domingo, 5 de março de 2023

Segue o teu destino, Ricardo Reis

 


 





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Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras1
Como ex-voto2 aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis, Odes, Lisboa, Ática, 1970

_______

1 aras: altares.

2 ex-voto: objeto que se oferece em cumprimento de uma promessa.

 



 

Questionário sobre o poema “Segue o teu destino”, de Ricardo Reis.

1. Ricardo Reis defende o prazer e a busca da calma ou a sua ilusão para viver feliz.

1.1. Explique o sentido do verso "Ama as tuas rosas", tendo em conta os conselhos dados na primeira estrofe.

1.2. Comente a construção dos primeiros três versos, atendendo às formas verbais e à função da linguagem.

2. Mostre em que medida se diferencia a realidade daquilo que "somos".

3. Escolha a expressão que melhor exprima a apatia como ideal ético. Justifique.

4. Prove que é necessária a ataraxia para viver com satisfação, mas que a calma e a felicidade são inatingíveis, mesmo para os deuses.

5. Comente o pensamento epicurista que se depreende do poema.

6. Enquadre esta composição na produção poética de Ricardo Reis. 


 


Chave de respostas

1.1. O sentido do verso "Ama as tuas rosas": no primeiro verso, surge o conselho dado a um "Tu" de seguir o seu destino e de se preocupar com o momento presente e com aquilo que lhe diz diretamente respeito ("as tuas plantas", "as tuas rosas"), pondo de parte o que lhe é alheio.

1.2. Nos primeiros três versos, encontramos o uso do imperativo e a função apelativa da linguagem.

2. A realidade nem sempre corresponde àquilo que desejamos: é sempre mais ou menos do que aquilo que queríamos alcançar (a realidade está dependente do destino); nós, sendo iguais a nós próprios, seremos sempre aquilo que queremos ser, se soubermos tentar alcançar apenas o que nos foi predestinado.

3. Todo o poema exprime uma atitude de apatia como ideal ético, mas os versos "Vê de longe a vida. / Nunca a interrogues." ou "Grande e nobre é sempre / Viver simplesmente." demonstram a aceitação calma de tudo o que o destino nos reserva, sem questionar e sem nos apegarmos à vida...

4. A ataraxia é necessária para vivermos com satisfação, porque a calma, a tranquilidade e a felicidade são essenciais para a nossa vida; no entanto, são também inatingíveis, porque a realidade "é sempre mais ou menos do que queremos", porque a concretização nem sempre corresponde às intenções ou às expectativas. O destino, de facto, comanda a vida e as explicações para os acontecimentos estão mesmo "para além dos deuses" (v. 20).

5. Do poema depreende-se um pensamento epicurista pela busca de uma atitude que harmonize todas as faculdades, que atinja o equilíbrio, a calma e a tranquilidade, evitando, assim, as preocupações que a fugacidade da vida possam causar. Daí, a intenção de buscar o isolamento ("suave é viver só"), ver "de longe a vida", vivendo simplesmente e aproveitando o momento presente.

6. As razões que nos permitem enquadrar esta composição na produção poética de Ricardo Reis são:

- a referência a ideais clássicos;

- o tom moralista (uso dos imperativos);

- a aceitação passiva da ordem das coisas ("vê de longe a vida");

- a busca da perfeição e do equilíbrio;

- a ideia de que não nos devemos prender demasiado ao momento presente, porque a vida é fugaz;

- o epicurismo;

- o individualismo (vv. 1, 11). 

 

Disponível em: http://www.esa.esaportugues.com/programa/Reis/texto1RR.htm (Consultado em 17-02-2015)

 




Comentário de texto

Elabore um comentário do poema em que desenvolva os seguintes tópicos:

- regras principais de uma arte de viver;

- função do emprego do modo imperativo;

- relação estabelecida entre os homens e os deuses;

- integração no universo poético de Ricardo Reis.

 

Explicitação de cenários de resposta

Regras principais de uma arte de viver

«Segue o teu destino»; «Vê de longe a vida. / Nunca a interrogues.»; «serenamente / Imita o Olimpo»: estas formulações apontam para a regra por excelência proposta ao leitor, que é a de não se questionar sobre o sentido ou o mistério da vida, permanecendo sem inquietação e sem ansiedade, antes com tranquilidade e desprendimento.

