terça-feira, 22 de novembro de 2022

Impressão digital, António Gedeão


 

 Impressão digital


 

 

 

 

5

 

 

 

 

 

10

 

 

 

 

 

15

 

 

 

 

 

20

 

 

 

Os meus olhos são uns olhos.

E é com esses olhos uns

que eu vejo no mundo escolhos1

onde outros, com outros olhos,

não veem escolhos nenhuns.

 

Quem diz escolhos diz flores.

De tudo o mesmo se diz.

Onde uns veem luto e dores

uns outros descobrem cores

do mais formoso matiz2.

 

Nas ruas ou nas estradas

onde passa tanta gente,

uns veem pedras pisadas,

mas outros, gnomos e fadas

num halo3 resplandecente.

 

Inútil seguir vizinhos,

querer ser depois ou ser antes.

Cada um é seus caminhos.

Onde Sancho4 vê moinhos

D. Quixote vê gigantes.

 

Vê moinhos? São moinhos.

Vê gigantes? São gigantes.

 

António Gedeão, Obras Completas, 2.ª ed., Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2007

_____________

NOTAS:

1 escolhos – simbolizam perigos ou obstáculos, uma vez que o seu significado objetivo é penhasco completamente escondido ou só à superfície do mar.

2 matiz – combinação de tons variados de uma mesma cor.

3 halo – zona ou círculo luminoso que envolve ou rodeia alguém ou alguma coisa.

4 Sancho – Sancho Pança e Dom Quixote são duas personagens da obra Dom Quixote de la Mancha, do escritor espanhol Miguel de Cervantes. Dom Quixote é um fidalgo sonhador e fantasioso, enquanto o seu escudeiro Sancho tem uma visão realista do mundo.

 

***

I – Conhece a opinião de Carminho sobre o poema “Impressão digital”, de António Gedeão:

 


Seleciona a opção correta para completares as afirmações.

1. A adaptação do poema a uma melodia foi

a) feita por um músico.

b) espontânea para Carminho.

 

2. Carminho considera que o poema aborda

a) a identidade do sujeito poético.

b) a pluralidade de opiniões.

 

Chave de correção: 1.b; 2.b.

Fonte: Projeto #EstudoEmCasa – Aula n.º 62 de Português dos 7.º e 8.º anos sobre os poemas "Impressão digital" (António Gedeão), "E por vezes" (David Mourão-Ferreira), 2021-06-25.

 

II - Esquema interpretativo do poema “Impressão digital”, de António Gedeão

 



Fonte: Projeto #EstudoEmCasa – Aula n.º 62 de Português dos 7.º e 8.º anos sobre os poemas "Impressão digital" (António Gedeão), "E por vezes" (David Mourão-Ferreira), 2021-06-25.

Assistir à aula da Professora Tereza Cadete Sampainho, em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7828/e553778/portugues-7-e-8-anos

 

***

III - Questionário sobre o poema “Impressão digital”, de António Gedeão

1. Explicita o contraste que o sujeito poético estabelece entre ele e alguns ("uns") e "os outros".

2. Identifica os recursos expressivos que concretizam esse contraste.

3. Explicita o sentido do verso «Cada um é seus caminhos.» (v. 18), relacionando-o com o título do poema.

4. Justifica a alusão a D. Quixote e a Sancho.

5. Relê a terceira estrofe do poema.

5.1. Classifica-a quanto ao número de versos.

5.2. Divide o terceiro verso dessa estrofe de acordo com as sílabas métricas, numerando-as.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. O sujeito poético destaca as diferenças entre a sua forma de ver a realidade e a dos outros.

Enquanto ele vê "no mundo escolhos", isto é, dificuldades e obstáculos, os outros não tem a mesma opinião. A realidade pode de facto ser encarada com o otimismo que vê "cores do mais formoso matiz" ou com o pessimismo de quem vê " luto e dores".

2. Esse contraste concretiza-se através de antíteses que opõem o otimismo ao pessimismo de forma metafórica, tal como se verifica nos seguintes versos: "uns veem pedras pisadas,/mas outros, gnomos e fadas".

