segunda-feira, 2 de junho de 2025

Opiário, Álvaro de Campos


 

OPIÁRIO

 

                        Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro

 

É antes do ópio que a minh’alma é doente.

Sentir a vida convalesce e estiola

E eu vou buscar ao ópio que consola

Um Oriente ao oriente do Oriente.

 

Esta vida de bordo há-de matar-me.

São dias só de febre na cabeça

E, por mais que procure até que adoeça,

Já não encontro a mola pra adaptar-me.

 

Em paradoxo e incompetência astral

Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,

Onda onde o pundonor é uma descida

E os próprios gozos gânglios do meu mal.

 

É por um mecanismo de desastres,

Uma engrenagem com volantes falsos,

Que passo entre visões de cadafalsos

Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

 

Vou cambaleando através do lavor

Duma vida-interior de renda e laca.

Tenho a impressão de ter em casa a faca

Com que foi degolado o Precursor.

 

Ando expiando um crime numa mala,

Que um avô meu cometeu por requinte.

Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,

E caí no ópio como numa vala.

 

Ao toque adormecido da morfina

Perco-me em transparências latejantes

E numa noite cheia de brilhantes

Ergue-se a lua como a minha Sina.

 

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora

Não faço mais que ver o navio ir

Pelo canal de Suez a conduzir

A minha vida, cânfora na aurora.

 

Perdi os dias que já aproveitara.

Trabalhei para ter só o cansaço

Que é hoje em mim uma espécie de braço

Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

 

E fui criança como toda a gente.

Nasci numa província portuguesa

E tenho conhecido gente inglesa

Que diz que eu sei inglês perfeitamente.

 

Gostava de ter poemas e novelas

Publicados por Plon e no Mercure,

Mas é impossível que esta vida dure,

Se nesta viagem nem houve procelas!

 

A vida a bordo é uma coisa triste,

Embora a gente se divirta às vezes.

Falo com alemães, suecos e ingleses

E a minha mágoa de viver persiste.

 

Eu acho que não vale a pena ter

Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.

A terra é semelhante e pequenina

E há só uma maneira de viver.

 

Por isso eu tomo ópio. É um remédio.

Sou um convalescente do Momento.

Moro no rés-do-chão do pensamento

E ver passar a Vida faz-me tédio.


Monsanto, Lisboa, 01-06-2025


 

Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,

Muito a leste não fosse o oeste já!

Pra que fui visitar a Índia que há

Se não há Índia senão a alma em mim?

 

Sou desgraçado por meu morgadio.

Os ciganos roubaram minha Sorte.

Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte

Um lugar que me abrigue do meu frio.

 

Eu fingi que estudei engenharia.

Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.

Meu coração é uma avozinha que anda

Pedindo esmola às portas da Alegria.

 

Não chegues a Port-Said, navio de ferro!

Volta à direita, nem eu sei para onde.

Passo os dias no smoking-room com o conde —

Um escroc francês, conde de fim de enterro.

 

Volto à Europa descontente, e em sortes

De vir a ser um poeta sonambólico.

Eu sou monárquico mas não católico

E gostava de ser as coisas fortes.

 

Gostava de ter crenças e dinheiro,

Ser vária gente insípida que vi.

Hoje, afinal, não sou senão, aqui,

Num navio qualquer um passageiro.

 

Não tenho personalidade alguma.

É mais notado que eu esse criado

De bordo que tem um belo modo alçado

De laird escocês há dias em jejum.

 

Não posso estar em parte alguma. A minha

Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.

O comissário de bordo é velhaco.

Viu-me co’a sueca... e o resto ele adivinha.

 

Um dia faço escândalo cá a bordo,

Só para dar que falar de mim aos mais.

Não posso com a vida, e acho fatais

As iras com que às vezes me debordo.

 

Levo o dia a fumar, a beber coisas,

Drogas americanas que entontecem,

E eu já tão bêbado sem nada! Dessem

Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.

 

Escrevo estas linhas. Parece impossível

Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!

O facto é que esta vida é uma quinta

Onde se aborrece uma alma sensível.

 

Os ingleses são feitos pra existir.

Não há gente como esta pra estar feita

Com a Tranquilidade. A gente deita

Um vintém e sai um deles a sorrir.

 

Pertenço a um género de portugueses

Que depois de estar a Índia descoberta

Ficaram sem trabalho. A morte é certa.

Tenho pensado nisto muitas vezes.

 

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!

Nem leio o livro à minha cabeceira.

