3-5)

hibernal afeto

E. R.: 5 (3-5)

casca azul do sono

E. R.: 5 (1-3-5)

sem unhas do feto.

E. R.: 5 (2-5)

                  

                  

Eu nasci das balas

E. R.: 5 (3-5)

eu cresci das setas

E. R.: 5 (3-5)

que em prendas de sala

E. R.: 5 (2-5)

me foram jogando

E. R.: 5 (2-5)

as mulheres poetas

E. R.: 6 (3-6)

eu nasci dos seios

E. R.: 5 (3-5)

dores que me cresceram

E. R.: 6 (1-6)

pomos do ciúme

E. R.: 5 (1-5)

dos que os não morderam;

E. R.: 5 (3-5)

                  

                  

nasci de me verem

E. R.: 5 (2-5)

sempre de soslaio

E. R.: 5 (1-5)

de eu dizer em junho

E. R.: 5 (3-5)

e eles em maio

E. R.: 5 (2-5)

de ser como eles

E. R.: 5 (2-5)

às vezes por fora

E. R.: 5 (2-5)

mas nunca por dentro

E. R.: 5 (2-5)

perfil de uma estátua

E. R.: 5 (2-5)

que não sou de frente.

E. R.: 5 (3-5)

                  

                  

Nascitura estava

E. R.: 5 (3-5)

e mais que imperfeita

E. R.: 5 (2-5)

de ser sorte ou dado

E. R.: 5 (3-5)

que qualquer mão deita.

E. R.: 5 (3-4-5)

                  

                  

Eu nasci de haver

E. R.: 5 (3-5)

os bairros da lata

E. R.: 5 (2-5)

do dedo que escapa

E. R.: 5 (2-5)

dos sapatos rotos

E. R.: 5 (3-5)

da fome que mata

E. R.: 5 (2-5)

o que quer nascer

E. R.: 5 (3-5)

e que o sábio guarda

E. R.: 5 (3-5)

em frascos de abortos;

E. R.: 5 (2-5)

                  

                  

eu nasci de ver

E. R.: 5 (3-5)

cheirar e ouvir

E. R.: 5 (2-5)

dum odor a mortos

E. R.: 5 (3-5)

(judeus enlatados

E. R.: 5 (2-5)

para caberem mais

E. R.: 6 (4-6)

mas desinfetados)

E. R.: 5 (1-5)

pelas chaminés

E. R.: 5 (1-5)

nazis a sair

E. R.: 5 (2-5)

de te ver passar

E. R.: 5 (3-5)

de me despedir

E. R.: 5 (5)

de teus olhos tristes

E. R.: 5 (3-5)

como se existisses.

E. R.: 5 (1-5)

                  

                  

Nascitura estava

E. R.: 5 (3-5)

tom de rosa pulcra

E. R.: 5 (1-3-5)

eu me declinava

E. R.: 5 (1-5)

vésper em latim:

E. R.: 5 (1-5)

impura de todos

E. R.: 5 (2-5)

gostarem de mim.

E. R.: 5 (2-5)
         
Natália Correia, de “O Diário de Cynthia”, in O Vinho e a Lira,  Lisboa: Fernando Ribeiro de Mello, 1966; O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I, Lisboa: Projornal/Círculo de Leitores, 1993, pp. 319-321; Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999, pp. 241-243)


Poema recitado pela autora (in EP "Natália Correia Diz Poemas de Sua Autoria", col. A Voz e o Texto, Decca/VC, 1969; CD "A Defesa do Poeta", EMI-VC, 2003)
            
