POEMA
À MÃE
No
mais fundo de ti,
eu
sei que traí, mãe.
Tudo
porque já não sou
o
menino adormecido
no
fundo dos teus olhos.
Tudo
porque tu ignoras
que
há leitos onde o frio não se demora
e
noites rumorosas de águas matinais.
Por
isso, às vezes, as palavras que te digo
são
duras, mãe,
e
o nosso amor é infeliz.
Tudo
porque perdi as rosas brancas
que
apertava junto ao coração
no
retrato da moldura.
Se
soubesses como ainda amo as rosas,
talvez
não enchesses as horas de pesadelos.
Mas
tu esqueceste muita coisa;
esqueceste
que as minhas pernas cresceram,
que
todo o meu corpo cresceu,
e
até o meu coração
ficou
enorme, mãe!
Olha
— queres ouvir-me? —
às
vezes ainda sou o menino
que
adormeceu nos teus olhos;
ainda
aperto contra o coração
rosas
tão brancas
como
as que tens na moldura;
ainda
oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal…
Mas
— tu sabes — a noite é enorme,
e
todo o meu corpo cresceu.
Eu
saí da moldura,
dei
às aves os meus olhos a beber.
Não
me esqueci de nada, mãe.
Guardo
a tua voz dentro de mim.
E
deixo-te as rosas.
Boa
noite. Eu vou com as aves.
Eugénio
de Andrade, Os amantes sem dinheiro,
1950 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017
Linhas de leitura do “Poema à mãe”,
de Eugénio de Andrade
O poeta
sente-se dividido entre a necessidade vital de cortar o cordão umbilical que
prendia a criança à esfera protetora da mãe e a pena de ter de o fazer.
Por isso, o
seu discurso é meigo, persuasivo, justificativo, e não um grito impetuoso de
adolescente que rompe abruptamente com as amarras da servidão.
O fantasma da
traição filial persegue o sujeito, que se debate com a dificuldade de se
desembaraçar do abraço superprotetor e narcísico de quem devia conceber a
maternidade como uma dádiva ao mundo e não como a posse egoísta de um objeto.
Daqui a consciência da relação filial como um amor infeliz (v.11),
em face da incompreensão do natural crescimento. As queixas, ainda que duras
(v. 10), acerca dessa incompreensão, expressas através de imagens
visuais do retrato adormecido (v. 4) e da perda das rosas brancas no
retrato da moldura (vv. 12-13), são compensadas pela reiteração de
fidelidade filial, apesar das mudanças verificadas; «às vezes ainda sou o
menino / que adormeceu nos teus olhos; // ainda aperto contra o coração / rosas
tão brancas / como as que tens na moldura.» (vv. 23-27)
As rosas
brancas da inocência, se bem que perdidas, ainda são nostalgicamente
recordadas, juntamente com os sinais auditivos da voz materna, associada à memória
do conto popular: «ainda oiço a tua voz: Era uma vez, uma princesa».
E, apesar do
impulso natural de crescer e da sedução dos novos «leitos onde o frio não se
demora» (v. 7) apesar da imensidade da noite, a emancipação adolescente
é negativamente conotada com a exploração dos olhos pelas aves (v.
34).
Por isso, ao sair da moldura (v. 33) do quadro infantil, ao deixar as rosas (v. 37) da inocência, ao partir com as aves (v. 38), o sujeito guarda no seu interior a voz materna como símbolo da persistência de um passado.
(Para uma leitura de sete
poetas contemporâneos, António Moniz, Ed. Presença, 1997, pp. 122-123)
***
Note que a diferença fundamental é a atividade passada do Eu/Tu em
confronto com a fixidez (confinada ao espaço da «moldura») do presente.
Note o
conservar do passado «dentro de mim» (v. 36), ou seja, a transformação dada
apenas como exterior («todo o meu corpo cresceu» (v. 32)). Assim se justificará
a presença dessa mãe irremediavelmente perdida, mas mantida presente, como a
chama de Vesta1, em toda a obra de Eugénio de Andrade.