«Suave é viver só.»; «Grande e nobre é sempre/ Viver simplesmente.»: aqui, registam-se como indicações importantes a de viver sozinho e a de viver com simplicidade - embora «Viver simplesmente» também se possa ler «simplesmente viver», isto é, viver sem fazer perguntas metafísicas, tal como «viver só» pode significar «viver apenas».

Outra ideia forte é a da não coincidência entre desejo e realidade («A realidade / Sempre é mais ou menos / Do que nós queremos.»), ideia que está ligada às instruções já referidas: não se questionar e não ansiar por nada.

 

Função do emprego do modo imperativo

O imperativo é utilizado no poema, não como o modo da ordem, mas como o do conselho, servindo para a prescrição de normas de vida simples e serena. Os três primeiros versos, por exemplo, contêm, em três orações paralelas, três dessas normas.

Por outro lado, a alternância entre o imperativo e o presente do indicativo, ao longo do poema, mostra como as regras de vida que são propostas decorrem de uma observação e avaliação da realidade.

 

Relação estabelecida entre os homens e os deuses

Primeiro, há uma relação de distância, patente na oferenda de ex-votos.

Depois, percebe-se uma relação de proximidade e de quase identificação: o facto de a «resposta» estar «além dos deuses» implica que a pergunta que os homens fazem também não pode ser respondida pelos deuses, e que eles estão na mesma situação que os homens perante o mistério do mundo.

Daí que a última estrofe aconselhe os homens a imitarem «O Olimpo» e a aproximarem-se, portanto, dos deuses. A característica essencial dos deuses que deve ser imitada pelos homens é a de que «não se pensam», isto é, não tentam interrogar o sentido da vida - numa palavra, vivem simplesmente.

 

Integração no universo poético de Ricardo Reis

Esta poesia parte do ensinamento do mestre Caeiro - o não pensar, o nada desejar, o viver das sensações -, pois Ricardo Reis é um dos seus discípulos. Mas há um tom moral de ascendência estoica que a este último heterónimo advém, por seu turno, da educação clássica, donde procede também o seu gosto pelas formas regradas da poética horaciana.

Faz parte do seu modo particular de entender o ensinamento de Caeiro a emergência do paganismo. As referências constantes aos deuses da Antiguidade greco-latina são uma forma privilegiada de entender e de formular a primazia do corpo, das formas, da natureza, dos aspetos exteriores da realidade, sem cuidar da subjetividade ou da interioridade.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 134. 12.º Ano de Escolaridade - Via de Ensino (4.º curso). Prova Escrita de Literatura Portuguesa, 2000, 1.ª fase, 1.ª chamada


 

 

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sábado, 4 de março de 2023

Mestre, são plácidas todas as horas que nós perdemos, Ricardo Reis


 

 





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Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.

Não há tristezas 
Nem alegrias
Na nossa vida. 
Assim saibamos,
Sábios incautos1,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza…

À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.

O Tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quasi2
Maliciosos,

Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre3.

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido

Ricardo Reis, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000

___________

1 incautos: sem cautelas, sem preocupações.

2 quasí: forma arcaizante de quase.

3 deus atroz / Que os próprios filhos / Devora sempre: referência ao deus grego Cronos, cujo nome significa em português Tempo; este deus devorava os filhos ao nascer.


Saturno devorando um filho, Goya, 1818-1823



Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Caracterize a relação entre «nós» e o «Tempo».

2. Explicite um dos efeitos de sentido produzidos pelas formas verbais «saibamos» (vv. 10 e 28), («Colhamos» (v. 37) e «Molhemos» (v. 38).

3. Interprete o valor simbólico das referências às «flores» (vv. 6 e 37), aos «Girassóis» (v. 43), aos «rios» (v. 40).

4. Refira a importância, no texto, do vocabulário relativo à ideia de calma.

5. Sintetize a filosofia de vida expressa no poema.

 


Explicitação de cenários de resposta

1. O sentido da relação entre «nós» e o «Tempo» está simbolizado na referência à figura mitológica de Cronos, o deus que devora os filhos: o «Tempo» é assim definido como o pai e, simultaneamente, o devorador, o aniquilador de «nós».

A consciência do carácter inelutável desse facto exige a aprendizagem da sua total aceitação por parte do «nós», de modo a saber conformar-se às leis do tempo (ao devir da vida, à inscrição do tempo em «nós» - «Envelhecemos.»).

