segunda-feira, 25 de setembro de 2023

AO PRINCÍPIO ERA O LIVRO (Natália Correia)

Tertúlia em casa de Natália Correia.

 

O livro é como um rio. Tem a sua nascente e a sua foz. E assim como o rio se mistura na vastidão oceânica, funde-se o livro na massa do saber universal. A sua nascente é o autor. A foz, o leitor. Mas esse percurso não seria possível se dele não fossem motores o editor e o livreiro, figuras por vezes obscuras, mas não menos importantes na marcha do livro para o seu destino universal.

Contudo não é sem razão que hoje se levanta um alarme. Agouros tecnológicos de entre os quais avulta a aldeia global de MacLuan vaticinam, se não a liquidação do livro pela hipnose dos meios dos meios audio-visuais, pelo menos a grande redução do seu espaço. Ai de nós se assim for. Porque a audiovisualidade por mais apuradamente cultural que seja e dificilmente o será, não permite a retenção da palavra, o voltar atrás que a escrita faculta, elementos indispensáveis à reflexão, do exercício da memória e ao despertar da subjectividade cada vez mais apoucada pela tirania da massificação.

Dignificar o livro e promover a sua expansão é, pois, obra de quantos se empenham em salvaguardar os valores individualizantes que poderão resistir à imbecilização de uma humanidade puerilizada pelo igualitarismo da quantificação tecnológica.

Quando Gutemberg inventou o prelo tipográfico, alguns viram nesse meio de democratização dos conhecimentos obra faustica de um pacto com o diabo. E ainda Lope de Vega nela denunciava o perigo de abandalhar pela quantidade o que devia ser património da qualidade. Contudo, hoje, por ironia da mudança dos tempos e das vontades, é nesse produto nobre da tipografia que residem as virtudes da defesa do qualitativo da tecnologia globalista que despersonaliza e que desidentifica, que anula os indivíduos. Bem hajam, pois, os que nesta ilha confirmam a tradição da bibliofilia que tanto a tem ilustrado e a dotam com mais um instrumento de cultura. Porque esta é a própria condição do fortalecimento da personalidade açórica e da sua invulnerabilidade à usura de um Estado centralizador, que no seu narcisismo, se condena a afundar-se nas águas fatais da autocontemplação, tragicamente alheio a realidades indefectíveis como esta: açorianidade!

Natália Correia, “Ao princípio era o Livro” - discurso proferido aquando da inauguração da livraria Nove Estrelas, dirigida por José de Almeida, em 07-12-1981.

(Partilhado por Carlos Melo Bento, em https://www.facebook.com/carlos.melobento, 23-09-2023)


domingo, 24 de setembro de 2023

Não chores (Fernando Venâncio)

 

"NÃO CHORES"

 

Vivo actualmente num lar em Beja. Da minha janela, desenha-se a Oeste o perfil do casario desta capital do Baixo Alentejo. A vida sozinho, em Mértola, que eu adorava, tornara-se impossível. Sou muito bem tratado aqui, tenho de dizer, fiz uma boa escolha.

Há dias, enquanto uma auxiliar me mudava a cama de cima a baixo, outra fazia-me a barba. Gente de enorme simpatia e competência. Foi quando, ao regressar ao quarto na cadeira de rodas, pedi para me deixarem observar melhor a paisagem. Assim se fez. E então apontei: "Ali é o Sul."

Via-se o mais calmo e baixo quadro alentejano: montado, cerros a perder de vista. Uma das jovens senhoras adivinhou-me o pensamento. "Mértola", disse ela. Não retive as lágrimas. Além, 50 exactos quilómetros adiante, estaria a minha terra, onde vivi estes últimos sete anos.

"Não chore", ouvi-lhes em uníssono.

Mas não. Era de chorar o que eu ali mais precisava. Um choro muito íntimo, muito amargo e muito doce.

Sim, em certos momentos, o mais acertado é deixarem-nos chorar. É a melhor forma de consolo.

 

Fernando Venâncio, https://www.facebook.com/fmvenancio, 23-09-2023

 


quarta-feira, 20 de setembro de 2023

pequeno crime diário (Maria Judite de Carvalho)




 

UM LUGAR NO AUTOCARRO

 

Basta entrar num autocarro, num metropolitano ou num elétrico e olhar. É que vemos sempre coisas ou adivinhamo-las ou imaginamo-las, claro. Mas às vezes acontecem mesmo. Esta foi num autocarro – n.º 5, n.º 7, sei lá, eu e os números…

Sentada logo à entrada, uma menina de uns quinze anos muito bonita. Loiros cabelos verticais até aos ombros, nem um fora do lugar, sardas postiças e, sobre os joelhos, livros, cadernos e duas mãos cuidadas. Uma menina-mulher que talvez tivesse sido chamada e tido uma boa nota, porque nos seus olhos claros havia um brilho feliz. Não sei porquê mas pensei que ela devia ser estudiosa, muito eficiente, extraordinariamente atenta ao mundo apaixonante que a rodeava. Uma rapariguinha completa, há quem diga, como se as raparigas andassem por aí aos bocados.

A certa altura entrou um homem de uns sessenta anos, não mais, e, como todos os lugares estavam ocupados, deixou-se ficar na retaguarda. Era um homem bem conservado, bem vestido, um homem que devia ter sido interessante e que talvez ainda se julgasse capaz de interessar. Era também um homem bem-educado, viu-se depois. Depois, foi quando o olhar claro e lavado da rapariguinha se deteve nele, e ela se levantou, muito amável, para lhe oferecer o lugar. Sabia que se deve oferecer o lugar às pessoas idosas e aquele homem era para ela muito idoso, podia ser seu avô. Então…

Há muito que não vejo uma pessoa tão atrapalhada como aquele homem. Primeiro subiu-lhe ao rosto uma onda de sangue. Depois, em voz um pouco trémula, disse: «Obrigado, mas sinto-me perfeitamente de pé.» A rapariguinha, porém, queria por força levar a cabo a sua boa ação diária e insistiu. Que fizesse favor, que ela ia sair na paragem seguinte… Havia sorrisos em volta, pessoas bichanavam, o homem devia sentir-se horrivelmente infeliz. E acabou por se sentar, com um sorriso muito falso, quase esgar, para fugir aos olhares do carro inteiro.

