domingo, 6 de julho de 2025

como soberbas são as manhãs, Álamo Oliveira



 como soberbas são as manhãs


josé – meu filho
nascido do feno e das vertigens
álamo da esperança platinada
cheira à resina da manhã;
tem gestos de oliveira brava
fala por búzios e por ventos
come os próprios versos com hortelã.

nasceu frio
como rebento de fim de inverno
e mora na concha da alvorada
sabe de gebas e de guerra
atira sortes ao ar
tem dedos de lã fiada.

surdo      mudo      envaidecido
josé é louco      profundo de raiz
anda      sem raiva      a lançar sementes
nas terras do seu país.

veste basalto.
usa sapatos.
aperta ideias com o cinto.
                     (até costuma passar por aqui.
                     os que o conhecem
                     sabem que não minto).

dizem que ama
                   que bebe
                           que fuma
que é vendedor de talismãs,
mas também dizem que é tão soberbo
como soberbas são as manhãs.

 

José Henrique ÁLAMO OLIVEIRA (1945-2025), Versos de todas as luas - Poesia reunida 1967-2020. Lajes do Pico, Companhia das Ilhas, 2021

 

Álamo Oliveira, por Rui Melo, 2020

 

ÁLAMO, O SEMEADOR

Aceitei com muita honra o convite que o Álamo Oliveira me fez para dizer aqui umas palavras em jeito de comemoração do seu aniversário de escritas. Não tanto pelo facto de nos conhecermos há muitos anos – o Álamo é do Raminho, eu da Serreta –, e de ao longo de todo este tempo termos vindo a cultivar uma amizade sólida, ainda que não muito frequente, mas sobretudo porque se trata de uma personalidade que traz dentro de si a nossa ilha Terceira. O que é muito, e muito complicado.

Na verdade, é quase impossível falar-se dos Açores, e da Terceira em particular, sem que por alguma razão se não refira o Sr. Álamo Oliveira, ou, mais simplesmente, «o Álamo». Porque é assim que no trato comum se designam aquelas pessoas – como acontece com Camões, Camilo, Eça, Pessoa, Nemésio ou Natália – que não necessitam de distintivos nem de nomes dobrados para serem identificadas por todos. Aqui, temos «o Álamo» – simplesmente «Álamo».

E quem é então este homem?

A condição que o identifica mais directamente é a de um escritor com dezenas de livros publicados durante 60 anos, distribuídos por poesia, teatro, romance, conto, ensaio e crítica literária. Mas, para além de escritor, Álamo também tem obra feita nas artes plásticas, que incluem exposições individuais e ilustrações e capas de livros de outros autores, na encenação teatral (foi o fundador do Grupo de Teatro Alpendre, o primeiro e durante muito tempo único grupo de teatro dos Açores com produção permanente, e seu director por muitos anos), na criação de suplementos literários e artísticos que se constituíram em espaços de discussão e de inovação, e em produções que se inscrevem na chamada «cultura popular», tendo escrito, que eu saiba, inúmeros assuntos de danças e bailinhos de carnaval, bem como letras de marchas das festas sanjoaninas.

É possível que tenha trabalhado ainda em muitas outras áreas, que até se venha a aventurar pelos libretos de ópera – sei lá! –, mas não há cabeça humana que se possa lembrar, assim de repente, da variedade e quantidade de obras que este nosso Álamo nos tem vindo a legar – à maneira de um agricultor que, pacientemente, ano após ano, quer chova ou faça sol, vai lançando as suas sementes no grande solo que é a alma da nossa gente – que delas também, avidamente, ano após ano, quer chova ou faça sol, vai colhendo as novidades que a alimentam. Sem este nosso Álamo, seríamos um povo subalimentado – e aqui faço recurso aos famosíssimos versos do poema «A Defesa do Poeta» de Natália:

Ó subalimentados do sonho!

A poesia é para comer.

