ESPELHO
Que rompam as águas:
é de um corpo que falo.
Nunca tive outra pátria,
nem outro espelho;
nunca tive outra casa.
É de um rio que falo;
desta margem onde soam ainda,
leves
umas sandálias de oiro e de
ternura.
Aqui moram as palavras;
as mais antigas,
as mais recentes:
mãe, árvore,
adro, amigo.
Aqui conheci o desejo
mais sombrio,
mais luminoso;
a boca
onde nasce o sol,
onde nasce a lua.
E sempre um corpo,
sempre um rio;
corpos ou ecos de colunas,
rios ou súbitas janelas
sobre dunas;
corpos:
dóceis, doirados montes de feno;
rios:
frágeis, frias flores de cristal.
E tudo era água,
água,
desejo só
de um pequeno charco de luz.
De luz?
Que sabemos nós
dessas nuvens altas,
dessas agulhas
nuas
onde o silêncio se esconde?
Desses olhos redondos,
agudos de verão,
e tão azuis
como se fossem beijos?
Um corpo amei;
um corpo, um rio;
um pequeno tigre de inocência
com lágrimas
esquecidas nos ombros,
gritos
adormecidos nas pernas,
com extensas, arrefecidas
primaveras nas mãos.
Quem não amou
assim? Quem não amou?
Quem?
Quem não amou
está morto.
Piedade,
também eu sou mortal.
Piedade
por um lenço de linho
debruado de feroz melancolia,
por uma haste de espinheiro
atirada contra o muro,
por uma voz que tropeça
e não alcança os ramos.
De um corpo falei:
que rompam as águas.
Eugénio de Andrade, Mar
de Setembro, 1977
LINHAS DE LEITURA:
«Corpo» é
neste poema reescrito por uma série de equivalentes: «pátria» (v. 3), «espelho»
(v. 4), «casa» (v. 5), «rio» (vv. 6, 22, 24, 44), «tigre de inocência» (v. 45);
estes elementos evocam já a infância e a mãe, que por sua vez atrai «palavras»
que «moram» «aqui» (no poema, visto como casa): «mãe, árvore,/adro, amigo» (vv.
13-14), recobrindo a relação Mãe-Natureza-Aldeia-Outro. «Aqui» é pois lugar (casa,
corpo?), como se confirma pelo advérbio «onde» (vv. 19 e 20), lugar «onde nasce
o sol» e «a lua» (v. 20); nascer remete o leitor não só para os vv. 1 e 68, mas
para a anulação de contrários já apontada: «sol» torna-se igual a «lua»,
«corpo» a «rio».
Faça o
levantamento deste processo no poema; verá assim que o «Espelho» é o lugar de
fixação do Passado, é o poema, é a tentativa de que o passado evocado («De um
corpo falei», v. 67) se repita no futuro que o presente aponta («que rompam as
águas», v. 68). Escrever o poema, ver-se no espelho, é pois tentar anular os
contrários, estabelecer a igualdade inicial (iniciática?), eliminando a
diferença, perturbadora do amor.
Poemas de
Eugénio De Andrade - O Homem, a Terra, a Palavra. Apresentação
crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de Paula Morão.
Lisboa: Seara Nova/Editorial Comunicação, 1981
O ESPAÇO ELEMENTAR
E A CONFIGURAÇÃO DO HOMEM NA POESIA DE EUGÊNIO DE ANDRADE
“Espelho”
é um poema longo, composto por versos brancos e livres, agrupados em doze estrofes
de tamanhos variados, cuja temática já se revela a partir do título, espelho é
aquilo que reflete algo; contudo, “o que” e “como” reflete são as discussões
que esse poema suscita.