3. O verso «Cada um é seus caminhos» sugere a ideia de que os percursos e as experiências que cada pessoa vai acumulando ao longo da vida determinam a sua individualidade. Neste sentido, são esses «caminhos» que constituem a sua «impressão digital», isto é, a sua singularidade.

Relaciona o título do poema de António Gedeão com a sua temática.

O título deste poema, "Impressão digital", refere-se à identidade exclusiva de cada ser humano e consequentemente remete para o tema nele abordado.

Ao longo do poema, o sujeito poético transmite a ideia de que cada ser humano vê a realidade de forma muito própria e individual, em função das suas experiências e da sua identidade. Da mesma maneira que cada ser humano tem a sua impressão digital, tem também a sua visão do mundo e da realidade.

Assim, segundo este poema, a perspetiva de cada ser humano depende claramente da sua identidade, sendo a sua "impressão digital".

4. D. Quixote e Sancho (Pança) são as personagens principais do romance de cavalaria de Miguel Cervantes.

A alusão a ambas prende-se com o facto de D. Quixote ter uma visão fantasiosa da realidade, enquanto Sancho era objetivo e via a realidade nua e crua.

São exemplos do que o sujeito poético pretende realçar: a diversidade de perspetivas.

5.1. Quintilha (quinteto)

5.2. «uns/ ve/em/ pe/dras /pi/sa/(das)» (7 sílabas métricas).

 

Adaptado de: 

Projeto #EstudoEmCasa – Aula n.º 62 de Português dos 7.º e 8.º anos sobre os poemas "Impressão digital" (António Gedeão), "E por vezes" (David Mourão-Ferreira), 2021-06-25. 

Prova Final de Português n.º 91 - 3.º Ciclo do Ensino Básico (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE-Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2016, 2.ª Fase

 

GEDEÃO, António, pseud.
Impressão digital / [António Gedeão]. – 1955 Maio. 3. – [2] p. 1 f. ; 16,5 x 9,6 cm
Autógrafo a tinta azul, com emendas e acrecentos. – 1.º v.: «Os meus olhos s[ão] uns olhos.». Numerado com «15» e «[4]» nos cantos superiores direito e esquerdo. – Inclui, abaixo do título, a lápis, a nota de Natália Nunes: «[Public. em Movimento Perpétuo, 1956]». V. p. 11-12.
BN Esp. E40/cx. 13
Disponível em: https://purl.pt/12157/1/poesia/movimento-perpetuo/impressao-digital1.html



CARREIRO, José. “Impressão digital, António Gedeão”. Portugal, Folha de Poesia, 22-11-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/impressao-digital-antonio-gedeao.html


segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Casa deserta, Mário Dionísio



 

       Casa deserta

 

 

 

 

 

 

5

 

 

 

 

 

10

 

 

 

 

 

15

 

 

 

 

 

 

20

 

 

 

 

 

25

Ah nada pior que a casa deserta,

sozinha, sozinha.

 

O fogão apagado e tudo sem interesse.

O mundo lá longe, para lá da floresta.

E o vento soprando

a chuva caindo

a casa deserta...

 

Ah nada pior que estes dias e dias,

de cachimbo aceso, com as mãos inertes,

com todas as estradas inteiramente barradas,

ouvindo a floresta.

Com tudo lá longe, na casa deserta,

o vento soprando

e a chuva caindo, na noite caindo...

 

Há uma cancela que range nos gonzos

um velho cão de guarda que ladra sem motivo

– parece que é gente que vem a entrar...

 

E é só o vento soprando, soprando

e a chuva caindo...

 

Mudaram muita vez as folhas da floresta.

Os olhos do homem são olhos de doido.

Fogão apagado, aceso o cachimbo, o mundo lá longe.

 

E o vento soprando

a chuva caindo

a casa deserta...


Mário Dionísio, Poesia Incompleta, 2.ª ed., Europa-América, [1982], pp. 31-32

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Refira os elementos que contribuem para a representação do espaço.