Enoja-me o Oriente. É uma esteira

Que a gente enrola e deixa de ser bela.

 

Caio no ópio por força. Lá querer

Que eu leve a limpo uma vida destas

Não se pode exigir. Almas honestas

Com horas pra dormir e pra comer,

 

Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.

Porque estes nervos são a minha morte.

Não haver um navio que me transporte

Para onde eu nada queira que o não veja!

 

Ora! Eu cansava-me do mesmo modo.

Queria outro ópio mais forte pra ir de ali

Para sonhos que dessem cabo de mim

E pregassem comigo nalgum lodo.

 

Febre! Se isto que tenho não é febre,

Não sei como é que se tem febre e sente.

O facto essencial é que estou doente.

Está corrida, amigos, esta lebre.

 

Veio a noite. Tocou já a primeira

Corneta, pra vestir para o jantar.

Vida social por cima! Isso! E marchar

Até que a gente saia pla coleira!

 

Porque isto acaba mal e há-de haver

(Olá!) sangue e um revólver lá prò fim

Deste desassossego que há em mim

E não há forma de se resolver.

 

E quem me olhar, há-de-me achar banal,

A mim e à minha vida... Ora! um rapaz...

O meu próprio monóculo me faz

Pertencer a um tipo universal.

 

Ah quanta alma haverá, que ande metida

Assim como eu na Linha, e como eu mística!

Quantos sob a casaca característica

Não terão como eu o horror à vida?

 

Se ao menos eu por fora fosse tão

Interessante como sou por dentro!

Vou no Maelstrom, cada vez mais prò centro.

Não fazer nada é a minha perdição.

 

Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!

Pudesse a gente desprezar os outros

E, ainda que co’os cotovelos rotos,

Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!

 

Tenho vontade de levar as mãos

À boca e morder nelas fundo e a mal.

Era uma ocupação original

E distraía os outros, os tais sãos.

 

O absurdo, como uma flor da tal Índia

Que não vim encontrar na Índia, nasce

No meu cérebro farto de cansar-se.

A minha vida mude-a Deus ou finde-a...

 

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,

Até virem meter-me no caixão.

Nasci pra mandarim de condição,

Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

 

Ah que bom que era ir daqui de caída

Prà cova por um alçapão de estouro!

A vida sabe-me a tabaco louro.

Nunca fiz mais do que fumar a vida.

 

E afinal o que quero é fé, é calma,

E não ter estas sensações confusas.

Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —

E basta de comédias na minh’alma!

 

                        No Canal de Suez, a bordo.

3-1914

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

 - 135.

1ª publ. in Orpheu, nº1. Lisboa: Jan.-Mar. 1915. Lapso corrigido segundo o original.


Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2456 




Opiário, poema escrito à maneira decadente, algures entre António Nobre e Mário de Sá-Carneiro, precede no Orpheu 1 a Ode Triunfal, poema diretamente inspirado pela Vanguarda futurista. Estas «duas composições de Álvaro de Campos publicadas por Fernando Pessoa» (na menção que figura na revista) são a primeira aparição pública de Álvaro de Campos, que reincidirá no Orpheu 2 com a Ode Marítima, e constituem um fulcro do escândalo gerado pela revista.

Segundo a Carta sobre a Génese dos Heterónimos, o Opiário foi escrito depois da Ode Triunfal «para completar o número de páginas» da revista. Acrescenta: «Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver». A ideia era dar «o Álvaro em botão», o de «antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência», (Correspondência, II: 344). Historicamente ulterior à Ode Triunfal, é, pois, heteronimicamente anterior. E cumpre a função de dar a metamorfose de Álvaro de Campos, por assim dizer, ao vivo. Aqui, está ainda na sua fase de poeta decadente, cuidadosamente vestido, como um dandy, de «casaca característica» e monócolo, «monárquico, mas não católico», capaz de dizer: «ver passar a Vida faz-me tédio» (Orpheu, 72). A ideia que preside ao específico modo de apresentação pública dos dois Álvaro de Campos – o de antes e o de depois de ter conhecido o Mestre – pode ser encontrada num texto daquela época: «O dinamismo [Futurismo, Vorticismo, etc.] é uma corrente decadente, e o elogio e a apoteose da força, que o caracteriza, é apenas aquela ânsia de sensações fortes, aquele entusiasmo excessivo pela saúde que sempre distinguiu certas espécies de decadentes» (Páginas d Íntimas, 177). ora, uma ânsia equivalente a esta vem expressa de um modo enfático na estrofe final de Opiário: «E afinal o que quero é fé, é calma, / E não ter estas sensações confusas. / Deus que acabe com isto! Abra as eclusas – / E basta de comédias na minh’alma!» (Orpheu 76), que, aliás, se deve ler seguida da datação: «1914, março. No canal de Suez, a bordo». De facto, a «ânsia de sensações fortes», a vontade de libertação da prisão de tédio e absurdo, assim gritada,  é sublinhada pelo facto contextual do poeta estar a escrever confinado na sua cabine, a bordo, em pleno canal de Suez, ou seja, num compartimento que está no interior de um navio, por sua vez ladeado pelas paredes de um estreito (obra de engenharia de grande dimensão, por isso tão afim da personagem de Álvaro de Campos), num espaço que é, assim, triplamente fechado.  

