Nuno Júdice |
Leia o seguinte poema de Nuno Júdice. A
epígrafe* do texto pertence a um poema de Álvaro de Campos, heterónimo de
Fernando Pessoa.
ARREDORES
«Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros»
Álvaro de Campos
No tempo em que havia quintas e
hortas em Lisboa, e
se ia para lá aos domingos, eu
ficava em casa. E em
vez de ir para as quintas e para
as hortas, em vez de
apanhar couves e de ordenhar
ovelhas, lia
poemas que falavam das quintas e
das hortas de Lisboa,
como se isso substituísse o ar do
campo e o cheiro
dos estábulos. É por isso que
hoje, quando me lembro dos arredores de Lisboa
onde havia quintas e hortas, o
que lembro são as horas de leitura de
poemas sobre esses arredores, e
os passeios que eles me faziam dar
aos domingos, substituindo os
lugares reais com mais exatidão
do que se eu tivesse ido a esses
lugares. Visitei, assim, quintas
e hortas pela mão do Cesário
Verde e do Álvaro de Campos, e
soube por eles tudo o que
precisava de saber sobre os arredores de Lisboa,
que hoje já não existem porque
Lisboa entrou por eles e transformou as quintas
em prédios e as ovelhas em
automóveis. Não me arrependo, então, de
ter lido Cesário e Campos
enquanto ouvia balir os rebanhos que vinham
pastar a Lisboa, nas traseiras do
meu prédio, onde as mulheres
das hortas vendiam leite e queijo
fresco, às escondidas
da polícia. Hoje, já não sei onde
se escondem essas mulheres,
nem há quintas e hortas em
Lisboa; mas ficaram os poemas
que ainda me levam a passear às
quintas e hortas que já não existem,
onde apanho couves e ordenho
ovelhas por entre prédios
e automóveis.
Nuno Júdice, O Estado dos Campos,
Lisboa, Dom Quixote, 2003
__________
*
epígrafe: citação que, colocada no início
de um livro, capítulo, poema, etc., pode indicar o tema ou o ponto de partida
do texto.
Apresente, de forma bem estruturada, as
suas respostas aos itens.
1. Explicite as
relações de sentido que se podem estabelecer entre o poema e o verso de Álvaro
de Campos citado em epígrafe.
2. Refira as
diferenças de comportamento entre o «eu» e os outros à sua volta.
3. Identifique
dois dos recursos estilísticos presentes no texto, exemplificando cada um deles
com uma ocorrência.
4. Comente a
importância do tema das mudanças provocadas pela passagem do tempo na construção
do sentido do poema.
Explicitação de cenários de resposta:
1. O verso de Álvaro de Campos que é
citado em epígrafe do poema Arredores remete
para o tema da visita às hortas que se cultivavam nos arredores de Lisboa –
hoje zonas urbanas integradas na cidade –, ao domingo, por parte dos habitantes
de Lisboa. Do mesmo modo que no verso de Álvaro de Campos, essa visita
dominical das hortas é referida no poema de Nuno Júdice como sendo feita sempre
e só pelos outros. Com uma diferença: a visita às hortas, para o caso deste
«eu», era, e por isso ainda pode ser, feita através da leitura de poemas.
2. Em vez de ir para as «quintas e
hortas», o «eu» ficava em casa, aos domingos, a ler poesia. Assim, em vez de
ir, como os outros, para os arredores de Lisboa, ficava a dar passeios nesses
arredores imaginados que os poemas lhe ofereciam. Hoje, quando os hábitos dos
habitantes de Lisboa mudaram e já ninguém vai aos domingos para as «quintas e
hortas em Lisboa», o «eu» continua a fazer os seus passeios imaginários por
meio dos mesmos poemas, que «ficaram».
3. Entre outros, destacam-se os
seguintes recursos estilísticos:
– repetição sistemática do sintagma «quintas e
hortas», com algumas variações, ao longo do poema;
– imagem, em «Visitei, assim, quintas / e hortas
pela mão do Cesário Verde e do Álvaro de Campos» e, também, em «Lisboa entrou
por eles e transformou as quintas / em prédios e as ovelhas em automóveis»;
– comparação, em «como se isso substituísse o ar
do campo e o cheiro / dos estábulos»;
– metáforas, nos quatro versos finais, em que as
«quintas e hortas» continuam a ser visitadas em imaginação, apesar de se terem
transformado, na realidade, em «prédios» e «automóveis».
4. A
contraposição entre o tempo pretérito e o tempo presente atravessa o texto,
pois a memória antiga dos domingos passados por outros («se ia», v. 2) nos
arredores de Lisboa, apresentada como uma memória de «horas de leitura» de
poemas de Cesário Verde e de Álvaro de Campos «sobre esses arredores», sublinha
o desaparecimento presente das «quintas», das «hortas» e dos «rebanhos». No entanto,
as mudanças que a passagem do tempo trouxe não afetam a representação desse
mundo tal como nos poemas se encontra, e que pode ser reencontrada de cada vez
que são lidos. A única diferença é que, antes, os poemas eram a representação
de lugares realmente existentes, «com mais exatidão» ainda – e, hoje, referem
lugares que já não existem.
“Arredores,
Nuno Júdice”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-20. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/arredores-nuno-judice.html
Sem comentários:
Enviar um comentário