2. O uso das formas verbais «saibamos» (w. 10 e 28), «Colhamos» (v. 37) e «Molhemos» (v. 38) – na 1.ª pessoa do plural do modo conjuntivo, com valor imperativo/optativo - produz, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:

- constrói um sentido exortativo, dirigido a um «nós»;

- contribui para a formulação de máximas que encerram ensinamentos de vida;

- confere ao texto o estatuto de proposta de uma filosofia geral de vida;

- …

3. Os elementos «flores», «Girassóis» e «rios» presentificam a «Natureza» como a realidade com que o «nós» se identifica, convocando ainda cada um deles valores simbólicos próprios. Assim, as «flores» representam a beleza perecível; os «Girassóis» (que mudam de orientação, acompanhando o movimento do Sol), a vida iluminada e regida pera luz do Sol; os «rios», a passagem das «horas», do «Tempo».

4. Os adjetivos «plácidas» (v. 1), «Tranquilos» (vv. 14 e 46), «plácidos» (v. 14), «calmos» (v. 40) e os nomes «Calma» (v. 42) e «descanso» (v. 23) tornam recorrente no poema a ideia de calma e de serenidade. Contribuem, assim, para afirmar a centralidade do tema do sossego absoluto, sem qualquer perturbação, entendido como o ideal a atingir na vivência do «Tempo».

5. A filosofia de vida expressa no poema é a defesa da arte de viver sem envolvimento emocional com o presente e sem expectativas de futuro, por forma a chegar à morte sem sobressalto e com o mínimo de sofrimento («Não a viver» - v. 12; «tendo / Nem o remorso / De ter vivido» - vv. 46-48). O sujeito poético aspira a «decorrê-la» [à vida], isto é, a atingir a sensação elementar de existir, aceitando voluntariamente o seu destino, aprendendo a viver em conformidade com as leis da «Natureza», aceitando, com calma lucidez, a relatividade e a fugacidade de todas as coisas, recusando «tristezas» e «alegrias», na busca da indiferença à dor, ao desprazer, a qualquer sentimento extremo.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2002, 2.ª fase

 



 

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sexta-feira, 3 de março de 2023

Bocas roxas de vinho, Ricardo Reis

  

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Bocas roxas de vinho,
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa:

Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.

Antes isto que a vida
Como os homens a vivem,
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.

Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.

 

Ricardo Reis, Poesia. Lisboa, Assírio & Alvim. 2000

 

Proposta de comentário textual

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- oposição homens / deuses;

- relevância das formas verbais escolhidas;

- recursos estilísticos mais importantes;

- integração no universo poético de Ricardo Reis.

 

Explicitação de cenários de resposta

Oposição homens/deuses

Os homens vivem a vida «Cheia da negra poeira» (v. 11) na sucessão dos dias, ao passo que os deuses têm a eternidade como característica própria. A esta oposição entre temporalidade e intemporalidade liga-se outra, a que se estabelece entre a agitação dos homens e a imobilidade dos deuses.

Por outro lado, o «exemplo» (v. 14) dos deuses funciona, em relação aos homens, como um ideal de vida feliz, procurando estes «ir no rio das coisas» (v. 16), como se esperassem conseguir uma síntese entre o movimento da vida e a imobilidade eterna.

Em suma, é sobre a oposição homens / deuses que se constrói o fundamental do sentido do poema, como se os deuses não fossem senão homens perfeitos e os homens tendessem para assumir eles próprios a qualidade de deuses, num processo que aproxima uns e outros e os torna semelhantes.

 

Relevância das formas verbais escolhidas

Há a presença de um verbo em forma nominal na primeira quadra, «Deixados», o que tem a ver com o seu descritivismo. Depois, o «quadro» descrito é dado a ver na segunda quadra, por intermédio de duas formas do presente do conjuntivo, como uma imagem capaz de simbolizar aquela vida perfeita a que se deve aspirar. O presente do indicativo, que é usado nas restantes duas quadras, aponta para aspetos que justificam o preceito moral que o «quadro» inicialmente apresentado sugere.

 

Recursos estilísticos mais importantes

A primeira quadra constitui uma imagem (ou hipotipose, ou quadro) que assenta na harmonização das cores, o roxo e o branco, que, por sua vez, se opõem ao negro da imagem da terceira quadra. A segunda quadra, por uma oposição simétrica àquela que ocorre entre a primeira e a terceira, vai relacionar-se com a quarta quadra - sendo os deuses, o pólo comum a ambas, testemunhas da quietude feliz (segunda quadra) e mestres do «ir no rio das coisas» (quarta quadra) - numa antítese imobilidade / movimento.