De entre toda esta vastíssima produção, não sei bem qual o género ou as obras que mais prefiro – porque ele há-as para todos os gostos. Começando pela poesia, é de salientar a beleza formal dos seus poemas, a clareza dos seus versos e da linguagem que utiliza, as emoções e a sensualidade que muitos deles transportam, o ritmo encantatório dos versos frequentemente inspirado na poesia popular e, sempre constante, a manifestação do «eu» do poeta que observa, interpreta e sente para depois exprimir – assumindo-se como uma voz que nos interpreta e interpreta a identidade da ilha que todos nós trazemos dentro de nós, como ele tão bem exprimiu num dos seus primeiros livros:

ainda hoje se ouve a angústia do vento

percorrer as coordenadas do povo no mapa

(«Fábula da Ilha, Fábulas, 1974)

Ou seja, a acção do poeta que percorre a ilha e as suas gentes, as identifica e classifica, para depois delas nos falar nos seus poemas. Mas!, escrever é sempre um trabalho difícil, porque o poeta tem consciência de que tem que encontrar as palavras e as imagens certas para descrever, sem as deturpar, as realidades que observa e interpreta, sob pena de cair na vulgaridade ou no lugar-comum. E isso cria angústias.

Mas, como poeta, tanto quando se inspira nos ritmos e no vocabulário da poesia popular tradicional, como quando se situa num patamar de expressão formal mais erudita, Álamo encontra, quase sempre, as palavras certas e adequadas para nos dar as coordenadas da nossa gente e da sua identidade cultural. E, naturalmente, dele próprio e do seu pensamento – porque, muito frequentemente, toma posição sobre as realidades sociais, em praticamente todos os seus livros de poesia ou de ficção, sobre as condições de vida das pessoas, sobre a realidade política do país, e sobre o fado de ser ilhéu e as dificuldades que isso representa na vida das pessoas. E não me refiro ao ilhéu estereotipado – que é uma construção de intelectuais, baseada em lugares-comuns que nada dizem ao povo de onde foram plagiados –, mas a toda uma comunidade que, durante séculos, teve que se adaptar a um meio geográfico que tem tanto de belo como de ingrato para a sobrevivência das pessoas e para a criação de oportunidades para que elas possam ter uma vida decente.

É na ficção – contos e romances –, mas também nas crónicas, que o nosso Álamo mais se tem afirmado como uma voz próxima das pessoas de quem fala e para quem escreve.

Senhor de uma capacidade de observação e de transfiguração pela escrita, com a frontalidade e, por vezes, a ingenuidade de um escritor autodidacta que não foi contaminado pelas teorias académicas – que travam e moldam a criatividade do escritor em nome de modelos artificiais que variam consoante o tempo, os gostos e os contextos –, o nosso Álamo tem vindo a produzir alguns livros relevantes no contexto da literatura nacional, e incontornáveis no contexto da literatura de autores açorianos. Cabe aqui dizer quanto me é grato constatar que uma pequena editora açoriana, a «Companhia das Ilhas» (das Lajes do Pico), está a republicar a obra completa de Álamo Oliveira.

Ao mesmo tempo que Álamo foi, digamos, abandonando a poesia para se dedicar mais à ficção, vamos acompanhando a saída dos seus livros com uma impressionante regularidade – nos quais encontramos personagens muito bem construídas, porque autênticas, na medida em que são claramente, e sem que o autor recorra a subterfúgios ou dissimulações, inspiradas na sua própria história pessoal e nas suas experiências de vida.

Livros como «Burra Preta com uma Lágrima» (1982), «Até Hoje. Memórias de Cão» (1986), «Contos com Desconto» (1991), «Pátio d’Alfândega, Meia Noite» (1992), «Com Perfume e com Veneno» (1997), «Já não Gosto de Chocolates» (1999), «Murmúrios com vinho de Missa» (2013), «Marta de Jesus. A Verdadeira» (2014), «Contos d’América» (2020) ou «O Sábio da Miragaia» (2021) ficarão para a história como documentos autênticos de uma realidade cultural e social por onde passa a pobreza, o isolamento, o pequeno drama pessoal e familiar, a falta de oportunidades, a emigração e os consequentes desenraizamentos e depois aculturações, o conformismo atávico mas também a coragem para cortar com os condicionamentos geográficos (a emigração) e sociais (em temas como a sexualidade, por exemplo), a sensualidade natural, o vocabulário e os modos de produzir populares e tradicionais, a religiosidade e a sua subversão instintiva, o diz-que-disse tão próprio de meios pequenos e isolados em que toda a gente se conhece – enfim, uma realidade que nem a sociologia, nem a antropologia nem a história, isoladamente, algum dia conseguiriam descrever. Porque a realidade de uma ilha é todo um universo, uma espécie de microcosmos, onde ocorre de tudo o que é próprio do humano, mas em que nada pode ser entendido se não em articulação com tudo o resto – e essa realidade e essa articulação são-nos transmitidas, naturalmente na sua perspectiva e com a sua ideologia pessoais, mas sempre de um modo global e holístico, por Álamo Oliveira nos seus livros.