O poema é estruturado a partir de anáforas e
antíteses de valor metafórico, que vislumbram dois momentos distintos. O
primeiro (revelado pelas seis primeiras estrofes) apresenta o momento presente,
no qual o eu-lírico propõe-se a falar de um corpo, enaltecendo suas
características, dentre as quais a principal é refletir a vida. O segundo
(sexta à décima segunda estrofe) volta-se a recordações passadas, fazendo
questionamentos e reflexões acerca dessas vivências; e encerra-se com o
fechamento de um ciclo.
Atentando para os recursos estilísticos,
observa-se a principal metáfora do poema, o espelho, que, gradativamente e,
sempre permeada pelos elementos da natureza, transfigura-se no corpo, na casa,
no rio, em janelas sobre dunas, nos montes de feno, flores de cristal, charco
de luz, pequeno tigre, e, sobretudo na palavra. Dessa maneira, os elementos
naturais que estão intrínsecos à vida, aqui se revelam pelas imagens
correspondidas: a terra é configurada pela pátria, casa, margem, árvore,
colunas, dunas, montes de feno, pequeno tigre, muro e ramos; a água e tida pelo
rio, frias flores de cristal e lágrimas; o ar é visto por “nuvens altas” e pelo
adjetivo “leves” e o fogo, pelo sol, “olhos redondos agudos de verão”.
Sob essa perspectiva de leitura, a primeira
transfiguração do espelho é em corpo/rio; “Que rompam as águas/é de um corpo
que falo. Em seguida, por relação de contigüidade, pautada ora na anáfora, ora
no paralelismo, o corpo é descrito como pátria, espelho, casa: “Nunca tive
outra pátria,/nem outro espelho;/nunca tive outra casa”. Esse corpo é
apresentado como um lugar, idéia justificada pela anáfora “aqui” e pelos
substantivos a ele referentes: pátria, casa, desta margem. Ao longo do poema,
figura-se em outras imagens, como o espelho, a água (a palavra) que tudo
reflete, mas sempre volta a si: “Sempre um corpo/sempre um rio/corpos ou ecos
de coluna/ E tudo era água”.
O corpo/espelho reúne em si características
contraditórias (como a vida), pois ao mesmo tempo em que é figurado através de
elementos concretos, como casa, pátria, rio, janelas sobre dunas, corpos
doirados, flores de cristal, é um corpo que abarca em si sentimentos
contraditórios (“Aqui conheci o desejo/mais sóbrio/mais luminoso/a boca/onde
nasce o sol/onde nasce a lua”) e os reflete. A idéia de contrariedade também é
observada pelos advérbios “nunca/sempre”.
Permeia o poema a descrição de um ciclo (do
rio, da vida, da palavra/poesia). Revelando o início: “Que rompam as águas/é de
um rio que falo”; “Aqui moram as palavras”; sua continuidade, reiterada pelo
advérbio “sempre”: “E sempre um corpo/sempre um rio”; suas transformações:
“Corpos ou ecos de colunas/rios ou súbitas janelas/sobre dunas/corpos;/dóceis, doirados,
montes de feno/rios;/frágeis, frias flores de cristal” e o seu fim, que se
reinicia: “De um corpo falei:/que rompam as águas”.
A corporeidade dada à palavra é vista por
meio de uma linguagem plástica, que revela um movimento de metáfora pelo qual a
palavra é corpo, é rio, é desejo, é boca, é flor, é luz, é olho agudo de verão,
enfim, a palavra é espelho que reflete a vida (que cumpre o seu ciclo, com suas
transformações), pois ela é o próprio corpo que vivencia tudo isso. Inúmeras
imagens, pois, são refletidas nesse jogo de luzes e sombras, tidas pelas
palavras que se repetem anaforicamente, se contradizem ou se transformam. Um
exemplo dessa linguagem visual, no poema, é a imagem que se forma de um rio em
movimento, claro, luminoso, fluido; sobrepondo-se à imagem de um corpo jovem,
sensual, que vivencia o amor, mesclando-se à imagem da natureza, ao mesmo tempo
expectadora e ativa, com a luz do verão a produção de frutos, flores na
primavera; tudo isso num movimento sensual da vida, que se repete, se
transforma, enfim, se reflete: “Aqui conheci o desejo”, “Desses olhos redondos/
agudos de verão/ e tão azuis/ como se fossem beijos?”, “Um corpo amei/ um
corpo, um rio/um pequeno tigre de inocência”, “Aqui moram as palavras/as mais
antigas/ as mais recentes”.