A rapariguinha saiu, de facto, na paragem seguinte, e eu fiquei a perguntar a mim própria se ela já teria feito mais vezes bonitas ações daquelas. É possível que logo que chegasse a casa pegasse no seu diário – porque quase todas as meninas de quinze anos têm um diário – e escrevesse qualquer coisa à volta disto: «Tive um dezoito em Matemática e dei o meu lugar no autocarro a um pobre velho.» Porque o critério das idades varia conforme vamos envelhecendo. E se aquela menina não rasgasse o tal caderno e pudesse lê-lo daqui a muitos anos, e pudesse também recordar o homem a quem ofereceu o seu lugar, saberia que no dia tal às tantas horas praticara o seu pequeno crime diário.

 

Maria Judite de Carvalho, A janela fingida (Textos publicados entre 1968 e 1969 no Diário de Lisboa e outras publicações). Lisboa, Seara Nova, 1975. Prefácio de Batista-Bastos intitulado “Maria Judite de Carvalho: Uma ternura magoada”.

 


A crónica "Um Lugar no Autocarro" de Maria Judite de Carvalho é uma reflexão delicada e observadora sobre as interações humanas quotidianas. A cronista apresenta uma cena com personagens aparentemente comuns, mas que nos conduzem à reflexão sobre a natureza humana e a passagem do tempo.

A escritora começa por destacar a capacidade das pessoas de observar e imaginar as vidas alheias em espaços públicos como o autocarro, o metropolitano e o elétrico. Essa habilidade permite criar histórias e conjeturas sobre desconhecidos, um tema que ressoa com a nossa curiosidade inerente sobre os outros.

O foco da crónica recai sobre uma jovem estudante e um homem mais velho. A descrição meticulosa dos detalhes físicos da jovem, a sua atitude gentil ao oferecer o seu lugar ao homem mais velho e a reação envergonhada deste último são elementos que evidenciam as complexidades das interações humanas. A autora sugere que a jovem, apesar da sua idade, é madura e generosa, enquanto o homem “idoso”, embora educado, está desconfortável com a inversão de papéis tradicionais.

A expressão final “pequeno crime diário” é uma metáfora que sugere que a menina, ao ceder o seu lugar ao senhor, praticou um ato de violência simbólica contra ele, atingindo a sua dignidade e autoimagem. A expressão revela ainda que a menina desconhece a gravidade do seu gesto, que julga ser uma boa ação, e que o faz todos os dias, por hábito. Essa expressão sintetiza a essência da crónica de Maria Judite de Carvalho, que explora a complexidade das interações sociais, a perceção pública e as motivações por trás das boas ações. Ela convida o leitor a refletir sobre como as nossas ações podem ter interpretações surpreendentes e como a conformidade social pode condicionar a nossa conduta. A crónica evidencia que nem sempre as boas intenções garantem uma boa comunicação e que nem sempre a realidade corresponde às aparências. A crónica propõe também que devemos ter mais respeito e sensibilidade pelos outros, especialmente pelos mais velhos, que muitas vezes são tratados como objetos de piedade ou de desprezo.

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Do ponto de vista literário, a crónica de Maria Judite de Carvalho intitulada «Um lugar no autocarro» pode ser analisada como um texto que apresenta as seguintes características:

Estrutura: A crónica tem uma estrutura simples, composta por três partes: a introdução, onde o narrador apresenta o cenário e as personagens; o desenvolvimento, onde o narrador relata o conflito entre as personagens e as suas reações; e a conclusão, onde o narrador faz uma reflexão sobre o significado do episódio.

Narrador: O narrador é um observador que testemunha e comenta o que se passa no autocarro. Ele usa a primeira pessoa do singular, mas não se identifica nem revela os seus sentimentos ou opiniões. Ele mantém uma certa distância e neutralidade em relação às personagens, mas também mostra alguma simpatia e compreensão pelo homem. Ele usa um tom coloquial e informal, mas também recorre a algumas expressões cultas e eruditas.

Personagens: As personagens principais são a rapariguinha e o homem, que representam dois tipos humanos opostos: a juventude e a velhice, a inocência e a experiência, a idealização e a realidade. As personagens secundárias são os outros passageiros do autocarro, que funcionam como um coro que reforça a ironia e o humor da situação.

Espaço: O espaço é o autocarro, que simboliza um lugar de encontro e de desencontro entre as pessoas. É um espaço fechado, limitado e transitório, onde se manifestam as diferenças sociais, culturais e geracionais.

Tempo: O tempo é o presente, que coincide com o tempo da narração. É um tempo breve, que corresponde à duração da viagem de autocarro. É um tempo que marca a passagem da vida e que evidencia o contraste entre o tempo cronológico e o tempo psicológico das personagens.

Tema: O tema é o conflito entre as gerações, que resulta da incompreensão mútua e da falta de comunicação. É também o tema da solidão humana, que se manifesta na dificuldade de estabelecer laços afetivos e de reconhecer o valor do outro.

Estilo: O estilo é marcado pela ironia, que se expressa na discrepância entre o que as personagens pensam, dizem e fazem. A ironia também se manifesta na contraposição entre os adjetivos usados para caracterizar as personagens e os seus comportamentos. O estilo é ainda caracterizado pelo humor, que se baseia no exagero, na surpresa e na antítese. O humor serve para criticar os preconceitos e os estereótipos sociais, mas também para suavizar a amargura e a tristeza do tema.

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Do ponto de vista sociológico, a crónica revela alguns aspetos da sociedade portuguesa dos anos 60 do século XX, como o papel da mulher, a educação, o envelhecimento e as relações intergeracionais. A rapariguinha que oferece o seu lugar ao homem é apresentada como uma menina-mulher, estudiosa, eficiente e atenta ao mundo, mas também como alguém que segue as normas sociais de cortesia e de boa ação diária. Ela representa uma geração que procura o sucesso escolar e a integração social, mas que ainda não questiona os valores tradicionais. O homem que aceita o lugar é descrito como um homem bem conservado, bem vestido e bem-educado, mas também como alguém que se sente humilhado e infeliz por ser considerado velho e incapaz. Ele representa uma geração que se vê confrontada com o declínio físico e social, mas que ainda se julga interessante e ativo. A crónica mostra, assim, o contraste entre duas formas de estar no mundo e de lidar com o tempo, que geram mal-entendidos e conflitos.

