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| Fernando Pinto do Amaral |
Blogue
Mantivera
no fim da adolescência
aquilo
a que chamava simplesmente
o
seu diário íntimo:
páginas
manuscritas onde ardiam
rastilhos1 de mil sonhos que
rasgavam
as
mordaças da angústia social,
a
timidez tão própria da idade.
Nessa
caligrafia cuja cor
fora
ainda a do sangue
colheu
a energia necessária
para
atravessar como um sonâmbulo
o
ordálio2 daquela juventude,
o
seu incandescente calendário
de
amizades vorazes3,
tão velozes
como
os amores que julgava eternos
e
outras feridas mal cauterizadas4.
Hoje
quase não volta a essas páginas:
estamos
no século XXI
e
em vez do diário de outros tempos
mantém
agora um blogue
onde
todos os dias extravasa5
recados,
atitudes, confissões,
coisas
no fundo tão inofensivas
como
o fogo que outrora lhe acendia
as
frases lancinantes6
–
embora hoje em dia quando escreve
tenha
por um momento a ilusão
de
que as suas palavras continuam
a
propagar ainda o mesmo vírus,
e
a alimentar, quem sabe, os mesmos
sonhos
sempre
que alguém desconhecido as ler
como
quem só assim então escutasse
um
segredo na noite do mundo.
Mas,
apesar de todo o entusiasmo
que
o mantém acordado por noites sem fim,
ele
adivinha que também virá
um
dia a abandonar sem saber como
o
seu atual vício solitário
e
dentro de alguns anos, ao reler
as
frases arquivadas no computador,
talvez
tudo isso lhe pareça então
fruto
de gestos tão adolescentes
como
os que antigamente preenchiam
esses
cadernos amarelecidos
e
hoje sepultados para sempre
em
esquecidas gavetas de outro século.
Fernando Pinto do
Amaral, Poemas Escolhidos (1990-2007), Dom Quixote, 2009
Notas:
1. rastilhos: canudos ou fios de pólvora. 2. ordálio: sofrimento. 3. vorazes:
passageiras. 4. cauterizadas: cicatrizadas. 5. extravasa: derrama, despeja,
produz em abundância. 6. lancinantes: dolorosas, pungentes.
Linhas de leitura:
- Que transformações ocorrem na
forma como o sujeito poético expressa os seus sentimentos ao longo do tempo?
(Explora a passagem do diário manuscrito para o blogue e o que
isso revela sobre crescimento e mudança.)
- De que forma a escrita serve como
libertação emocional nas diferentes fases da vida do sujeito?
(Reflete sobre o papel da escrita na adolescência e na idade
adulta.)
- O que simboliza a expressão
“caligrafia cuja cor fora ainda a do sangue”?
(Pensa na intensidade emocional associada à juventude.)
- Que críticas ou reflexões o poema
sugere sobre a exposição das emoções nas plataformas digitais?
(Analisa a diferença entre o íntimo (diário) e o público
(blogue).)
- Como é retratada a juventude neste
poema e que marcas ela deixa no sujeito poético?
(Observa a linguagem usada para descrever amizades, amores e
angústias.)
- O “ele” do poema representa um
indivíduo específico ou uma geração? Que pistas textuais sustentam essa
leitura?
(Interpreta o valor simbólico do sujeito descrito.)




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