É o facto de ser tão opressivo o clima criado por este poema que torna especialmente brilhante, por contraste, a irrupção de energia que ocorre desde os primeiros versos «febris» da Ode Triunfal, datada de Londres, três meses mais tarde. A sua sucessão no Orpheu 1 corresponde, pois, aos dois atos de um monólogo, lírico primeiro, épico depois. E a ode Triunfal, se bem que mantenha o mesmo entusiasmo quase em todos os versos, não consegue esquecer as suas ainda tão recentes «sensações confusas», e termina com um verso que contém, em síntese, o Sensacionismo – o querer «ser toda a gente e toda a parte» ou o «Sentir tudo de todas as maneiras» de Passagem das Horas  – e o Decadentismo daquele que sabe muito bem não passar de um operador de ilusões – «Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!».

De todo o modo, Álvaro de Campos já existe inteiro em Opiário, como se prova pela fluidez da oralidade e o uso de expressões como «Leve o diabo a vida e a gente tê-la!» ou «Que um raio as parta!» (Orpheu 74), o encadeamento sintático dos versos, ou ainda a violenta auto-ironia: «Meu coração é uma avozinha que anda / Pedindo esmola às portas da Alegria» (Orpheu 73) ou «Se ao menos por fora fosse tão / Interessante como sou por dentro!» (Orpheu 75). Tudo associado a uma paródia do Decadentismo (de que é sinal também a dedicatória a Sá-Carneiro), visível na montagem de dois discursos, um imitando essa poética, outro rindo-se dela: «Vou cambaleando através do lavor / Duma vida-interior de renda e laca. / Tenho a impressão de ter em casa a faca / Com que foi degolado o Precursor.» (Orpheu 71).

BIBL.: Joaquim-Francisco Coelho, «Sobre o Tédio da Vida no Opiário», in Colóquio/Letras 107, Jan. 1989.

Fernando Cabral Martins

Disponível em: https://modernismo.pt/index.php/o/opiario

 


domingo, 1 de junho de 2025

Lisbon Revisited (1923), Álvaro de Campos




Lisbon Revisited

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul – o mesmo da minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!


Álvaro de Campos, Contemporânea n.° 8, 1923




I -  QUESTIONÁRIO

 

1. O poema divide-se em cinco momentos a seguir indicados de forma aleatória. Organize-os logicamente e indique os versos respetivos.

Recusa da cultura moderna.

Recusa dum certo passado mítico.

Niilismo corrosivo.

Reafirmação da individualidade

Recusa dos outros.

 

2. Escolha a resposta correta:

2.1. Pela leitura do poema, pode-se dizer que o poeta

A. recusa-se a aceitar os valores que a sociedade tenta inculcar-lhe.

B. encontra na morte a única solução para os problemas.

C. tenta tornar-se uma outra pessoa, para agradar a todos.

D. sente-se solitário e, por essa razão, almeja fazer parte da companhia.

E. aparta-se da sociedade, para desenvolver sua arte.

 

2.2. Os dois últimos versos do poema revelam

A. a conscientização do poeta em relação a seus problemas e à breve solução que lhes dará.

B. a irritação do poeta com aqueles que pretendem ajudá-lo em seus problemas.

C. a vontade do poeta de poder compartilhar da paz que outras pessoas sentem.

D. o desejo do poeta de manter-se afastado e isolado das pessoas.

E. a inquietude gerada na alma do poeta, em virtude da sua solidão.

 

2.3. A forma verbal macem, destacada no poema, significa

A. desprezem.

B. importunem.

C. ofendam.

D. maltratem.

E. abandonem.

 