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Do ponto de vista psicológico, a crónica explora os sentimentos e as reações das personagens perante uma situação aparentemente banal, mas que se revela significativa. A rapariguinha oferece o seu lugar ao homem com uma intenção bondosa, mas também com uma certa ingenuidade e presunção. Ela não se apercebe do impacto que o seu gesto tem na autoestima do homem, nem da ironia dos outros passageiros. Ela vive num mundo idealizado, onde as boas ações são recompensadas e os velhos são pobres e agradecidos. O homem recebe o lugar da rapariguinha com uma mistura de gratidão e ressentimento. Ele não consegue recusar o lugar sem parecer mal-educado ou orgulhoso, mas também não consegue aceitá-lo sem se sentir diminuído e ridicularizado. Ele vive num mundo realista, onde as aparências enganam e os jovens são arrogantes e insensíveis. A crónica mostra, assim, o abismo que separa as duas personagens e que impede uma verdadeira comunicação e compreensão.

 

Poderá também gostar de

A Vida é um Autocarro Vazio - Uma crónica sobre a vida e obra de Maria Judite de Carvalho, disponível na RTP Play, 19-09-2023.

Figura incontornável da literatura portuguesa do século XX, Maria Judite de Carvalho preferiu sempre observar à exposição. Apelidada por Agustina Bessa Luís como "flor discreta da literatura", não poupou nas palavras que escreveu sobre a sociedade portuguesa, com uma acutilância que poucos conseguiram alcançar. Talvez o silêncio que preferia a fazia mais atenta aos pequenos pormenores do quotidiano. Casada com Urbano Tavares Rodrigues, passou alguns anos em Paris, mas foi em Lisboa que encontrou o território perfeito para os seus romances e crónicas que tantos jornais popularam. Publicou 13 romances, venceu o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco por duas vezes e foi ainda feita Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Quem lê Maria Judite de Carvalho antevê um pouco daquilo que foi a sua vida. Com este documentário, mergulhamos no seu percurso e esperamos que nos possa dar algumas pistas para desvendar os silêncios de uma das maiores escritoras portuguesas


quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Romance de D. Pedro e Dona Inês (Natália Correia)

Pedro e Inês, os amantes infelizes, por Sérgio Marques, 2021

 

Romance de D. Pedro e Dona Inês

 

Era seu colo de neve
tocado daquela graça
do contorno mais breve
onde o infinito se enlaça.

Morta, em sua fronte uma constelação
era presságio do ritual macabro
duma coroação.

O que bebera em sua carne a claridade
que dos deuses escorre para a mais pura taça
partiu com mãos de tempestade
apressando com ira
e com desgraça
a fatalidade que os ungira.

E só parou quando mudo no espanto
onde o enlevo da morte se adivinha
o fim do mundo ficou esperando
aos pés da mais fantástica rainha.

 

Natália Correia, Poemas (1955)

 

O poema é inspirado na história de amor trágico entre o infante D. Pedro e a sua amante Inês de Castro, que foi assassinada por ordem do rei D. Afonso IV, pai de D. Pedro, em 13551. Após a morte de Inês, D. Pedro declarou que se tinha casado secretamente com ela e mandou coroá-la como rainha, expondo o seu cadáver no trono.

O poema apresenta uma estrutura narrativa, podendo ser dividido em três momentos: a descrição da beleza de Inês (primeira estrofe), o relato do seu assassinato (segunda e terceira estrofes) e a reação de D. Pedro (quarta estrofe).

As imagens da primeira parte parecem ser ambíguas, visto que a neve pode simbolizar a palidez da pele de Inês após a morte, mas também pode simbolizar a brancura e a delicadeza da sua pele em vida. A graça e o contorno podem sugerir a beleza e a delicadeza da sua forma mesmo na morte, mas também podem sugerir a elegância e a perfeição da sua forma em vida. O infinito pode representar a transcendência da beleza de Inês, mesmo após sua morte, mas também pode representar a eternidade do amor entre Inês e D. Pedro.

A meu ver, os versos da primeira estrofe parecem evocar a beleza serena do corpo morto de Inês após a sua morte violenta, usando imagens de pureza e tranquilidade para contrastar com a tragédia que ocorreu. Assim, o contorno breve do corpo mortal demarcaria a fronteira entre o físico e o espiritual, como se estivesse tocando o infinito.

A segunda estrofe introduz elementos sombrios na narrativa, com a menção de uma constelação na sua fronte como presságio do "ritual macabro / duma coroação" póstuma, como de facto veio a acontecer.

A terceira estrofe revela a crueldade do destino, sugerindo que o que atraía a claridade dos deuses na sua carne foi arrancado com fúria e desgraça. O sujeito poético emprega nesta parte do texto uma linguagem bem sombria e dramática para narrar o ato cruel que tirou a vida de Inês. Palavras como "tempestade", "ira", "desgraça" e "fatalidade" são escolhidas cuidadosamente para expressar a fúria e a injustiça que marcaram o crime. A palavra "tempestade" evoca uma sensação de caos e violência, sugerindo que o ato foi tumultuoso e selvagem. "Ira" ressalta a intensidade da raiva subjacente a essa ação violenta, enquanto "desgraça" aponta para o trágico e infortunado destino de Inês. A palavra "fatalidade" enfatiza a inevitabilidade do ocorrido, como se o destino estivesse selado desde o início.

Na quarta estrofe, o sujeito poético retrata a profunda reação de D. Pedro perante o cadáver de Inês, revelando seu espanto e dor de maneira comovente.