(In Poemas de E. de A., Paula Morão,
Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, p. 76)
__________
Vesta – brilhante e pura como a chama que a simboliza, é a
mais bela das divindades romanas. Para os Latinos personifica a Terra e o Fogo;
mas os Romanos conservaram-lhe apenas a segunda atribuição, reduzindo-a,
todavia, ao lume exclusivamente familiar e dos templos. (in Mitologia Geral I,
Mª Lamas, Ed. Estampa, 1991, p. 362)
Maria dos Anjos Fontinhas (mãe de Eugénio de Andrade) |
Texto de apoio
O trabalho
contínuo de transubstanciação que a poesia eugeniana realiza da própria
sensação de perda do instante − frequentemente agregada à dor da separação da
mãe − revela-se em imagens fugidias e evanescentes como essa (bem como os
“sonhos tresmalhados” do poema), ou como, por exemplo, as “pedras” lançadas ao
horizonte em “Abril”, poema imediatamente posterior a “Os amantes sem
dinheiro”, no qual novamente encontramos uma criança em meio às primeiras
descobertas:
Abril
Brinca a manhã
feliz e descuidada,
como só a manhã
pode brincar,
nas curvas
longas desta estrada
onde os ciganos
passam a cantar.
Abril anda à
solta nos pinhais
coroado de rosas
e de cio,
e num salto
brusco, sem deixar sinais,
rasga o céu azul
num assobio.
Surge uma
criança de olhos vegetais,
carregados de
espanto e de alegria,
e atira pedras
às curvas mais distantes
– onde a voz dos
ciganos se perdia.
(ANDRADE, 1966, p. 66)
Embora o
cenário seja de infância e de êxtase paradisíaco, em que a própria manhã de
“Abril” brinca junto à criança, enleada aos elementos da paisagem “no cio”, há
o contraponto da fugacidade do tempo. A estrada impõe a movimentação do espaço
e nela “ciganos” passam a cantar, cujas vozes já se perdem na “curva”.
“Ciganos”, sem morada permanente, são passageiros como as “aves” e, no poema,
produzem música que se confunde com imagem, já que o menino lança pedras ao
espaço como se pudesse, literalmente, enxergar o som subindo aos ares. Música e
imagem são novamente distinguidas como unidades essenciais da poesia e,
desintegradas aqui, operam, assim como a “ave” no poema anterior, um retorno à
enformação básica da palavra poética, permitindo que o leitor tenha acesso à
emoção pura, à intuição, a uma dada excitação espiritual ou perceção sensorial
que estão na base de qualquer formação simbólica.127
Desse
modo, o poema poderia sugerir a visão do menino-poeta diante da descoberta de
sua vocação, que atira pedras à música-imagem, como se pudesse tocá-la, e
vislumbra um horizonte em ascensão, desmanchando a plenitude de “abril à solta
nos pinhais”.
Dentre
todas essas imagens fluidas e recorrentes, a “ave”, sendo o elemento nuclear
nesse livro, encaminha, assim como o “fruto” no volume anterior, a uma visão da
conceção poética eugeniana. Se considerarmos a themata da arte poética
tal como listada por Lubomir Dolezel128, a “ave” oferece uma reflexão bastante
vasta sobre os domínios e alcances da linguagem poética, além de apontar para o
problema da criatividade, já que ela frequentemente se associa à mãe, figura
identificada, desde o prefácio, como principal motivação do poético nesse
segundo livro da coletânea.129
No
quarto poema do livro, “Canção para minha mãe”, em que a figura materna é diretamente
nomeada, encontramos novamente a imagem de um pássaro, porém ligado agora a uma
cena de outono e esterilidade − ainda que a criança apareça juntando os cabelos
destrançados da mãe, triste a cantar. Dos braços dessa mulher escorriam “frutos
maduros de outono” e “águas mortas de abandono”: “Era o tempo das gaivotas /
mas o mar tinha secado”, e depois: “Gaivotas não as havia / e o mar tinha
secado.” (1966, p. 67).130
O
ambiente de esterilidade e ceticismo também está presente em “Apenas um rumor”,
poema 20, em que a “palavra” é equiparada ao “rumor” de um bando de “gaivotas”:
Apenas um rumor
... E no teu
rosto aberto sobre o mar
cada palavra era
apenas o rumor
de um bando de
gaivotas a passar.
(ANDRADE,
1966, p. 88)
A
expressão adverbial “apenas” denota a fragilidade e talvez a impermanência do
canto e do instante pleno. Esse poemeto assemelha-se aos versos do poema 19, intitulado
“Outro poema para o meu amor doente”: “Outono − pássaro de melancolia/ num céu
sem cor que não promete nada” (1966, p. 87), em que o “céu”, como o “mar” do
poema acima, afigura-se como espaço de abertura, mas que, desta vez, não
encontra o fluir expansivo da “ave”.
