domingo, 20 de novembro de 2022

Arredores, Nuno Júdice

Nuno Júdice

 

Leia o seguinte poema de Nuno Júdice. A epígrafe* do texto pertence a um poema de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa.

 

ARREDORES

«Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros»

Álvaro de Campos

 

No tempo em que havia quintas e hortas em Lisboa, e

se ia para lá aos domingos, eu ficava em casa. E em

vez de ir para as quintas e para as hortas, em vez de

apanhar couves e de ordenhar ovelhas, lia

poemas que falavam das quintas e das hortas de Lisboa,

como se isso substituísse o ar do campo e o cheiro

dos estábulos. É por isso que hoje, quando me lembro dos arredores de Lisboa

onde havia quintas e hortas, o que lembro são as horas de leitura de

poemas sobre esses arredores, e os passeios que eles me faziam dar

aos domingos, substituindo os lugares reais com mais exatidão

do que se eu tivesse ido a esses lugares. Visitei, assim, quintas

e hortas pela mão do Cesário Verde e do Álvaro de Campos, e

soube por eles tudo o que precisava de saber sobre os arredores de Lisboa,

que hoje já não existem porque Lisboa entrou por eles e transformou as quintas

em prédios e as ovelhas em automóveis. Não me arrependo, então, de

ter lido Cesário e Campos enquanto ouvia balir os rebanhos que vinham

pastar a Lisboa, nas traseiras do meu prédio, onde as mulheres

das hortas vendiam leite e queijo fresco, às escondidas

da polícia. Hoje, já não sei onde se escondem essas mulheres,

nem há quintas e hortas em Lisboa; mas ficaram os poemas

que ainda me levam a passear às quintas e hortas que já não existem,

onde apanho couves e ordenho ovelhas por entre prédios

e automóveis.

 

Nuno Júdice, O Estado dos Campos, Lisboa, Dom Quixote, 2003

__________

* epígrafe: citação que, colocada no início de um livro, capítulo, poema, etc., pode indicar o tema ou o ponto de partida do texto.

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens.

1. Explicite as relações de sentido que se podem estabelecer entre o poema e o verso de Álvaro de Campos citado em epígrafe.

2. Refira as diferenças de comportamento entre o «eu» e os outros à sua volta.

3. Identifique dois dos recursos estilísticos presentes no texto, exemplificando cada um deles com uma ocorrência.

4. Comente a importância do tema das mudanças provocadas pela passagem do tempo na construção do sentido do poema.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. O verso de Álvaro de Campos que é citado em epígrafe do poema Arredores remete para o tema da visita às hortas que se cultivavam nos arredores de Lisboa – hoje zonas urbanas integradas na cidade –, ao domingo, por parte dos habitantes de Lisboa. Do mesmo modo que no verso de Álvaro de Campos, essa visita dominical das hortas é referida no poema de Nuno Júdice como sendo feita sempre e só pelos outros. Com uma diferença: a visita às hortas, para o caso deste «eu», era, e por isso ainda pode ser, feita através da leitura de poemas.

2. Em vez de ir para as «quintas e hortas», o «eu» ficava em casa, aos domingos, a ler poesia. Assim, em vez de ir, como os outros, para os arredores de Lisboa, ficava a dar passeios nesses arredores imaginados que os poemas lhe ofereciam. Hoje, quando os hábitos dos habitantes de Lisboa mudaram e já ninguém vai aos domingos para as «quintas e hortas em Lisboa», o «eu» continua a fazer os seus passeios imaginários por meio dos mesmos poemas, que «ficaram».

3. Entre outros, destacam-se os seguintes recursos estilísticos:

– repetição sistemática do sintagma «quintas e hortas», com algumas variações, ao longo do poema;

– imagem, em «Visitei, assim, quintas / e hortas pela mão do Cesário Verde e do Álvaro de Campos» e, também, em «Lisboa entrou por eles e transformou as quintas / em prédios e as ovelhas em automóveis»;

– comparação, em «como se isso substituísse o ar do campo e o cheiro / dos estábulos»;

– metáforas, nos quatro versos finais, em que as «quintas e hortas» continuam a ser visitadas em imaginação, apesar de se terem transformado, na realidade, em «prédios» e «automóveis».

4. A contraposição entre o tempo pretérito e o tempo presente atravessa o texto, pois a memória antiga dos domingos passados por outros («se ia», v. 2) nos arredores de Lisboa, apresentada como uma memória de «horas de leitura» de poemas de Cesário Verde e de Álvaro de Campos «sobre esses arredores», sublinha o desaparecimento presente das «quintas», das «hortas» e dos «rebanhos». No entanto, as mudanças que a passagem do tempo trouxe não afetam a representação desse mundo tal como nos poemas se encontra, e que pode ser reencontrada de cada vez que são lidos. A única diferença é que, antes, os poemas eram a representação de lugares realmente existentes, «com mais exatidão» ainda – e, hoje, referem lugares que já não existem.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 734 - 10.º e 11.º Anos de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Literatura Portuguesa, Lisboa, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2009, 2.ª Fase

 


“Arredores, Nuno Júdice”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-20. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/arredores-nuno-judice.html


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