A utilização de uma hipérbole, ao afirmar que "o fim do mundo ficou esperando / aos pés da mais fantástica rainha," é notável. Essa expressão enfatiza a intensidade do amor de D. Pedro por Inês e a extensão de seu sofrimento. Ao sugerir que o "fim do mundo" estava à espera, a poeta indica que, para D. Pedro, nada mais importava a não ser o seu amor por Inês. Essa hipérbole realça o aspeto trágico e atemporal do amor do protagonista, como se a própria ordem do mundo estivesse suspensa ou interrompida diante da morte de Inês.

Além disso, ao chamar Inês de "rainha" depois de sua morte, a poeta destaca o caráter fantástico e paradoxal da situação. Inês, embora morta, é descrita como uma rainha, talvez indicando que o seu amor e beleza transcenderam a vida e a morte, conferindo-lhe uma realeza eterna. Esse uso do termo "rainha" também ressalta a importância de Inês na vida de D. Pedro e a profunda reverência que ele sentia por ela, independentemente das circunstâncias.

O poema "Romance de D. Pedro e Dona Inês" de Natália Correia é um texto que evoca uma atmosfera sombria e trágica, mergulhando na lenda histórica do amor proibido entre D. Pedro I de Portugal e Dona Inês de Castro.

 

Túmulos de D. Pedro e D. Inês, dispostos frente a frente, no Mosteiro de Alcobaça



sexta-feira, 25 de agosto de 2023

és o cacto que organiza os pensamentos do dia (Marcelo Torres)


 

PEQUENOS BUDAS DO NORDESTE


Talvez seja assim
você se afasta sofrendo
têm duas mãos trêmulas juntas
com elas pode tocar
o outro que não está
nem na rua
nem na padaria
és o cacto
que organiza
os pensamentos do dia

 

Marcelo Torres, Infernos Fluviais e Por que nunca conversamos sobre Nick Cave?, São Paulo, Editora Clóe, 2023

 


terça-feira, 1 de agosto de 2023

A tradução como interpretação no Cântico dos Cânticos: o caso da cor da pele da noiva

 


“Sou negra – MAS bela”? - Não!

(A propósito dos episódios de racismo desta semana que envergonham toda a raça humana)

O nome – ainda que não o punho – de Salomão foi responsável por aquele que pode ser considerado o brinde-surpresa da Bíblia: o facto de, neste heteróclito e tantas vezes contraditório conjunto de livros (de épocas e autorias muito diversas) sobre a história da relação dos judeus com Jeová, se encontrar lá no meio uma pequena antologia de versos eróticos de que Jeová está totalmente ausente.

O motivo que justificou a inclusão desta antologia erótica no Antigo Testamento foi a atribuição da sua autoria ao rei Salomão. Na versão grega do Antigo Testamento, o título afirma-se como “Cântico dos Cânticos, que é de Salomão” e o nome do filho de David surge, com efeito, no interior do texto; de tal forma, aliás, que não é impossível experimentarmos a ilusão de ser o próprio rei a enunciar alguns dos versos emitidos por uma boca masculina, em resposta a outros versos claramente enunciados por uma mulher. No entanto, tal como no caso do livro de Sabedoria (também falsamente atribuído a Salomão), questões de cronologia tornam impossível a aceitação de que tenha sido o grande rei judeu a compor este conjunto de versos desgarrados em que um noivo e uma noiva antevêem (e, a dada altura, parecem gozar) as delícias do leito conjugal.

Excluída a possibilidade da autoria salomónica, fica então a pergunta: o que fazer deste pequeno livro, no seio da austera Bíblia, livrinho esse cujo tema é sintetizado pela palavra “sexo”? Porque com ou sem a assinatura de Salomão, o conteúdo do livro é inescapável: é uma antologia de versos eróticos.

Confrontados com a necessidade de explicar a razão da existência do Cântico dos Cânticos, exegetas bíblicos de todas as épocas e quadrantes (judeus, católicos, ortodoxos, protestantes, etc.) desenvolveram uma artilharia de interpretações metafóricas do Cântico, através das quais procuraram fazer-nos ver que não é de sexo entre um casal humano que aqui se trata, mas do amor de Deus (o “noivo”) ou de Jesus por uma noiva que pode ser o povo eleito, a igreja católica ou até a Virgem Maria. A liturgia das Vésperas Marianas inclui trechos do Cântico dos Cânticos, como “Pulchra es, amica mea” (“És bela, minha amiga”), e – surpreendentemente – os versos do primeiro capítulo deste livrinho que começam “Nigra sum – sed formosa” (“Sou negra – mas bela”, Cântico dos Cânticos 1: 5).

Esta voz feminina que aqui nos fala descrevendo-se como negra (“mas” bela) sugere um caminho de reflexão bem interessante. Porquê o “mas”? Que surge tanto na tradução portuguesa da Bíblia dos Capuchinhos, como na consagrada tradução latina da Vulgata? Na versão grega do Antigo Testamento, a noiva do Cântico dos Cânticos diz de si própria “sou negra e bela” (μέλαινά εμι κα καλή). Segundo o comentário ao Cântico de Othmar Keel, também é nessa linha que devemos entender o original hebraico (e por isso o ilustre teólogo suíço traduz “schwarz bin ich und anziehend”). São Jerónimo, autor da tradução latina, deve ter sentido a necessidade de pôr uma desculpa na boca da Sulamita (como a noiva é designada no capítulo 7 do Cântico) por ser negra, levando-a a afirmar que era bela apesar de ser negra. Os tradutores da Bíblia dos Capuchinhos mantêm espantosamente o “mas”, mitigando-o por meio da alteração de “negra” para “morena”: “Sou morena, mas formosa... não estranheis eu ser morena: foi o sol que me queimou...” Tanto em hebraico, em grego como em latim, a noiva é claramente negra. Não há volta a dar.