           
Contrastante, por exemplo, com a posição aparentemente impessoal do eu lírico de João Cabral em versos como “Saio de meu poema/ como quem lava as mãos”, de “Psicologia da composição” (1973, p. 248), a obra da poeta portuguesa parece destoar desse distanciamento, por deixar claro um traço da valorização da vocação lírica, aspeto importante para a literatura portuguesa, segundo Eduardo Lourenço (1999, p. 38): “da nossa mitologia cultural – mas igualmente a opinião daqueles que nos estudaram – faz parte a ideia de que a pulsão central e, mesmo obsessiva, da cultura portuguesa é sua vocação lírica”.
Não se torna forçado relacionar a poesia de Natália com a visão de Eduardo Lourenço, porque escrever poemas, para a autora – embora às vezes influenciada intensamente por lembranças do momento histórico pelo qual passava, no caso do poema a ser apresentado a seguir, a Segunda Guerra Mundial –, funciona como um olhar para a génese, especialmente para a génese do indivíduo – daí a ligação, em parte, com o Romantismo. Isso ocorre nos poemas conduzidos pelo narcisismo, como “Autogénese” (1993, v. 1, p. 319) da obra O vinho e a lira (1966): “Autogénese”.
A condição do eu poético é a de ser vista “sempre de soslaio” e em desacordo consigo própria: “perfil de uma estátua/ que não sou de frente” (sexta estrofe), obliquidade presente também no poema “De perfil” (1993, v. 1, p. 438), a ser analisado em momento oportuno, no terceiro capítulo.
Nas estrofes de “Autogénese”, predominantemente em redondilha menor, esse eu, ao revoltar-se contra o momento da Segunda Guerra, volta-se para si mesmo e revela um distanciamento entre exterioridade e interioridade, quando, na estrofe mencionada, afirma ter nascido “de ser como eles/ às vezes por fora/ mas nunca por dentro”. Isso significa que embora seja europeia e, portanto, do mesmo continente que os alemães, obcecados pela raça ariana pura, ela, o eu lírico, jamais se identifica com eles em relação ao sentimento de aniquilação de povos como os judeus.
Apesar da temática da Segunda Guerra, o eu poético, na última estrofe, expressa narcisismo: “impura de todos/ gostarem de mim”. E, nesse momento, depreende-se que a voz feminina associa a realidade injusta da guerra aos contextos literário e mitológico, aproveitando para destacar, na quinta estrofe (“pomos do ciúme”), sua situação diante das “mulheres poetas”, que, por ciúmes (ou inveja), jogaram-lhe setas, remetendo à parte da história do desencadeamento da Guerra de Tróia, no qual Afrodite (ou, sob o nome romano, Vênus, a deusa da beleza e do amor) foi escolhida entre Palas Atena (ou Minerva, a deusa da sabedoria) e Hera (ou Juno, a deusa do casamento) para receber a maçã de ouro com a inscrição “para a deusa mais bela”4. O narcisismo do eu lírico de Natália é equivalente, desse modo, ao da disputa pelo pomo de ouro.
A preferência poética de Natália de que o eu lírico deve exibir-se no texto vem ao encontro da noção de Lourenço de que o poeta português acaba por impregnar-se de traços de ser da sensibilidade portuguesa. No entanto, há uma diferença entre o que diz Lourenço e o que faz Natália: tal sensibilidade, em sua poesia, não está voltada para o mundo exterior e sim para o eu, no caso, feminino, e um eu sobretudo rebelde, para o qual “a poesia é a mais certa maneira de ser portuguesa”, conforme expressa, na última estrofe, o eu lírico do poema “Errância imóvel” (1993, v. 1, p. 288-289) da obra Inéditos(1961-1966):
E se fui à Ilha Encoberta
Foi só para ter a certeza
De que a poesia é a mais certa
Maneira de ser portuguesa.
         
Ficcionalizada pela linguagem poética na criação de um simulacro, a “Ilha Encoberta” a que se refere o poema é, possivelmente, a Ilha de São Miguel, terra natal da poeta.
No capítulo “Da literatura como interpretação de Portugal” (1991, p. 81), Eduardo Lourenço chama a atenção para o facto de que a pessoalização da pátria portuguesa vem especificamente desde Camões, porque, antes dele, quando os autores glosavam o destino português, em termos épicos ou apologéticos, raras vezes em termos críticos, o seu “eu” pessoal não se encontrava envolvido, implicado na evocação. Já em Natália, essa evocação é crítica, e o eu envolve-se até demasiadamente na questão nacional, identitária, defendendo, ao afirmar a poesia como “a mais certa maneira de ser portuguesa”, uma relação intrínseca entre o país e a literatura.
      
São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista - Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, 2006, pp. 65-69.
        