2. Os versos 5 a 7 são retomados, com algumas variações ou integralmente, ao longo do texto.

Analise dois dos efeitos expressivos produzidos por essa repetição.

3. Explicite, no contexto do poema, o valor simbólico do verso 20: «Mudaram muita vez as folhas da floresta.».

4. Caracterize o homem que habita a «casa deserta».

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Os elementos que, ao longo do poema, contribuem para a representação do espaço são, entre outros, os seguintes:

a casa num local ermo (v. 2), o que acentua a solidão do homem;

o «fogão apagado» (vv. 3 e 22), que marca o ambiente desconfortável e lúgubre da casa;

«O mundo lá longe, para lá da floresta» (v. 4) e «as estradas inteiramente barradas» (v. 10), que afastam o «homem» (v. 21) do «mundo» (vv. 4 e 22), cortando a comunicação com o exterior;

o «vento soprando» (vv. 5, 13, 18 e 23), «a chuva caindo» (vv. 6, 14, 19 e 24), a «cancela que range nos gonzos» (v. 15), compondo um cenário invernoso e inóspito.

2. Os versos «E o vento soprando / a chuva caindo / a casa deserta» (vv. 5-7) repetem-se, com algumas variações, nos versos 12-14 e 18-19 e, integralmente, nos versos 23-25. Eis, entre outros, alguns dos efeitos assim produzidos:

acentuar a temática do isolamento e da solidão;

reiterar o carácter persistente da chuva e do vento, sugerindo uma atmosfera opressiva;

amplificar a noção de confinamento do homem ao espaço da casa;

marcar o ritmo do poema.

3. O verso «Mudaram muita vez as folhas da floresta.» (v. 20) remete para a passagem cíclica das estações, acentuando que muitos anos foram passando sem que a situação do «homem» (v. 21) na inóspita «casa deserta» (v. 1) se alterasse. Logo, a imagem da sucessiva mudança das folhas nas árvores pode representar, simbolicamente, um tempo longo de isolamento e de espera.

4. O homem está sozinho na casa sentindo que «nada» é «pior que estes dias e dias» (v. 8), desinteressado de tudo, pois nem sequer acende o fogão (vv. 3 e 22). Apesar disso, com «mãos inertes» (v. 9) e de «cachimbo aceso» (vv. 9 e 22), fica à escuta dos sons da floresta (v. 11), parecendo-lhe, por vezes, pressentir a presença humana (v. 17), o que não passa de uma ilusão. Por isso, os «olhos do homem são olhos de doido» (v. 21), de alguém que está isolado do mundo, numa espera longa e vã. 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 734 - 11.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho, de 26 de março). Prova Escrita de Literatura Portuguesa, Lisboa, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2015, Época Especial



Casa deserta, Mário Dionísio”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-21. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/casa-deserta-mario-dionisio.html



domingo, 20 de novembro de 2022

Arredores, Nuno Júdice

Nuno Júdice

 

Leia o seguinte poema de Nuno Júdice. A epígrafe* do texto pertence a um poema de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa.

 

ARREDORES

«Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros»

Álvaro de Campos

 