E o noivo – surpresa! – é branco. “O meu amado é alvo e rosado”, canta a noiva negra (5: 10); o ventre dele é da cor de marfim (5: 14); as pernas são “pilares de alabastro” (5: 15). Além de ser uma antologia de versos eróticos incrustada no meio da Bíblia, o Cântico dos Cânticos celebra aquilo que, ainda nos anos 60 do século passado, era proibido no chamado Bible Belt dos EUA: um casamento “misto”. Ainda bem que, “no fundo”, se trata de um texto altamente alegórico que nada tem que ver com aquilo que ostensivamente se lê no próprio texto... Ainda bem que é tudo sobre (os nunca mencionados) Jeová ou Jesus ou Maria ou a Igreja... É que ler o Cântico dos Cânticos de forma literal e simplista seria decerto muito redutor! É melhor dizermo-nos que os peitos referidos (8: 10) não são peitos, mas símbolos de realidades místico-divinas. Contudo, temos o direito de ser selectivos com a aplicação destas leituras alegóricas, pois por vezes é mais aconselhável ler o texto à letra! É claro que o noivo a entrar no “seu jardim” para “colher lírios” no “canteiro dos aromas” (6: 2) só designa mesmo actividades hortícolas...

Sarcasmo à parte (e perdoem-me todos aqueles que perfilham a ideia de que o Cântico dos Cânticos é o grande texto religioso sobre o amor místico de Deus): como são belos os versos desta extraordinária antologia erótica; versos para os quais a filologia bíblica contemporânea encontra paralelos expressivos em tantas outras literaturas de territórios próximos de Israel (mormente o Egipto antigo e helenístico). Quão belos são os versos que nos dizem “forte como a morte é o amor; implacável como o abismo é a paixão” (8: 6). Como é verdade, meu Deus, que não há fortuna no mundo que possa comprar o amor (8: 7). E como é mais verdade ainda que se identifica o verdadeiro amor por ser aquele que, simplesmente, é portador da paz (8:10).

 

#RacismoNão #viniciusjunior #Bíblia #teologia

 

Crónica de Frederico Lourenço, «Sou negra – MAS bela? - Não!» in https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco, 28-05-2023


Orfeu Negro ou Orfeu do Carnaval,
Marcel Camus, Brasil, Itália, 1959

 

  

Poderá também gostar de:

 

 

Cantar de Cantares - Códice Alcaíns, Javier Alcaíns.
Barcelona, Moleiro editor, 1999. ISBN: 9788488526700

segunda-feira, 31 de julho de 2023

Entre ser e possibilidade: o "eu" fora de si, em Manuel António Pina

 

 

 

“Sabidamente não classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural. A razão é muito simples: não sabemos o que é o universo”.

Jorge Luis Borges, In O idioma analítico de John Wilkins

 

A poesia de Manuel António Pina procura dissolver as dicotomias entre eu/ outro, fora/dentro, sujeito/objeto, que ocorrem de maneira artificial. Pina aprende com a mecânica quântica que a realidade não existe sem interação; ela é um complexo entre o observado e o observador: “como podemos distinguir a dançarino da dança”71. Desta forma, “aquilo que existe nunca é estável; não passam de um saltar de uma interação a outra” (ROVELLI, 2015, p. 41). No entanto, nosso olhar e nossa  linguagem  interferem  nessa  interação,  suspendem  esse  emaranhado  e decidem em favor de um ponto de vista fixado. Por isso, acreditar que é possível capturar a "realidade em si” pode funcionar como uma utopia metafísica:

 

O que o realista metafísico sustenta é que podemos pensar e falar sobre as coisas como são, independentemente de nossas mentes, e que nós podemos fazer isso pela virtude de uma relação de “correspondência" entre termos em nossa linguagem e alguns tipos de entidades não dependentes da mente (PUTNAM, 1996, p.205).

 

Mas Pina não é um metafísico, seu realismo é outro. Diríamos, com António Saez Delgado (2017), que ele busca um "realismo integral” (2017, p. 981), em que ser e possiblidade, real e ilusão (literatura), sonho e realidade formam um entrelaçamento. Esse é o termo usado por Erwin Schrödinger para caracterizar a principal propriedade dos sistemas quânticos: entrelaçamento. Para ele, não é possível descrever exatamente o estado de duas partículas ou sistemas depois de terem interagido. Considerados fora da interação, podemos saber algo aproximado sobre essas entidades, elas são apenas uma “função de onda” uma representação matemática e abstrata que nos a probabilidade de encontrar o objeto em um determinado lugar. A teoria do entrelaçamento confirma novamente a intuição de que as “observações não perturbam o que deve ser medido, observações na verdade produzem o resultado medido” (ROSENBLUN & KUTTNER, 2017, p.116). O resultado é uma criação, ou melhor, descriação (no sentido que discutimos na seção anterior).

Para ilustrar a ideia em um nível macroscópico, o físico austríaco criou o famoso experimento mental, conhecido posteriormente como o gato de Schrödinger. Mais uma vez voltemos aos gatos, agora um outro tipo de “gato inconcreto” (PINA, 2012, p. 358) ou “gatos-abstractos" (PINA, 2012, p. 271). Imaginemos que um gato é colocado no interior de uma caixa. dentro um mecanismo que, ao ser ativado pelo decaimento de um átomo de um elemento radioativo, libera um gás letal. O átomo tem o que se chama de “meia-vida”, ou seja, durante um período x de tempo, ele tem cinquenta porcento de chance de decair. Porém, segundo a teoria do entrelaçamento, antes da medição (da nossa interferência) o átomo decaiu e não decaiu; o gato está morto e vivo ao mesmo tempo. Somente quando abrimos a caixa é que o sistema colapsa e é decidido o destino do animal. De modo semelhante ao coelho-pato de Wittgenstein, em que a imagem dos dois animais não é percebida em simultâneo, não somos capazes de ver o gato em um estado morto-vivo. Antes do colapso, temos cálculos probabilísticos sobre o acontecimento de um ou outro evento. Desse modo, estar vivo ou morto (pelo menos para o malfadado animal hipotético) não passa de uma questão de probabilidade. Essa é para usar a expressão de Pina na entrevista que abrimos o texto uma “pedrada muito forte” para o nosso senso comum. Afinal, não existe uma lei intrínseca na natureza?

 

Por que a equação de Schrödinger aplica-se apenas quando a medição não está ocorrendo? Não parece ser assim que as leis da natureza trabalham – pensamos nas leis da natureza como algo que se aplica o tempo todo, não importando o que estamos fazendo. Se uma folha cai de uma árvore, ela cairá esteja alguém olhando ou não (BECKER, 2018, p. 36).