Poderemos, aqui e ali, achar que provavelmente a solução técnica ou artística por ele encontrada não terá sido a melhor, ou que não é como cada um de nós acha que deveria ter sido, mas acabamos por concordar que é uma solução possível, que a obra está feita e disponível, e que nos últimos tempos ninguém conseguiu fazer melhor.

De facto, no que diz respeito à vivência açoriana, e da Terceira em particular, será necessário recuar até Nemésio, e de um modo particular aos seus romances «Varanda de Pilatos» (1927) e «Mau Tempo no Canal» (1944), à novela «Negócio de Pomba» (1937), ou ao roteiro afectivo que é «Corsário das Ilhas» (1956), para encontrarmos um registo da nossa realidade tão exaustivo como aquele que Álamo Oliveira nos dá nos seus livros. E isso é obra! São autores e obras diferentes?, pois são; situam-se em patamares diferentes?, talvez: mas a isso apenas o tempo dará resposta. E o tempo em que vivemos é ainda o tempo em que Álamo Oliveira está a construir a sua obra.

Aquele que será talvez um dos seus livros mais importantes e mais conseguidos literariamente é «Até Hoje. Memórias de Cão» (1986): um romance poético e nostálgico, que aborda dois temas principais e coincidentes no tempo e no espaço: a guerra colonial (neste caso, na Guiné), que é o cenário e o contexto, e a relação amorosa entre dois soldados, que é o assunto e a acção. O tema da guerra colonial tem sido, paradoxalmente, muito pouco tratado na literatura portuguesa, salvo excepções como Carlos Vaz Ferraz («Nó Cego»), António Lobo Antubes («Os Cus de Judas») – e os nossos João de Melo («A Memória de Ver Matar e Morrer»), Martins Garcia («Lugar de Massacre») e Cristóvão de Aguiar («Braço Tatuado»); porém, neste livro, Álamo não retrata a guerra por meio de descrições e relatos de cenas militares, mas antes os comportamentos e emoções, mais o ambiente em que vivem, das personagens que são os soldados convocados – e que, mais do que estarem na guerra, o que estão é fora das suas referências culturais, ou seja, das suas zonas de conforto. Desenraizados em busca de raízes. Por outro lado, a relação amorosa entre os dois soldados que são os protagonistas da história é tratada com muita naturalidade e elegância, sem clichés nem lugares-comuns, e sobretudo sem folclorismos, de modo que aquilo que ressalta da história não é a homossexualidade das personagens (que é um acidente: eles eram eles e estavam ali, o que nos faz recordar a justificação que Michel de Montaigne, contemporâneo de Camões, deu para explicar a sua relação com Étienne de La Boétie: «porque era ele, porque era eu»…), mas a relação amorosa em si, vivida num contexto de solidão e de desadequação. Este será, muito provavelmente, um romance importante na literatura portuguesa do último quartel do século XX.