Na visualização das imagens emanadas pelo
poema, o cromatismo é bastante importante, pois a luminosidade da vida se
presentifica através das cores tidas pelos corpos que as reluzem: as sandálias
de oiro às margens do rio, o desejo luminoso de um corpo, o nascimento do sol,
os corpos doirados montes de feno, as flores de cristal, um pequeno charco de
luz, os olhos agudos de verão e tão azuis.
A musicalidade faz-se presente nesse poema
por meio das anáforas reiterativas dos mesmos sons, aliadas às aliterações das
nasais /m, n/, sibilantes /f,s/
e palatais /l,lh/ proporcionam a sensação do som rumoroso,
liquefeito e contínuo das águas de um rio.
Quanto à construção sintática, observa-se que
o poema, numa atitude retórica, apresenta os mesmos versos no início e final do
texto (com exceção do verbo final, no passado, revelando que o tempo cumpriu o
seu ciclo e iniciará novamente). Contudo, os versos finais estão postos como se
fossem reflexos num espelho, reiterando o plano semântico: “Que rompam as
águas: é de um corpo que falo” x “De um corpo falei: que rompam as águas”.
Assim, a idéia que fica é da poesia-espelho que tudo reflete, porque é a
própria vida, na sua força natural da água, do amor, com suas contradições e
súplicas. A palavra que no poema reflete o começo e o fim é a realidade da
vida, no seu ciclo.
Amanda Mantovani, A
palavra-imagem em poemas de Eugênio de Andrade: uma leitura dos elementos
míticos: o fogo, a água, o ar e a terra como produção de sentido. Universidade
Estadual de Maringá - Centro De Ciências Humanas, Letras e Artes, 2006.
William Pye, Narcissus (1969) |
A POÉTICA DE EUGÊNIO DE ANDRADE E A SIGNIFICAÇÃO DO ESPAÇO
As
afirmações acerca do espaço no universo poético revelam-se por meio da palavra,
como no poema “Espelho”, que apresenta a primeira transfiguração do espelho,
que sucede nas palavras “corpo” e “rio”, nos versos, “Que rompam as águas / é
de um corpo que falo”. O corpo é descrito nas figuras da pátria, espelho e
casa: “Nunca tive outra pátria, / nem outro espelho; / nunca tive outra casa”.
Apresentado como um lugar (pátria, casa), ele se figura em outras imagens como
o espelho, a água (a palavra) que tudo reflete, mas, na intenção de se
encontrar, sempre volta a si própria: “Sempre um corpo / sempre um rio / corpos
ou ecos de coluna / E tudo era água” (Mar de setembro, 2011, p. 132-134).
Fica
evidente que a palavra adquire status de lugar, concretizado por elementos
contidos nos versos, todos são o “lugar” onde a vida acontece com sua força
natural e material e suas contradições, súplicas, lembranças, desejos,
descobertas que, num ir e vir espelham esse ciclo de viver (começo e fim).
Desvela ao homem a sua materialidade / humanidade, porque é a própria vida que
faz viver: “Nunca tive outra pátria, / nem outro espelho / Aqui moram as
palavras: / Aqui conheci o desejo / E sempre um corpo / sempre um rio. (Mar de
setembro, 2011, p. 132-134). Conclui-se que o poema “Espelho” é o lugar
reinventado pelo poeta. Para Santos e Oliveira (2001), a imagem e o cenário
apresentam-se como forma efetiva de revelação lírica e, nesse caso, a poesia
torna-se o espaço em constante mudança, representa a vida e o homem na sua
dialética transformação.