 

Pina coloca esta questão, que é sobretudo identitária, ou mesmo ontológica, da seguinte maneira:

 Como não estareinem não estareiem nenhum sítio, voltandoabsolutamente pra casa?

(PINA, Todas as Palavras, 2012, p. 150).



 

O “eu" está em “nenhum sítio” (também é o título do seu terceiro livro de poesia, de 1984), pois tem um lugar concreto enquanto uma exterioridade que podemos observar. Mas, esse “eu”, que se imiscui com o outro interpelado (a quem se destina a pergunta contida nesses quatro versos?), torna-se uma sobreposição que poderíamos chamar de “nós”. No entanto, aquele que diz “eu”, essa voz concreta (de palavras escritas e sons), é uma interferência nessa sobreposição, cria um terceiro elemento: “Eu sou nós os dois. Ou melhor, nós os dois somos nós os dois, eu sou o terceiro. Sou eu quem está a falar de nós” (PINA, 2012, p.259). Nas palavras de Eduardo Prado Coelho: ”aquele que escreve (ou talvez seja preferível dizer: aquele que escreve por intermédio daquele que julga escrever) seja um Lugar Terceiro, um “eu" sobranceiro que se inclina sobre a vacilação interminável entre tu e eu.” (2010, p. 89). Estar a falar de nós não é ser nós. É ser uma imagem fixa, a ilusão de que o gato está somente vivo ou somente morto. O acesso que temos à exterioridade é, paradoxalmente, ilusão ou: "Literatura. Tornam-nos, tu e eu, e também aquelas terríveis quatro horas da tarde, literatura. (PINA, 2012, p.265).72 Na escrita de Pina, a construção da realidade do ser é feita de palavras: “o que é feito de nós senão/ as palavras que nos fazem?” (2012, p.12) ou “Literatura que faço, me fazes” (2012, p. 23). Na interferência do olhar e da linguagem que busca fixar o objeto "Já tudo e eu próprio somos literatura” (PINA, 2012, p. 149), pois, “sem que palavras uma coisa é real?” (2012, p. 137).

A linguagem é o nosso único espaço possível, um entrelugar diante do mundo e suas possibilidades: “Entretanto dobrar-se-ia o mundo / (o teu mundo: o teu destino, a tua idade) / entre ser e possibilidade” (PINA, 2012, p. 273). A “vida real”, esse é o título do poema citado, é uma “dobra" do mundo, duplicação ("o teu mundo”), mas também multiplicação de estados sobrepostos ("entre ser e possibilidade”) onde a nossa linguagem e observação não chegam.

No entanto, e apesar do caráter disfórico de sua linguagem, a poesia de Pina busca sempre a exterioridade, encontrar um “sítio onde pousar a cabeça” para poder, através da linguagem/ilusão, tocar o real. Nesse sentido, a abstração da interioridade existe à medida que ganha alguma forma concreta, pode ser olhada:

 

"Manuel António Pina é um dos raros poetas do meu conhecimento que não confere ao que chamamos interioridade uma qualquer consistência e faz dela a essência mesma da nossa identidade. Para ele tudo mesmo o mais subtil e efêmero é pura exterioridade” (LOURENÇO, 2012, p.103).

 

Essa "pura exterioridade” é a impossibilidade de qualquer solipsismo, a constatação de que captamos e somos captados pelo olhar. Na epígrafe que abre a segunda seção do primeiro livro de poemas de Pina, lemos (em inglês): “'well, now that we have seen each other', said the Unicorn, 'if you’ll believe in me, I’ll believe in you. Is that a bargain?’”73 (2012, p. 29). Esse trecho é retirado de um momento, em Através do espelho e o que Alice encontrou por , em que Alice encontra-se com um Unicórnio que sempre supôs que as crianças fossem algum tipo de monstro fabuloso e imaginário. Ora, a mesma coisa pensa Alice sobre os unicórnios. Somente após o encontro do olhar (daquele que “vê e é visto” [PINA, 2012, p. 113]), isto é, pela interação com o outro, é que a existência concreta surge. Voltando aos princípios da mecânica quântica:

 

A questão da identidade é mais que filosófica; é um dos eixos da mecânica quântica: as partículas elementares, os constituintes do átomo, são absolutamente indistinguíveis uma das outras. Cada átomo de carbono seu é idêntico aos meus; cada elétron carece de individualidade. E mais: no mundo quântico, cada partícula não é indistinguível das demais, mas também, de um modo peculiar, é indistinguível de si mesma. Um elétron dentro de um átomo existe simultaneamente em infinitos lugares perto do núcleo do atômico, e esses infinitos gêmeos se constituem em um único elétron definido ao serem detectados, ao serem observados (ROJO, 2011, p.51).

 

Qual seria a nossa realidade sem sermos olhados? “Fala-me, não pares de falar. Ouvindo-te tenho a certeza de que sou real, e de que também tu és, fora de mim, real” (PINA, 2012, p. 264). Assim como o “Fale para que eu te veja” de Sócrates, a realidade visível, a exterioridade, da poesia de Pina depende dessa demanda à interação. Sem a interação o real é “como uma paisagem entrando pela janela de um quarto vazio” (PINA, 2012, p. 249). Daí a importância do verso “Somos seres olhados” (2009, p. 82), de Ruy Belo, que Pina usa como epígrafe para o seguinte poema:

 

O jardim das oliveiras

Somos seres olhados
Ruy Belo

 

Se procuro o teu rosto
no meio do ruído das vozes
quem procura o teu rosto?

Quem fala obscuramente
em qualquer sítio das minhas palavras
ouvindo-se a si próprio?

Às vezes suspeito que me segues,
que não são meus os passos
atrás de mim.

O que está fora de ti, falando-te?
Este é o teu caminho,
e as minhas palavras os teus passos?

Quem me olha desse lado
e deste lado de mim?
As minhas dúvidas, até elas te pertencem? (2012, p. 136).