Mais recentemente, Álamo deu-nos um novo romance, em que uma vez mais se revela um escritor inovador na técnica de narração e que tem por título «O Sábio da Miragaia» (2021). Livro de memórias também, nele encontramos uma personagem enigmática, que é um homem já idoso que vai relatando a um jovem, em ambiente de conversa informal (com umas cervejas pelo meio), um conjunto de acontecimentos vividos por personagens castiças da nossa ilha e da nossa cidade, nas quais qualquer um de nós identifica tipos humanos, mas também coisas e lugares, que todos nós conhecemos. Neste sentido, este romance dá-nos um verdadeiro friso de personagens tipificadas que representam a vida de Angra do Heroísmo (que nunca é nomeada directamente) durante várias décadas, mesmo antes do 25 de Abril de 1974 – até aos actuais tempos de pandemia em que o próprio livro foi escrito. A íngreme rua da Miragaia, metonímia da ilha e da cidade, em cujas cercanias funcionavam instituições como a PIDE ou o Seminário, mas também o pequeno comércio, a prostituição, a crendice, o mexerico ou a má-língua, é uma espécie de palco por onde desfilam personagens portadoras de histórias pessoais que giram entre a comédia e o drama, entre a variedade e o crime, entre os bons comportamentos e os maus costumes, enfim, entre as representações que fazemos de nós próprios e os juízos que os outros fazem de nós. Como acontece nos nossos bailinhos de carnaval.

Sessenta anos de escrita podem ser muito tempo na vida de uma pessoa qualquer, e de um escritor em particular. No caso de Álamo Oliveira, esse tempo traduz-se numa impressionante quantidade de livros publicados e uma apreciável actividade de intervenção social e cultural, uma e outra felizmente reconhecidas pelas pessoas e instituições que têm a obrigação de valorizar os seus melhores – como acontece com a presente homenagem. E, nesse aspecto, Álamo Oliveira pode considerar-se um felizardo: poucos serão os escritores ou artistas que foram assim tão reconhecidos e valorizados em vida. Justamente.

Esse reconhecimento, mas sobretudo a obra que o justifica, são, no fim de contas, o resultado e a matéria de uma enorme pujança criativa – o que nos leva à certeza de que ainda teremos Álamo por muitos mais anos: tenhamos nós vida, saúde e arcaboiço para, entretanto, o irmos acompanhando…

Haja saúde, ó Álamo!

 

Luiz Fagundes Duarte. Texto da conferência, a pedido do autor, para a cerimónia de comemoração dos seus 60 anos de escrita. Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo, 20-06-2021. Disponibilizado por Luiz Fagundes Duarte na sua página do Facebook, em 06-07-2025

 





sábado, 5 de julho de 2025

Espelho inicial, Maria Teresa Horta

 A IDEIA DO PRIMEIRO LIVRO

 

Sentia-se livre. Embora casada, tinha a sua vida. Estava implícito que seria assim. Raul Boaventura trabalhava na SONAPE, Teresa dispunha dos seus dias. A faculdade era uma novidade e um espaço feminino. Os rapazes, quando iam para aqueles lados, sentiam-se intimidados com tantas mulheres. Teresa escrevia de lápis na mão e caderno no colo. Escrevia em qualquer lugar, mal o poema lhe acontecia. Não era uma boa dona de casa, odiava o tempo que se perdia em tarefas sem nexo. Dirá que não tem vocação para a lida da casa. O marido pouco se importava com isso. Estava apaixonado, Teresa podia tudo, não havia qualquer problema. Gostava dos poemas que ela escrevia e o orgulho neles era tanto que os levou ao seu chefe, também ele adepto das coisas escritas e da literatura. O superior hierárquico de Raul Boaventura não tinha a menor dúvida – aqueles poemas precisavam de ser publicados: «O que está a sua mulher a fazer? Devia publicar!» E perguntou: «A sua mulher não tem um poeta de quem goste»

Raul falou em António Ramos Rosa (1924-2013) e o chefe foi categórico: urgia enviar os poemas ao autor. Para ele dizer de sua justiça, para que os poemas fossem lidos por outras pessoas, pelo maior número de pessoas possível. O marido ficou orgulhoso e estupefacto. Acreditava no talento da mulher, mas não esperava tanta euforia. Aconselhou Teresa a entrar em contacto com António Ramos Rosa. À época, o poeta residia em Faro, no Algarve, na cidade onde nasceu.

Com alguma falta de jeito, Teresa dispõe-se a escrever a António Ramos Rosa, começando por pedir desculpa pelo abuso. Mandou alguns poemas e deixou o número de telefone, para contacto posterior, e pensou que o mais certo era nunca obter resposta. Por um lado, desejava saber se o que escrevia possuía algum valor. Por outro, sabia, no seu íntimo, que as suas palavras se alinhavam de forma distinta, reflexo da jovem mulher que era e de quem tinha sido na sua infância dorida. Dois dias depois de enviar a carta, o telefone tocou.