Em
“Canção breve”, encontramos uma referência indireta aos “gestos” do poema “Os
amantes sem dinheiro”, agora inseridos no contexto de um amor triste e antigo,
que poderia muito bem incluir a relação materna:
Tudo me prende à
terra onde me dei
[...]
Tudo me prende
do mesmo triste amor
que há em saber
que a vida pouco dura,
e nela ponho a
esperança ou o calor
de uns dedos com
restos de ternura.
Dizem que há
outros céus e outras luas
e outros olhos
densos de alegria,
mas eu sou
destas casas, destas ruas,
deste amor a
escorrer melancolia.
(ANDRADE,
1966, p. 71)
“Amor a
escorrer melancolia” lembra a imagem da mulher triste de “Canção para minha
mãe”, de cujos cabelos, braços e pernas também escorriam, como vimos, elementos
melancólicos, como “frutos de outono” e “águas mortas de abandono”. Os “dedos
com restos de ternura” e o “triste amor que há em saber que a vida pouco dura”
trazem à cena a imagem do pássaro a nascer dos dedos dos amantes e a sensação
de passagem e transformação que o poema “Os amantes sem dinheiro” suscita, de
modo que, tanto naquele quanto neste poema, a figura materna permanece como
elemento fulcral, mesmo quando não nomeada.
Do mesmo
modo, “Elegia”, poema 13, parece se dirigir à mãe e às lembranças desse amor
doído, já que estabelece diálogo direto com “Poema à mãe”, 15 do livro:
[...]
Ainda sabemos
cantar.
Só a nossa voz é
que mudou:
somos agora mais
lentos,
mais amargos,
e um novo gesto
é igual ao que passou.
Um verso já não
é a maravilha
de um corpo a
latejar de plenitude.
Tu quebraste-lhe
o ritmo
ao partires um a
um
os ramos todos
da tua juventude.
Não estamos sós:
setembro traz
ainda
um fruto em cada
mão.
Mas os homens,
as aves e os ventos
já não bebem em
ti a direção.
(ANDRADE,
1966, p. 77)
Novamente
há alusões aos “gestos”, porém aqui acompanhados de ceticismo e melancolia. As
“aves” reaparecem, assim como os “ventos” e os “frutos” do poema de abertura do
livro (“Conselho”), entretanto, já deslocados do antigo e prometido furor poético,
apontando agora para os desgastes dos mecanismos outrora associados à plenitude
na infância e à relação materna: “Os homens, as aves e os ventos/ já não bebem
em ti a direção”.
O
primeiro verso do trecho selecionado acima também poderia sugerir relações com
a mãe do poema, frequentemente associada à “primeira música” que tanto motiva a
gênese de sua poesia. Contudo, as condições favoráveis à poesia agora são
descritas em termos de cansaço e esgotamento. Há uma mudança de direção dos
mecanismos de inspiração. A “mãe” não provê mais o “fruto”, embora ele ainda
esteja presente em “cada mão”. Há uma certa “quebra de ritmo” e quebra dos
“ramos da juventude” que oferecem agora ao eu lírico uma reflexão dolorida
sobre os efeitos da velhice, do esquecimento, da distância natural entre mãe e
filho.
Em “Poema
à mãe”, 15 do livro, as queixas sobre a relação viciada entre mãe e filho
são explícitas: o sujeito lamenta o esquecimento por parte de ambos, em que
talvez haja se perdido o conhecimento do “verdadeiro ser” que os dois
experimentaram intensamente durante o período pleno de descobertas e encantos.
Esse conhecimento profundo e rico já não cabe mais na imagem rígida e intacta
de um “retrato”.