2.4. O eu-lírico pretende que as pessoas distanciem-se dele. Isso, em alguns momentos, é marcado pela forma exaltada de expressão, como se pode comprovar em

A. "Não: não quero nada,"

B. "A única conclusão é morrer."

C. "Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributá-vel?"

D. "Que mal fiz eu aos deuses todos?"

E. "Vão para o diabo sem mim,"

 

2.5. A penúltima estrofe do poema permite considerar que o eu-lírico sente

A. uma saudade carinhosa da infância, pois em Lisboa ainda pode viver bons momentos.

B. uma mágoa de Lisboa, pois lá passou uma infância vazia e sem sentimentos.

C. um medo de revisitar Lisboa, pois a cidade nunca lhe proporcionou boas lembranças.

D. uma mágoa de sua cidade (Lisboa), pois ela tirou-lhe todos os bons sentimentos.

E. uma saudade melancólica da infância, pois trata-se de uma época remota e irrecuperável.

 

3. Refira a perspetiva do poeta acerca do passado, presente e futuro.

4. Identifique quatro características modernistas presentes no poema.

 

Chave de correção do questionário:

1. Niilismo corrosivo. (1-4)

Recusa da cultura moderna. (5-16)

Recusa dos outros. (17-27)

Recusa dum certo passado mítico. (28-33)

 

2.  A – D – B – E – E (Fonte: Ufscar 2001. Disponível em: https://www.curso-objetivo.br/vestibular/resolucao-comentada/UFSCar/2001/1dia/UFSCar2001_1dia.pdf)

 

3. Presente: o sonho, a evasão; tédio, solidão, renúncia, abdicação.

Passado: sedução; infância – sedução e mito.

Futuro: morte; abismo. Futuro próximo: estar sozinho (enquanto tarda a chegada do Abismo).

 

4. Características modernistas presentes no poema:

Liberdade de expressão.

Incorporação do quotidiano, do prosaico: “Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável”.

Linguagem coloquial, espontânea e mistura dos níveis de língua (mescla de expressões da língua culta e poética com termos populares).

Inovações técnicas:

- O verso livre e sem rima;

- A destruição dos nexos: os chamados nexos sintáticos, preposições, conjunções, etc. são eliminados da poesia moderna, que se torna mais solta, mais descontínua e fragmentária e, fundamentalmente, mais sintética. Por exemplo: 3ª estrofe em que na estrutura da frase há a combinação da elisão com a perífrase.

Fragmentação / pluriperspetivismo / simultaneísmo:  a unidade e diversidade pessoana de que a intertextualidade é exemplo.

 

Monsanto, Lisboa, 01-06-2025



II – COMENTÁRIO DE TEXTO

 

Faça um comentário global do poema transcrito, baseando-se no plano fónico, morfossintático e semântico da linguagem e orientando-se pelos seguintes aspetos:

·         tema;

·         estrutura lógica do discurso;

·         insatisfação corrosiva perante toda a realidade;

·         sentido de evasão;

·         intertextualidade pessoana (interação dialógica entre os vários sujeitos poéticos do universo pessoano);

·         características modernistas.

 

 

Tópicos para resolução do comentário de texto:

 

INTRODUÇÃO 

Álvaro de Campos é o heterónimo de Fernando Pessoa que melhor se integra na estética modernista. 

O poema «Lisbon Revisited», versão de 1923, integra-se na 3ª fase/face de Álvaro de Campos: a intimista / pessimista. 

 

TEMA 

Conflito realidade/poeta:

-          cansaço existencial, náusea

-          estranheza da realidade, solidão, isolamento

-          dissolução do Eu

 

ESTRUTURA LÓGICA DO DISCURSO 

O poema parte dum niilismo corrosivo (1-4)

passa pela recusa da cultura moderna, (5-16)

dos homens (17-27)

e mesmo dum certo passado mítico (28-33)

e termina numa reafirmação da fundura ôntica da solidão, (34-35).

 

INSATISFAÇÃO CORROSIVA PERANTE TODA A REALIDADE 

O poema parte dum niilismo corrosivo (1-4) 

O divórcio da realidade é visível nas estruturas negativas do discurso,

Não: não quero nada.