A palavra
ao refletir o começo e o fim, a vida, o homem e suas transformações é o “lugar”
(espaço poemático ou imaginário) onde as mudanças acontecem e o homem se
reinventa através desse jogo metafórico e retórico de imagens construídas.
Conforme Blanchot (1987), o espaço cumpre seu papel transformador e
transcendental, ao promover a interiorização dos elementos, possibilitando a
formação de um espaço imaginário. Nesse espaço, está presente a revelação
lírica, compreendida como a consciência da célere condição humana e dos
inquietantes questionamentos diante das transformações contraditórias e
perturbadoras, como nos versos: “Que sabemos nós, / dessas nuvens altas, /
dessas agulhas / nuas / onde o silêncio se esconde / desses olhos redondos, /
agudos de verão, / e tão azuis / como se fossem beijos?” (Mar de setembro,
2011, p. 132-134).
Nos
versos desse poema, os “olhos redondos agudos de verão e azuis como beijos”
avistam um exemplo do que Blanchot (1987) afirma sobre as imagens caladas pelo
poeta, que ecoam no texto com um profundo significado ao leitor. Ratificam a
relação do homem com o espaço, proposta por Heidegger (2004) pelo
distanciamento e direcionalidade, segundo as quais o homem pode outorgar ou
não, o valor de existência aos elementos espaciais que o circundam,
atribuindo-lhes valores e interagindo com eles. Os olhos “agudos de verão”
adquirem valor vivaz e envolvente como um beijo.
Amanda Rodrigueiro, A poética de Eugênio de Andrade: figurações do espaço. Universidade
Estadual de Maringá - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, 2017.
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- “A metáfora em Eugénio de Andrade” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Eugénio de Andrade, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 2018-04-23. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-metafora-em-eugenio-de-andrade.html
***
- “Como Narciso se perde - Uma história fundadora da representação do EU”, José Carreiro, Folha de Poesia, 2014/11/09 <https://folhadepoesia.blogspot.com/2014/11/como-narciso-se-perde-uma-historia.html>
William Pye_Narcissus (1969) |
Que reflete o espelho?
A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da
consciência.
Ô miroir!
Eau froide par I 'ennui dans ton
cadre gelée
Que de fois et pendant des heures,
desolée
Des songes et cherchant mes souvenirs
qui sont
Comme des feuilles sous ta glace au
trou profond,
Je m 'apparus en toi comme une
ombre lointaine,
Mais, horreur! des soirs, dans ta
sévère fontaine
J'ai de mon rêve épars connu la nudité!
Mallarmé, Hérodiade, 1864-1867
Ó espelho!
Água fria pelo tédio no teu quadro gelada
Quantas vezes durante horas, desolada
Dos sonhos e procurando as minhas recordações que são
Como folhas sob o teu vidro no poço profundo,
Apareci-me em ti como uma sombra longínqua,
Mas, horror! certas noites, na tua severa fonte
Do meu sonhar disperso conheci a nudez!
Mallarmé, Hérodiade, 1864-1867
(Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra in “Espelho”,
Dicionário dos Símbolos, Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Lisboa:
Teorema, 1994.
***
Gaston Bachelard inicialmente apresenta o espelho como um simples reflexo, mostrando que a água é o “espelho das vozes”, de Narciso e do “espelho velado”. Mas em A poética do espaço e A poética do devaneio, o espelho está voltado para o interior do ser humano. O sonhador vai além da superfície, vai à profundeza do seu ser, mirando-se em sua obra poética. Eis por que a criação artística duplica a obra e o seu criador.
(Agripina Ferreira, Dicionário de imagens, símbolos, mitos, termos e conceitos Bachelardianos
[livro eletrónico] Londrina : Eduel, 2013)
CARREIRO, José. “Espelho,
Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 14-02-2021. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/espelho-eugenio-de-andrade.html