Não será de somenos afirmar que o mundo de Teresa mudou naqueles segundos em que se dirigia ao telefone preto, sossegado em cima da mesinha. Não esperava aquela chamada. Talvez tenha pensado que seria uma das irmãs, Chilinha ou Rosarinho. Corria o mês de Agosto. Estava calor e era já o meio da tarde. Estava sozinha em casa. Teresa atendeu a chamada e ouviu a pergunta e a afirmação: «Maria Teresa Horta? Aqui António Ramos Rosa.»

Podemos imaginar as suas pernas a tremer, o estômago a encolher-se, as mãos a suar. Teresa viveu o momento com uma alegria imensa. O poeta dizia-lhe que tinha obrigatoriamente de publicar e que, para mais, existia uma ressonância nos seus poemas que a aproximam de outros poetas portugueses. Havia ali um espírito, uma família, garantia-lhe. «Temos de publicar este seu livro, Teresa!» Ela agradeceu, corou, sorriu de prazer, sentiu-se afogueada de contentamento. Era o seu corpo a reagir ao imenso prazer que sentia por ouvir aquelas palavras.

Ao lado de António Ramos Rosa estava outro poeta, Gastão Cruz (1941-2022), que pedia para falar com ela e lhe disse, ao telefone: «Gosto muito dos poemas, Teresa.» Adoptaram-na à distância e, para garantir esse elo, deram-lhe o número de telefone de Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), então namorada de Gastão Cruz. Exortaram Teresa a procurá-la e, acrescentaram, era urgente encontrarem-se também com Luiza Neto Jorge (1939-1989). Todos pertenciam a uma família. Como poetas de uma geração, reconheciam-se e ressoavam uns nos outros. Gastão Cruz afirmou, ainda ao telefone: «Consigo, Teresa, isto parece um grupo. O que acha se publicarmos juntos?» Inesperadamente, Teresa era acolhida. Elogiada. Diziam-lhe que pertencia. Fizeram-na poetisa nesse mesmo instante – não para ela, mas para o mundo.

Foi invadida por uma profunda alegria. De surpresa e de confirmação. Sem demoras, telefonou a Fiama Hasse Pais Brandão. Gastão Cruz já a tinha avisado: «Temos nova poetisa.» Combinaram encontrar-se na Universidade de Lisboa, que ambas frequentavam intermitentemente. A empatia foi imediata, proporcionou-se um certo reconhecimento na outra, de quem eram e do que escreviam. Partilharam alguns poemas, reconheceram-se. Nunca mais deixariam de se dar, mesmo que a vida as afastasse, a distância física era quase nada comparada com o que as unia. Na faculdade, Fiama e Teresa tornaram-se inseparáveis. Sofriam do mesmo mal. Sempre que calhava terem um teste, um exame, fosse a que disciplina fosse, ambas tinham mostras súbitas de febre. Chegavam aos 38, 39 graus. Era o corpo a negar-se a cumprir; a cabeça a pedir outros rumos. Não eram felizes ali, queriam terminar os estudos e, ao mesmo tempo, dispensavam aquele martírio de estudar coisas pouco apelativas, porque ambas sabiam qual era o destino, não havia margem para dúvidas: escrever, descobrir-se na escrita e ensaiar o avesso da vida, através da palavra. Eram – são – poetisas. O arrastar de cadeiras e trabalhos, exames e outras agruras académicas trouxe o cansaço e ambas acabaram por abandonar a faculdade no terceiro de cinco anos de curso.

Teresa instalou-se no maravilhamento. Foram dias de um abismo consolador. Ramos Rosa tornou a falar-lhe, no sentido de organizar um livro e de o enviar para Faro. Ele trataria de tudo para o imprimir, seria mais barato do que imprimir em Lisboa. Ela assim fez. Escolheu alguns poemas, hesitou, escreveu novos poemas, fez opções e começou um processo de construção do primeiro livro que usará em todos os outros: escrita à mão, papéis acumulados, a este poema segue-se este, depois aquele. Pára, recomeça, muda de ideias. Sem hesitação, nomeou o seu primeiro livro: Espelho Inicial. Por esses dias, o pintor Manuel Baptista (1936) ainda não partira para a capital francesa, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian; encontrava-se a passar férias em Faro, a terra que também o viu crescer. António Ramos Rosa desafiou-o: «Não farias tu a capa do primeiro livro da Teresa Horta?» O futuro artista aceitou e concebeu a capa que, até aos dias de hoje, Teresa tem como a capa perfeita.