___________________
(4) Para a mitologia grega, segundo Thomas Bulfinch (2001, p. 254), o que gerou a Guerra de Tróia foi um conflito ocorrido durante o casamento de Peleu e Tétis no Olimpo. Éris, a deusa da discórdia, enfurecida por não ter sido convidada, por vingança, atirou entre os convivas um pomo ou maçã de ouro com a inscrição: “para a deusa mais bela”. Hera, Afrodite e Palas Atena atracaram-se para cima da maçã, fazendo de tudo para obtê-la. Zeus, o rei do Olimpo, percebendo a briga, desceu à Terra, à procura de um mortal bastante observador para escolher a deusa mais bela. Encontrou então Páris, um camponês ideal para o cargo.
     O pastor apascentava seus rebanhos no Monte Ida, para onde foram as três deusas. Páris recebeu a maçã de ouro, e a escolha ficou por conta dele. Cada deusa ofereceu uma gratificação em troca da maçã: Hera disse que, se fosse a escolhida, ele seria o homem mais rico e poderoso do mundo. Já Palas Atena prometeu-lhe glória e fama na guerra e, Afrodite, que ele teria o amor da mulher mais linda da Terra (Helena, mulher do rei de Esparta, Menelau). Páris escolheu Afrodite e partiu para Esparta, sem poder imaginar o que o esperaria: raptaria Helena, dando início à Guerra de Tróia.
         
           
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/03/07/autogenese.aspx]

quinta-feira, 6 de março de 2014

QUE TODOS VIVAM A SUA MORTE ENQUANTO É TEMPO (Natália Correia)


         
           
7 POEMAS DA MORTE E DA SOBREVIVÊNCIA
        
VI
         
Ao Francisco Sousa Tavares
           
Que todos vivam a sua morte enquanto é tempo
afagando-a como uma flor na consciência.
Desprendê-la que a desprenda o canto.
Que o canto é já sobrevivência.
Morre-se de pé com múltiplos espantos.
Florações que em nós perscrutam o mistério
embebidos nas luzes que acenderam
o nosso rosto num mundo mais etéreo.

Possui-se a morte progressivamente
como um corpo antes de ser tocado.
E tão fundo nosso sonho o penetrou
que nos gestos ficou continuado.
   
Natália Correia, Poemas, 1955
      
           
[…] Por sua vez, Natália Correia, ao construir uma poesia na qual predomina o intuito de fazer a palavra tornar audível o que fala no silêncio, apresenta a linguagem não como um elemento que afasta os seres humanos da integração total com o mundo, mas como algo direcionado a abrir os olhos para perceber “realmente” o mundo, sendo a mais poderosa forma de expressar o que está cristalizado pela natureza, realidade institucionalizadora. Os conflitos existenciais problematizados por sua obra levam em consideração o papel do poeta no mundo, atribuindo-lhe o poder de refletir sobre sua condição como ser humano. A linguagem “fala” em nome do homem naturalmente mudo, “rasgando” o silêncio da condição humana. Em alguns poemas, usa-se a redondilha maior, métrica das cantigas populares, para ironizar a complexidade das relações de sentido neles apresentadas.
Do mesmo modo que os fragmentos do poema de Natália nem sempre transmitem a sensação de leveza, a sintaxe contínua, nesse universo particular de expressão do ser lírico, também nem sempre revela tensão. É o caso de “Que todos vivam a sua morte enquanto é tempo” (1993, v. 1, p. 120), o sexto dos “Sete poemas da morte e da sobrevivência”, uma das secções da obra Poemas (1955).
Tematizando a morte, este poema é mais explícito em relação ao elemento de que trata. […] O poema de Natália não é tão duro quanto o de Orides, apesar de ser apresentado como um dos “Sete poemas da morte e da sobrevivência” e de inscrever logo no primeiro verso o signo “morte”. Ambiguamente, a escolha lexical confere suavidade ao referido signo, atribuindo-lhe propriedades de “vida”: “afagando-a”, “flor”, “desprendê-la”, “sobrevivência”, “florações”, “gestos”, “continuado”. Além disso, um tom erótico também é tecido na segunda estrofe, na comparação entre possuir a morte e “um corpo antes de ser tocado”.
A sintaxe contínua entre a maioria dos versos, com exceção do terceiro, do quarto e do quinto, permitiu ao poema construir uma teia de relações, modalizando a ação de viver a morte, associando a concretude do rosto à abstração do mistério perscrutado pelas florações, comparando a adjacência da morte à possibilidade de o corpo ser tocado e remetendo ao corpo em disforia a vivacidade do sonho do ser pluralizado “nós”. A forma plural do ser é, aliás, a mesma de “Sete poemas do pássaro”, reforçando, pela indiciação da coletividade na qual se organizam e à qual se vinculam os seres humanos, a universalidade da morte.
      
São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista - Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, 2006, pp. 84-87
        

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