menino
que “ama as rosas brancas”, signo de pureza que remete à inocência da
infância131. Ele ainda ouve a “voz”, o cantar da mãe, mas o presente é distinto
e requer novos gestos. O sujeito então se despede e, em um ato de
transfiguração de signos do passado, ou de rasura do “retrato”, permuta “as
rosas brancas” por “aves”. Eis dois signos que se associam tanto à relação
materna, como vimos, quanto ao cantar poético132, sempre vinculado à questão da
memória neste livro.133
A
memória é referida por meio de um paradoxo: de um lado é representada por
retratos, recordações rígidas e imóveis que mal interferem no presente; e de
outro por certas imagens “móveis” do passado, como as “aves” a se desprenderem
dos gestos, capazes de evocar certa lembrança do poético, da vivência da
totalidade dos elementos, da movimentação da palavra, cuja natureza metamórfica
atualiza a experiência e supera a corrosão do tempo, apreendendo a
multiplicidade da vida. Assim, por meio de um signo concreto como “aves”, a
poesia eugeniana sugere o abstrato material da memória em suspensão, capaz de
ser mobilizado pelo fazer poético. Nesse espaço silencioso e confuso “voam”
imagens e sons primitivos que segredam os primeiros milagres. No impreciso
ponto de encontro entre o presente e o passado acham-se as aves suspensas de
outrora, vigiando a promessa de um dia se realizarem.
Ao
despedir-se da mãe e dizer que segue “com as aves”, o eu lírico toma a
determinação de sair da “moldura” do retrato para transfigurar-se em canto.
Afirma a sua vocação de poeta e opta pelo caminho incerto e instável das
“aves”, porém de imensurável libertação.
Por
conseguinte, na imagem que a mãe tem do filho já não cabe o erotismo de “leitos
onde o frio não se demora”, tanto quanto a perda da juventude da mãe se tornou
insuportável ao filho (como o verso “tu quebraste [...] os ramos todos da tua
juventude” do poema anterior também sugere). Contudo, tal esquecimento (tanto
da mãe que esquece que o filho cresceu quanto do filho que também esquece que
ela envelheceu) é superado pelo canto: “Queres ouvir-me? / Às vezes ainda sou o
retrato [...] / ainda aperto contra o coração rosas tão brancas [...] / ainda
oiço a tua voz. / Não me esqueci de nada mãe”.
O eu
lírico simbolicamente mata a mãe, deixando-lhe as “rosas brancas”, como em um
ritual fúnebre, mas somente para poder rememorar e recriar tudo de novo no
espaço do poema. Na permuta das “rosas brancas” por “aves”, o canto atualiza a
rica experiência do passado, mobilizando a memória, que oferece resistência à
implacabilidade do tempo quando vivida de maneira a atuar sobre o presente.
Assim, o canto pretende reconfigurar o passado e atribuir-lhe novos sentidos
pertencentes à vida adulta, de modo a manter-lhe a potência criadora.
Em
Eugénio de Andrade, as representações da memória confundem-se com as representações
da palavra poética, o que evidencia a conexão profunda entre o processo de
rememoração e o fazer poético. A palavra depende da plenitude vivida pelo
sujeito, que, motivado pelo amor e pela entrega, colhe os registros de um
presente absoluto. A memória preserva os instantes ontológicos − pois é a
memória que constitui o ser − , e o germe da palavra nasce para o poeta:
levanta voo como aves, penetra os espaços, assim como a “luz”, “o rumor”, “o
canto dos ciganos” sumindo ao longe. Das imagens revisitadas pelo sujeito
poético depreendem-se elementos fugazes, que partem do momento registrado para
penetrar em uma espécie de hiato que a memória produz na relação entre o
passado e o presente.
É a
consciência do próprio ato poético que estabelece a união ontológica entre os
tempos de outrora e os tempos recentes, para que o sujeito instaure o sentido
de sua própria existência. A confeção da poesia é feita a partir dessas
correspondências estabelecidas pelo sujeito poético, que, ao atuar sobre as
memórias, resgata esses elementos transitórios como elos entre o passado e o
presente, e reconstitui, em seu cantar, a unidade perdida, experimentada na
infância.
Desse modo, a palavra poética marca essa ausência, ao mesmo tempo que refaz o passado paradisíaco: preenche e produz ausência, sempre. Eugénio de Andrade firma a sua vocação de poeta ao reconstituir-se como sujeito liberto da mãe e ao tomar consciência do próprio ato do fazer poético, o qual demanda mobilização da memória e atuação sobre ela. É para esse novo espaço de consciência que segue o poeta em perpétua busca de sua própria sentença: “Boa noite. Eu vou com as aves!”.
Joana Araujo, “Com palavras amo”: um estudo das imagens em poemas de Eugénio de
Andrade. São Paulo, DLCV/USP, 2012
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“Poema à mãe, Eugénio de
Andrade”, José Carreiro. Folha
de Poesia, 2022-11-16. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/poema-mae-eugenio-de-andrade.html