 

O título do poema, como explica Inês Fonseca (2015, p. 121), alude ao jardim, ou monte das Oliveiras, lugar onde “Jesus se recolheu para rezar na noite que precedeu a sua prisão. Foi que o Messias, unindo-se a Deus pelo poder da oração, decidiu manter-se fiel e cumprir a sua missão”. A passagem revela um momento de dúvida. Jesus se pergunta qual é a sua missão, ou se sua vontade, na verdade, é a vontade de um outro, de Deus: “Pai, se queres, afasta de mim este cálice! Contudo, não a minha vontade, mas a tua seja feita!” (BÍBLIA, Lucas, 22, 43).

Outras referências a Cristo aparecem na poesia de Pina, quase sempre acompanhadas pela dúvida. Em “A poesia vai”: “Uma pergunta numa cabeça/ – Como uma coroa de espinhos (2012, p. 38) e no poema “A ferida”, novamente a indagação: “Real, real, porque me abandonaste?” (2012, p.307).

Em todos esses poemas, Pina coloca a voz poética em comparação a Jesus nos momentos em que sua é indagada. Porém, na poesia secular de Pina, não é mais a um Deus que o poeta recorre ou com ele deseja se unir, mas um onipresente “real" que nos olha. Quem fala, quem diz eu? A que ponto essa voz pode ser uma interioridade separada desse outro exterior? Ou ela é pura exterioridade? "O que está fora de ti, falando-te?”

A voz que fala "em qualquer sítio das minhas palavras” é também o grande olho ubíquo ("Quem me olha desse lado e deste lado de mim?”). É uma visão que não se separa do eu/outro mesmo quando os olhares não coincidem: "Às vezes suspeito que me segues,/ que não são meus os passos/ atrás de mim”. A ubiquidade desse olho aparece também no poema “Imorais e puros”: “E eu sou uns grandes olhos que em isto tudo há” (2012, p. 188). É importante notar: “isto tudo” existe. O que quer que “isto" signifique: o “eu”, o real, o outro, a literatura? (voltaremos aos usos desse pronome típico da linguagem dubitativa no próximo capítulo). Se tudo está contido na exterioridade desse olhar, até que ponto é possível dizer “eu”? Se a "minha vontade" é a “tua vontade”, logo até a suspeita identitária é desse outro? "As minhas dúvidas até elas te pertencem?”

No entanto, essas perguntas são uma forma de relação com a poesia, são o caminho de passos-palavras a que alude o poema, um "paradoxal combate no seio da literatura e mesmo contra a literatura” (LOURENÇO, 2012, p. 102). São uma tentativa de atingir pela linguagem uma coincidência que ela não é capaz de conseguir, por isso mesmo, como o próprio Pina coloca, a poesia não é essa coincidência, mas sim a busca por ela:

 

Oh, a questão da identidade! Tenho uma impressão de inconsciência. É como uma imagem desfocada que está sempre a fugir, permanentemente a desfocar-se. Nós tentamos focá-la mas não é possível. A minha relação com a poesia é um pouco assim também. É a procura de uma coincidência, de uma identidade. Que rosto é aquele que me olha do lado de do espelho? (2016, p. 96).

 

O autor equaciona a poesia com uma procura identitária jamais alcançada. A identidade é uma imagem desfocada, próxima demais ou demasiado distante para ganhar uma nitidez. Além disso, nossas lentes-linguagem a embaçam, ou melhor, emudecem-na: “as minhas palavras não me deixando falar” (PINA, 2012, p. 249). Aquele que suspeitosamente fala no poema são palavras, “insubstanciais seres” (2012, p.232) que vivem no meio do caminho entre estar e ser, mudança e permanência: "Eu, isto é, palavras falando,/ e falando me perdendo/ entre estando e sendo” (2012, p. 275). O “eu” não está em um lugar específico, está em múltiplos lugares a única coincidência possível é a da perda:

 

em todas as coisas uma mais-que-coisa fitando-nos como se dissesse: “sou eu”, algo que não está ou se perdeu antes da coisa, e essa perda é que é a coisa (PINA, 2012, p.356).

 

Também todas as coisas que nos espreitam, que nos fazem esses ”seres olhados”, possuem uma identidade, “uma mais-que-coisa”. Porém, ao pronunciar as palavras “sou eu”, não revelação. A determinação da linguagem é uma imagem fantasmagórica, é aquilo que não está mais lá, ausência, perda de identidade. Por isso a poesia de Pina pode oscilar entre ser e possibilidade: “não estou dentro de mim/ e fora de mim,/ e o fora de mim dentro de mim? (PINA, 2012, p. 145).

Nesse sentido, é interessante pensar na noção de deslocamento proposta por Paola Poma (2008). Para a autora, o “eu" da poesia de Pina é um

 

sujeito que oscila entre identidade e alteridades e, radicalizada na poesia, promove, simultaneamente, a neutralização dos sujeitos presentes e a sua devolução à cena através da mesma linguagem, num tipo de ilusionismo, ou como o poeta diria uma 'poesia cheia de truques’ (POMA, 2008, p.229).

 

Como numa espécie de salto quântico, o sujeito flutua entre identidade e alteridades sem estar em nenhum lugar preciso. Deslocamento, interação, simultaneidade, sobreposição, noções que atravessam uma poesia que cria a ilusão de momentaneidade, de existir em um tempo que vive impossivelmente apenas no presente. Mas que, por outro lado, é altamente consciente de seus “truques”, de que a linguagem nada mais faz do que perder (“E o que fala falta-me” [PINA, 2012, p. 140]), ou melhor, ir perdendo, pois não qualquer estado fixo que possa ser encontrado. Por isso, abundam formas verbais no gerúndio, nos poemas citados nessa seção encontramos diversos exemplos: "as minhas palavras não me deixando falar”, "O que está fora de ti, falando-te?”, em nenhum sítio, voltando/ absolutamente pra casa?” ou "Entre estando e sendo”. Isso como uma escolha deliberada de marcar a ideia de continuidade, prolongamento no tempo. A poesia de Pina vive da relação, ela vai sendo. Quem diz “eu" também diz outro, e tudo aquilo que é exterior, ou seja, também diz mundo.