 

passa pela recusa da cultura moderna, (5-16) 

nos imperativos,

Venham, tragam, falem, Tirem, apregoem, enfileirem...

na significação dos verbos, em que se opõe

o sentido pejorativo e de recusa da cultura moderna

 

Tirem, apregoem, enfileirem, macem,

à afirmação do Eu

Sou, sê, ouviram, Quero

na estrutura da frase, combinando elisão com perífrase

por ex. 3a. estrofe

num certo pendor para a redundância (a todos os níveis linguísticos),

 

na enumeração

 

ou ainda na interrogativa retórica;

 

 

dos homens (17-27)  

esse divórcio passa também pelo confronto com os "outros", monolíticos, vivendo uma "felicidade opaca e animal", imersos cegamente na corrente do devir.

 

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?

Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes a todos, a vontade

Vão para o diabo sem mim,

Não me peguem no braço!

Essa relação contundente (agressiva e ofensiva) patenteia-se na linguagem familiar, coloquial mesmo,

 

e termina numa reafirmação da fundura ôntica da solidão, (34-35). 

terminando enfaticamente pela reafirmação da individualidade.

 

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...

E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

 

 

SENTIDO DE EVASÃO

recusa dum certo passado mítico (28-33) 

Mergulhando em busca da Verdade no Passado - ou na ideia arquetípica do Passado, como o demonstra a caracterização do Tejo ou do céu, por exemplo - o sujeito poético verifica que tudo isso é irrecuperável e só fica a sensação de não ser o mesmo que aí viveu.

 

INTERTEXTUALIDADE PESSOANA (Interacção dialógica entre os vários sujeitos poéticos do universo pessoano.): 

Presente: O sonho, a evasão; tédio, solidão, renúncia, abdicação.

Passado: sedução; infância – sedução e mito.

Futuro: morte.

 

CARACTERÍSTICAS MODERNISTAS: 

Incorporação do quotidiano, do prosaico: Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável. 

Linguagem coloquial, espontânea e mistura dos níveis de língua (mescla de expressões da língua culta e poética com termos populares). 

Inovações técnicas: 

- O verso livre e sem rima. 

- A destruição dos nexos: os chamados nexos sintácticos, preposições, conjunções, etc. São eliminados da poesia moderna, que se torna mais solta, mais descontínua e fragmentária e, fundamentalmente, mais sintética. Ex.: 3ª estrofe em que na estrutura da frase há a combinação da elisão com a perífrase. 

Fragmentação / Pluriperspectivismo / Simultaneísmo: a unidade e diversidade pessoana de que a intertextualidade é exemplo. 

CONCLUSÃO: 

Álvaro de Campos caracteriza-se pela frase: «eu sinto tudo e canso-me», sendo este poema expressão de um cansaço e esgotamento de uma vida sentida em excesso.

 "Campos é Pessoa mais nu deixando correr à solta a torrente da angústia que o sufoca, fazendo o processo da sua abulia, outorgando-lhe uma dimensão de fábula, dilacerando-se com um patetismo e uma raiva dementes, em suma, elevando ao sentimento da sua existência (e da existência em geral) como absurdo radical, a única epopeia que a poesia moderna pode conceber, uma epopeia do negativo e da negação" (Eduardo Lourenço)

 Com Álvaro de Campos desaparece a confusão entre a poesia popular (também cultivada por Pessoa) e linguagem falada.

 

O poema parte dum niilismo corrosivo até uma reafirmação da fundura ôntica da solidão, passando pela recusa da cultura moderna, dos homens e mesmo dum certo passado mítico.

O divórcio da realidade é visível nas estruturas negativas do discurso, nos imperativos, na significação dos verbos, na estrutura da frase, combinando elisão com perífrase (Cf. por ex. 3a. estrofe), num certo pendor para a redundância (a todos os níveis linguísticos), na enumeração ou ainda na interrogativa retórica; esse divórcio passa também pelo confronto com os "outros", monolíticos, vivendo uma "felicidade opaca e animal", imersos cegamente na corrente do devir. Essa relação contundente patenteia-se na linguagem familiar, coloquial mesmo, terminando enfaticamente pela reafirmação da individualidade.

Mergulhando em busca da Verdade no Passado - ou na ideia arquetípica do Passado, como o demonstra a caracterização do Tejo ou do céu, por exemplo - o sujeito poético verifica que tudo isso é irrecuperável e só fica a sensação de não ser o mesmo que aí viveu.

Entre o otimismo exaltado e a depressão (real ou fingida, como artifício estético) poderão ser citados múltiplos poemas de Álvaro de Campos.