 

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António Ramos Rosa tratou de tudo, tal como disse que faria. Teresa quase deixou de respirar quando, por fim, lhe chegou a casa uma caixa com ripas de madeira, bem pregadas. Estava ali o seu primeiro livro. E ela não conseguia vê-lo, apenas vislumbrar o que lá vinha, pelas gretas da madeira. Não tinha força física para abrir a caixa e, apesar de múltiplos esforços, teve de ter ajuda para abrir a caixa e pegar no seu primeiro livro. «Deu-se tudo ao mesmo tempo, foi uma coisa das deusas, houve interferência! Foi uma coisa natural, sem entraves.»

 

A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 129-133.

 

 

terça-feira, 24 de junho de 2025

Maria Teresa Horta - uma ilha só dela

Saudades do Faial, Facebook, 12-10-2024

 

UMA ILHA SÓ DELA

[…]

A Horta, cidade com o seu nome, na ilha que julgava ser dela, entra-lhe no sangue para todo o sempre. Teresa criou o hábito, que ainda mantém, de verificar o boletim meteorológico da ilha. Prometeu voltar, não sabe se o fará.

Há um episódio que permanece intacto. Existe uma estátua do infante Dom Henrique perto da estrada e, depois, um jardim com muitas árvores. Do parapeito de um miradouro chegava-lhe o mar hipnotizante. Camila pegava em Teresinha ao colo para verem aquele oceano, agressivo, e a ilha do Pico, que Teresinha acreditava – ainda hoje o mantém – ser o lugar onde viviam as feiticeiras e bruxas. Estava convencida disso e dizia à avó: «Não vês as bruxas?» E ela respondia: «Acho que vejo uma sombra.» O que a fascinava, e que ela observava sem sossego, eram os anéis de nuvens sucessivos, a adornar a ilha, a escondê-la e a descobri-la, numa dança permanente que a menina considerava ser só para si. «Às vezes, penso que talvez seja a razão para esta minha paixão por anéis, nunca entendi exactamente. A minha mãe usava anéis, o Pico tinha anéis, eu uso-os em quase todos os dedos da mão.»

Camila, nesse dia, levou as meninas para um passeio, para as tirar da frente de Carlota. Teresinha carregava consigo um livro da colecção Manecas. Belinha estava irrequieta, brincava a subir e descer o banco de jardim. Chilinha mantinha-se bem tapada no carrinho de bebé. Teresinha, perturbada com o vaivém da irmã, resolveu afastar-se e a avó chamou-a: «Teresinha, volta para aqui.» Regressou ao banco e, assim que se sentou, o banco descaiu para o precipício, em direcção ao oceano. Camila ficou em pânico, Belinha não parava de se mexer e Teresinha percebeu que aquilo que as prendia eram cabos de aço. Deu-se um deslizar contínuo que era acompanhado por gritos – eram as pessoas que estavam por ali, que assomaram para ver, «Pousei os olhos no Atlântico e fiquei apaixonada. Estava tudo ali, aquela magia; ia em direcção àquilo sem medo.»

Camila não gritava, não chorava. Em aflição silenciosa, temtava passar a neta para os braços de alguém. A memória fixará uma imensa lentidão associada à queda e um barulho desconexo. Camila consegue empurrar o carro de Chilinha para longe, mantém-se no banco com as outras duas netas. Belinha insistia em pular, Camila mantinha-a agarrada pelo pulso. Juntaram-se algumas pessoas. «Conseguiram agarrar-me debaixo dos braços. Entendi esse agarrar como se fosse um sítio de obscuridade. Tudo o resto estava sem mácula, a ilha, o mar e eu, maravilhada. Não me teria importado de ter ficado por lá perdida.» Teresinha foi puxada até estar com os pés bem assentes na terra, depois, no último minuto, Camila foi salva. Já estava pendurada no vazio. Teresinha fitou-a, aterrorizada. «O que recordo são as pessoas a olharem para um buraco e depois surgir a minha avó.» Nesse instante, em que as três já estavam a salvo, em que o susto já passara, as pessoas vociferavam e começavam a caminhar na direcção de um homem que não se tinha aproximado. Gritavam com ele, chamavam-lhe nomes, acusavam-no e, por fim, batiam-lhe. «Era um desgraçado de um judeu alemão que tinha procurado refúgio na ilha E as pessoas pensaram que era ele o culpado do que tinha acontecido. Era preciso culpar alguém e o judeu estava ali à mão. Diziam: «Ele é culpado de tudo!”»