Estamos presos no real, somos parte dele. Não regresso ao real, porque nunca saímos dele: “estamos condenados ao real’ “como é que se sai do real?” (PINA, 2016, p. 200). Essa é também uma possível conclusão que se pode tirar das ideias da mecânica quântica: “somos parte integrante da natureza, somos natureza, em uma de suas inumeráveis e variadíssimas expressões. É isso que nosso conhecimento crescente das coisas do mundo nos ensina” (ROVELLI, 2015, p.84). Por isso, a busca de Pina por uma pura exterioridade é também, para voltarmos a ideia de Delgado (2017), uma forma de lidar com um realismo integral uma reintegração do ser com todas as suas possibilidades:

 

O aquário de Bohm

Em algum sítio onde és um
como dois gémeos divididos,
entre o da vida e o
da morte, um sonho dos sentidos;

em algum passado invivido,
em algum princípio, em algum modo
da memória ou do olvido,
em alguma estranheza, em algum sono;

ou em alguma espécie de saudade
física e inicial
de seres real,
pura exterioridade (PINA, 2012, p.247).

 

O aquário de Bohm é mais uma narrativa-experimento quântico que Pina traz à tona para descrever a relação da sua poesia com o mundo. Nesse experimento, o físico David Bohm

 

apresenta a analogia de um peixe dentro de um aquário projetado em duas telas de TV, via duas câmeras separadas e de dois diferentes ângulos. Como resultado dessa configuração, cada movimento do peixe é produzido nas telas por duas imagens aparentemente separadas. No entanto, essas duas imagens têm uma suspeita relação instantânea uma com a outra – muito parecida com a relação não local entre partículas emaranhadas em um nível quântico. Nessa analogia, a relação crucial é entre “realidade" tridimensional do peixe e a bidimensionalidade das imagens do peixe na TV, sendo  essas  últimas  vistas  como  projeções  desdobradas  de  uma  mais fundamental realidade tridimensional. De maneira semelhante, afirma Bohm, nosso mundo tridimensional incluindo partículas emaranhadas em um laboratório se manifestam como uma projeção de uma realidade multidimensional ainda mais fundamental (NICHOL, 2005, p. 79).

 

O poema, assim como a analogia de Bohm, propõe uma reencontro das partes com o todo, a existência de "algum sítio onde és um só”. Como o peixe projetado em duas imagens, exterior e interior, mente e matéria, são aparentemente duas entidades, “como dois gémeos divididos”. Dentro do aquário, em uma realidade mais profunda a qual não temos acesso, observador, peixe e mesmo o aquário são um contínuo de um todo que é o mundo material: “se estamos emaranhados com o que existe fora, esse “lá fora” não existe mais; existe apenas um todo indiferenciado” (GLEISER, 2014, p. 231). Pois, nesse caso, qual seria “o lado de fora de o lado de fora” (PINA, 2012, p. 142)?

Nossos instrumentos limitados separam e criam inúmeras divisões, sem isso poderia-se realizar o “sonho dos sentidos” no qual, alguém como que liberto dos grilhões que o prendiam na caverna, pode ver uma realidade mais profunda. Contudo, onde está esse lugar, em que “passado" e “princípio", memória e esquecimento podem tornar-se “pura exterioridade”? Onde, citando o poema “Volto de novo ao princípio”, “eu sou o lugar onde tudo isto se passa fora de mim” (PINA, 2012, p. 78).

Essa hesitação, manifestada pelo repetido uso dos pronomes indefinidos “algum e alguma”, converge para uma "espécie de saudade física e inicial” expressada na última quadra. Lugar que remete mais uma vez à infância, lugar “sem palavras e sem memória", encontro possível, porque inconsciente, entre sujeito e objeto: “o quarto eu não o via/ porque era ele os meus olhos” (PINA, 2012, p. 160). Depois disso, a pura exterioridade, a coincidência entre o “eu” e o outro, “eu" e o mundo, torna-se apenas uma espécie de projeção, um holograma de uma realidade mais fundamental que existiria se não fosse atravessada pela consciência das palavras. Sobra ao poeta o desejo de ouvir a “alma" do universo, uma essência perdida que se tornou música:


Teoria das cordas

Não era isso que eu queria dizer,
queria dizer que na alma
(tu é que falaste da alma),
no fundo da alma, e no fundo
da ideia de alma, talvez
alguma vibrante música física
que a Matemática ouve,
a mesma música simétrica que dançam
o quarto, o silêncio,
a memória, a minha voz acordada,
a tua mão que deixou tombar o livro
sobre a cama, o teu sonho, a coisa sonhada;
e que o sentido que tudo isto possa ter
é ser assim e não diferentemente,
um vazio no vazio, vagamente ciente
de si, não haver resposta
nem segredo (PINA, 2012, p. 289).

 

A teoria das cordas é uma teoria unificadora, uma tentativa de ser uma explicação de tudo em uma expressão “que a Matemática ouve”, uma ideia que contem o cerne, a alma, de todas as coisas. Ela talvez nunca possa ser comprovada, mas existe como busca utópica em dar sentido a tudo que existe. Se as partículas elementares que nos compõe (e tudo a nossa volta) vibram como cordas, nenhum vazio é realmente vazio. Tudo seria som (até mesmo o silêncio). Em algum incerto lugar, ouviríamos a música do mundo. Ao poeta, cabe tocar o som articulado das palavras: “Pouca coisa são as palavras/ e é o que me resta” (2012, p.223).

 

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71  Tradução livre do verso final do poema “Among school children”, de W. B. Yeats: “How can we know the dancer from the dance?” (2008, p. 185).

72 No texto Para que serve a Literatura infantil?”, Pina (1999) atribui a Blanchot a ideia (que reverbera em seus próprios poemas) de literatura como ilusão.

73 Na tradução de Maria Luiza X. de A. Borges: "'Bem, agora que nos vimos um ao outro’, disse o Unicórnio, ‘se acreditar em mim, vou acreditar em você. Feito?’”(CARROLL, 2009, p. 264).

 

Entre ser e possibilidade: o "eu" fora de si” in Entre nomes supostos: ceticismo linguístico na poesia de Fernando Pessoa e Manuel António Pina, Thiago Queiroz. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 2021