(in EN 1989 – 1ª fase, 1ª chamada)

 

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Receita para fazer o azul, Nuno Júdice


 

RECEITA PARA FAZER O AZUL

 

Se quiseres fazer azul,

pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,

que possas levar ao lume do horizonte;

depois mexe o azul com um resto de vermelho

da madrugada, até que ele se desfaça;

despeja tudo num bacio bem limpo,

para que nada reste das impurezas da tarde.

Por fim, peneira um resto de ouro da areia

do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.

Se quiseres, para que as cores se não desprendam

com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.

Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez

ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre

na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor

até à altura dos olhos, e compare-la com o azul autêntico.

Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que

possas distinguir entre uma e outra.

Assim o fiz - eu, Abraão bem Judá Ibn Haim,

iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,

algum dia, imitar o céu.

 

Nuno Júdice, Meditação sobre Ruínas. Lisboa, Quetzal, 1994

 



Indica as várias fases do processo de criação da cor azul, segundo o poema.

Exemplo de resposta esperada:

  1. Colher o céu – Pegar num pedaço de céu e colocá-lo numa panela grande.
  2. Aquecer no horizonte – Levar a panela ao lume do horizonte.
  3. Misturar o vermelho da madrugada – Mexer o azul com restos de vermelho até dissolver.
  4. Filtrar as impurezas – Despejar a mistura num bacio limpo para eliminar resíduos da tarde.
  5. Adicionar ouro do meio-dia – Peneirar partículas douradas da areia até fixar a cor.
  6. Fixar a cor com um caroço de pêssego – Queimar um caroço de pêssego para evitar desbotamento.
  7. Comparar com o azul autêntico – Verificar se o tom criado se assemelha ao céu verdadeiro.

Cria uma receita poética inspirada no texto, escolhendo um dos títulos abaixo:

  • Receita para fazer um professor de Português
  • Receita para fazer um professor de Matemática
  • Receita para fazer um professor de História
  • Receita para fazer um professor de Inglês
  • Receita para fazer um amigo de verdade

Exemplo (Receita para fazer uma professora de Português):
"Se quiseres fazer uma professora de Português,
pega num verso de Camões e une-o a um suspiro de Florbela Espanca;
depois, amassa tudo com a paciência das estações,
até que as palavras se tornem mel na boca.
Tempere com um pouco de loucura de Pessoa
e deixe repousar sob o luar das gramáticas antigas.
Por fim, adicione um punhado de histórias sem fim,
para que nenhum aluno se perca no caminho das letras."

Critérios de avaliação sugeridos:
 Originalidade – Uso de metáforas e elementos criativos.
 Estrutura – Seguimento do formato do poema (instruções em versos).
 Coerência temática – Relação clara com o título escolhido.

 

Adaptado de: #EstudoEmCasa. Leitura e Escrita 5.º ao 6.º ano Bloco n.º 12. Disponível em: https://estudoautonomo.dge.mec.pt/sites/default/files/inline-files/Leitura%20e%20escrita%2056%20%2812%29.pdf


quinta-feira, 22 de maio de 2025

A febre do que me suponho, Fernando Pessoa

 


A febre do que me suponho

Tolda-me a fronte de o pensar.

Mas, se penso, somente sonho,

Porque a febre me faz sonhar.

 

Num intervalo de mim mesmo

Durmo desperto sem razão,

E sou um encontrar-me a esmo

Entre silêncios em desvão.

 

Delírio de quem o não tem,

Sonho que não me faz dormir –

Isto não é nem mal nem bem,

Não é pensar nem é sentir.

 

[15-9-1934]

Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935 e não datada, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, Assírio & Alvim, 2006

 


Fernando Pessoa para exame - 12.º Ano. Guia Prático de Preparação para o Exame Nacional - 12.º Ano, Andreia Sousa e Regina Carvalho. Areal Editores, 2020. Recurso disponível em: https://recursos.portoeditora.pt/recurso?id=24517312




quarta-feira, 21 de maio de 2025

Olha-me rindo uma criança, Fernando Pessoa


 

 

Olha-me rindo uma criança

E na minha alma madrugou.

Tenho razão, tenho esperança

Tenho o que nunca me bastou.

 

Bem sei. Tudo isto é um sorriso

Que é nem sequer sorriso meu.

Mas para meu não o preciso

Basta-me ser de quem mo deu.

 

Breve momento em que um olhar

Sorriu ao certo para mim…

És a memória de um lugar,

Onde já fui feliz assim.

 

[1930]

Fernando Pessoa, Poesia 1918-1930, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Freitas, Madalena Dine, Lisboa: Assírio e Alvim, 2006, p. 430