Jorge Horta, que tinha sido prevenido do que se tinha passado, chegou esbaforido do hospital, perdido de medo – estariam a mãe bem? E as filhas? Deparou-se com as acusações e os maus-tratos e tentou impedir as pessoas de continuarem a culpar quem não poderia ter culpa. Teresinha repetiu: «Ele não teve culpa, o senhor não teve culpa.» O pai, a tentar salvar o senhor, gritava que tudo aquilo era um disparate. Era médico, as pessoas conheciam-no e respeitavam-no, rapidamente aquele tumulto terminou. De volta a casa, o evento foi relatado e repetido várias vezes. Carlota pediu pormenores, Jorge ouviu, atento. «Tive consciência, pela primeira vez, de que havia uma guerra e que as pessoas podiam ser acusadas; de que alguém tinha “a culpa da guerra”, a culpa que derivava de ter fugido da guerra.» 

Décadas mais tarde, no livro Meninas, a Teresa-escritora sítio escreverá sobre este episódio. O conto chama-se «Ondas» e é também uma homenagem a Virginia Woolf, que se suicidou no ano em que Teresinha poderia ter sido arrastada até ao mar, sem destino seguro. No conto, lê-se:

«Lembro-me da queda e também de não ter sentido nenhum desassossego, primeiro aturdida e logo sufocada de maravilhamento diante do esplendor, enquanto ela durou no sentido das ondas, comigo perfeitamente imóvel no centro da voragem. O rugido do mar a tornar-me surda para os gritos da minha avó de pé a meu lado gesticulando, e para o cada vez mais longínquo choro da minha irmã, que ficara do lado de fora do buraco lá no alto, de onde pouco a pouco nos íamos distanciando» (HORTA, Maria Teresa, Meninas, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2014).

A ilha que torturava Carlota era o lugar encantado de Teresinha. Nunca dirá o Faial, falará sempre da Horta, essa terra que treme. Para Teresinha, os pequenos tremores eram momentos de maravilhamento. Na sala de jantar, existia um armário de madeira com portas de vidro, um quadriculado de vidrinhos. Lá dentro, estavam as loiças mais bonitas, expostas e por usar. Na parte superior, presas por pequenos camarões de ferro, perfilavam-se as chávenas de chá Vista Alegre. Tudo aquilo tilintava sempre que havia um tremor de terra. Teresinha não sabia porquê, mas achava graça. O que é um tremor de terra? Achava a possibilidade de a terra estremecer um gesto lindo. Certa vez, adulta, a viver em Lisboa, estava ao telefone com o escritor José Cardoso Pires e deu-se um tremor de terra. O escritor fugiu para a rua, apavorado com a possibilidade de o tecto lhe cair em cima da cabeça. Teresa ficou especada com o telefone na mão, não percebeu o medo que o amigo sentiu. Mais tarde, Cardoso Pires voltou a telefonar e perguntou: «Não sentiste o tremor de terra?» Teresa respondeu-lhe que sim, acrescentando: «Mas que mal tem um tremor de terra?», Para ela era algo encantatório, fazia com que as chávenas brincassem umas com as outras.