No tempo em que havia quintas e hortas em Lisboa, e

se ia para lá aos domingos, eu ficava em casa. E em

vez de ir para as quintas e para as hortas, em vez de

apanhar couves e de ordenhar ovelhas, lia

poemas que falavam das quintas e das hortas de Lisboa,

como se isso substituísse o ar do campo e o cheiro

dos estábulos. É por isso que hoje, quando me lembro dos arredores de Lisboa

onde havia quintas e hortas, o que lembro são as horas de leitura de

poemas sobre esses arredores, e os passeios que eles me faziam dar

aos domingos, substituindo os lugares reais com mais exatidão

do que se eu tivesse ido a esses lugares. Visitei, assim, quintas

e hortas pela mão do Cesário Verde e do Álvaro de Campos, e

soube por eles tudo o que precisava de saber sobre os arredores de Lisboa,

que hoje já não existem porque Lisboa entrou por eles e transformou as quintas

em prédios e as ovelhas em automóveis. Não me arrependo, então, de

ter lido Cesário e Campos enquanto ouvia balir os rebanhos que vinham

pastar a Lisboa, nas traseiras do meu prédio, onde as mulheres

das hortas vendiam leite e queijo fresco, às escondidas

da polícia. Hoje, já não sei onde se escondem essas mulheres,

nem há quintas e hortas em Lisboa; mas ficaram os poemas

que ainda me levam a passear às quintas e hortas que já não existem,

onde apanho couves e ordenho ovelhas por entre prédios

e automóveis.

 

Nuno Júdice, O Estado dos Campos, Lisboa, Dom Quixote, 2003

__________

* epígrafe: citação que, colocada no início de um livro, capítulo, poema, etc., pode indicar o tema ou o ponto de partida do texto.

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens.

1. Explicite as relações de sentido que se podem estabelecer entre o poema e o verso de Álvaro de Campos citado em epígrafe.

2. Refira as diferenças de comportamento entre o «eu» e os outros à sua volta.

3. Identifique dois dos recursos estilísticos presentes no texto, exemplificando cada um deles com uma ocorrência.

4. Comente a importância do tema das mudanças provocadas pela passagem do tempo na construção do sentido do poema.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. O verso de Álvaro de Campos que é citado em epígrafe do poema Arredores remete para o tema da visita às hortas que se cultivavam nos arredores de Lisboa – hoje zonas urbanas integradas na cidade –, ao domingo, por parte dos habitantes de Lisboa. Do mesmo modo que no verso de Álvaro de Campos, essa visita dominical das hortas é referida no poema de Nuno Júdice como sendo feita sempre e só pelos outros. Com uma diferença: a visita às hortas, para o caso deste «eu», era, e por isso ainda pode ser, feita através da leitura de poemas.

2. Em vez de ir para as «quintas e hortas», o «eu» ficava em casa, aos domingos, a ler poesia. Assim, em vez de ir, como os outros, para os arredores de Lisboa, ficava a dar passeios nesses arredores imaginados que os poemas lhe ofereciam. Hoje, quando os hábitos dos habitantes de Lisboa mudaram e já ninguém vai aos domingos para as «quintas e hortas em Lisboa», o «eu» continua a fazer os seus passeios imaginários por meio dos mesmos poemas, que «ficaram».

3. Entre outros, destacam-se os seguintes recursos estilísticos:

– repetição sistemática do sintagma «quintas e hortas», com algumas variações, ao longo do poema;

– imagem, em «Visitei, assim, quintas / e hortas pela mão do Cesário Verde e do Álvaro de Campos» e, também, em «Lisboa entrou por eles e transformou as quintas / em prédios e as ovelhas em automóveis»;

– comparação, em «como se isso substituísse o ar do campo e o cheiro / dos estábulos»;

– metáforas, nos quatro versos finais, em que as «quintas e hortas» continuam a ser visitadas em imaginação, apesar de se terem transformado, na realidade, em «prédios» e «automóveis».

4. A contraposição entre o tempo pretérito e o tempo presente atravessa o texto, pois a memória antiga dos domingos passados por outros («se ia», v. 2) nos arredores de Lisboa, apresentada como uma memória de «horas de leitura» de poemas de Cesário Verde e de Álvaro de Campos «sobre esses arredores», sublinha o desaparecimento presente das «quintas», das «hortas» e dos «rebanhos». No entanto, as mudanças que a passagem do tempo trouxe não afetam a representação desse mundo tal como nos poemas se encontra, e que pode ser reencontrada de cada vez que são lidos. A única diferença é que, antes, os poemas eram a representação de lugares realmente existentes, «com mais exatidão» ainda – e, hoje, referem lugares que já não existem.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 734 - 10.º e 11.º Anos de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Literatura Portuguesa, Lisboa, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2009, 2.ª Fase

 


“Arredores, Nuno Júdice”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-20. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/arredores-nuno-judice.html