Era impossível não viver os grandes acontecimentos da ilha. Um deles seria motivo de notícia e pelas piores razões. No dia 13 de Junho de 1942, nas oficinas da Fayal Coal, junto ao Largo Doutor Manuel de Arriaga, ocorreu uma explosão violenta que se fez sentir em toda a Horta. Destruiu o edifício da Fayal Coal e alguma envolvente. O barulho foi tremendo, Carlota assomou à janela, Teresinha alcançou a cadeira mais próxima, trepou e foi ver o que acontecera lá fora. Queria saber a razão do barulho. Quando chegou ao parapeito, uma parte da ilha parecia ter desaparecido, só se via fumo. Numa janela, ao lado daquela onde estava, viu um dedo de um homem com um anel, um dedo que resultava da explosão. «Nunca mais me esqueci disto. Foi misterioso, porque ninguém explicava nada às crianças. Morreram pessoas. Explodiram» A criança que era poderia ter sentido apenas o susto, ou a náusea de ver um membro amputado, colado ao vidro da sua casa. Mas não foi assim. Teresinha disse: «Mãe, está ali um dedo.» Viu a mãe: ela tinha os olhos fechados de uma maneira afincada. Não queria ver. E Teresinha repetiu:«Mãe, está ali um dedo.» Sentiu tudo como se fosse um filme, como se não fosse a vida real.

Era de manhã muito cedo. Jorge Horta apressou-se a ir para o hospital. A pressa foi tanta que levou vestidas as calças por cima do pijama. Teresinha não percebeu a urgência e pareceu-lhe absurda a aflição paterna. Mais tarde, soube-se que, na oficina, se procedia a uma soldagem a altas temperaturas a uma pequena bóia de ferro. Esta tinha sido encontrada há mais de vinte anos e era utilizada para amarrar pequenas embarcações. A «pequena bóia» era na verdade uma bomba, que terá chegado ali durante a Primeira Guerra Mundial.


Fernando Manuel, "Senhor dos Passos Cidade da Horta 2020", Facebook, 29-03-2020

 

FICAR COM OS ANJOS

Era então uma menina calada e envergonhada. Sentia que os desconhecidos traziam com eles o poder de um qualquer perigo. Importava-lhe a mãe, a avó, o pai, as irmãs e pouco mais. Não precisava de alternativas, outros rostos, histórias diferentes. Tudo o resto, tudo o que poderia interferir nessa bolha familiar, quebrava o encanto e Teresinha repudiava. Mas o deslumbramento improvável foi capaz de a libertar da timidez, da fundura do seu sossego. Era o dia da Procissão do Senhor dos Passos, um domingo soalheiro. A família foi para a varanda ver passar a procissão. Teresinha observou tudo com pasmo e intensidade. Escapou da varanda, desceu as escadas e seguiu o cortejo. Era uma menina doentiamente tímida. Sem descolar os olhos do chão, manteve-se em silêncio; a procissão surgia-lhe como um apelo. «Vi anjos, meninos-anjos e meninas-anjo. Eu, tão envergonhada que era, meti-me na procissão a seguir os anjos, já apaixonada.» Jorge Horta descobre a filha a andar ao lado dos anjinhos. «A Teresinha vai ali?», perguntou incrédulo. Carlota não deu importância e terá dito: «Ah, não... talvez não seja.») Jorge correu na direcção da filha mais velha, Carlota foi no seu encalço, Camila ficou a ver tudo da varanda, tomando conta das outras duas netas. O pai aproximou-se da procissão com rapidez, pegou-lhe ao colo e afastou-se. «Tiraram-me dos anjos e eu fiquei desolada. Até hoje. Desatei a espernear e a chorar. Não queria sair daquela coisa mágica, nunca tinha visto uma procissão. Eram anjos. Eu tinha encontrado os anjos.» Não vislumbrou o andor com o Senhor dos Passos, fixou-se naquela visão improvável de anjos feitos crianças, e guardou aquela imagem de modo tão único, que afirmará que os anjos a invadiram. Na sua poesia, na ficção, os anjos são uma constante -humanizados, sexualizados, tangíveis. «Fazem parte de mim.»

«Foi nessa altura que mais do que as vi adivinhei as asas brancas, filas à minha frente, anjos de asas translucidas de verdade, quem sabe… E num arremesso, num arroubo, numa pressa ansiosa e desmedida corri num ápice, célere, esquecida de tudo o mais, pois os anjos esperavam-me.» (HORTA, Maria Teresa, «A Ilha» in Meninas, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2014).

 

A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 38-44.