Destacam-se, ainda, os seguintes recursos estilísticos:

- a adjetivação anteposta ao nome, dupla («Nus, brancos antebraços», v. 3) ou simples («negra poeira», v. 11);

- a metáfora («negra poeira», v. 11; «rio das coisas», v. 16);

- a comparação («Antes isto que a vida/ Como os homens a vivem», vv. 9-10);

- …

 

Integração no universo poético de Ricardo Reis

A conceção dos deuses como um ideal do humano é uma das marcas gerais da poesia de Ricardo Reis; outras serão a referência à filosofia epicurista e ao seu mote essencial, carpe diem, e a referência à filosofia estoica e à sua ideia de ataraxia, um tipo de tranquilidade (imobilidade e mudez, neste poema) que consiste na moderação com que se vive o prazer; o tempo é também um tema fulcral, entendido como o ritmo das coisas naturais - e, portanto, um tempo cíclico, o «ir no rio das coisas» - mas também como o instante perfeito que é preciso sentir na sua singularidade frágil e preciosa. De acordo com o seu credo classicista, Ricardo Reis aspira sempre à elevação e à harmonia, quer do ponto de vista estilístico, quer do ponto de vista moral.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 134. 12.º Ano de Escolaridade - Via de Ensino (4.º curso). Prova Escrita de Literatura Portuguesa, 2002, 1.ª fase, 2.ª chamada

 

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Outra proposta de comentário textual

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- relação entre «nós» (sujeito poético e Lídia) e «os homens»;

- papel desempenhado pelos «deuses»;

- aspetos formais e recursos estilísticos relevantes;

- presença de traços da poética de Ricardo Reis.

 

Observação:

Relativamente ao terceiro tópico, são exigidos dois aspetos formais e dois recursos estilísticos.

 

Comentário escrito de um texto literário - explicitação dos critérios de classificação

O comentário de um texto literário orientado por tópicos de análise visa avaliar as competências de compreensão e de expressão escritas.

Ao classificar o comentário elaborado pelo examinando, o professor deverá observar o domínio das seguintes capacidades:

- compreensão do sentido global do texto;

- interpretação do texto através da identificação e da relacionação dos elementos textuais produtores de sentido, na base de informação explícita e de inferências;

- seleção diversificada de elementos textuais pertinentes e adequados ao desenvolvimento dos tópicos enunciados;

- identificação de processos retóricos/estilísticos e de aspetos formais, com avaliação dos efeitos de sentido produzidos;

- relacionação do objeto em análise com o seu contexto;

- construção de um texto estruturado, a partir da articulação dos vários aspetos analisados;

- produção de um discurso correto nos planos lexical, morfológico, sintático e ortográfico.

 

Explicitação de cenários de resposta

Relação entre «nós» (sujeito poético e Lídia) e «Os homenu

Existe uma relação de oposição na medida em que o «nós» é representado:

- com uma atitude de torpor, de ausência de movimento («antebraços/ Deixados sobre a mesa», «Tal seja, Lídia, o quadro/ Em que fiquemos» - vv. 3-4 e 5-6), que contrasta com «a vida/ Como os homens a vivem» (vv. 9-10);

- com tonalidades coloridas («roxas», «brancas», «rosas» - vv. 1-2), que se opõem à imagem cromática associada aos «homens»: o negro da «poeira / Que erguem das estradas» (vv. 11-12);

- com atitudes de imobilidade, de contemplação, de mutismo, de quietude tranquila e até de abandono, que, aproximando o «nós» dos «deuses», o afastam do movimento da vida dos «homens», da dor provocada pela agitação e pelo conflito («Cheia da negra poeira/ Que erguem das estradas» -vv. 11-12);

- …

 

Papel desempenhado pelos «deuses»

Tendo como características específicas a eternidade e a intemporalidade, os «deuses» funcionam como um «exemplo», um ideal para os homens. Porém, as divindades apenas ajudam {«Só [...] socorrem») «aqueles» cuja quietude feliz testemunharam e que, cautelosos, <<nada mais pretendem» que fruir o instante, deixando-se «Ir no rio das coisas», ou seja. aceitando calmamente o Fatum. Assim, «aqueles» vivem serenamente, de forma similar à dos deuses - seguindo o seu «exemplo» -, pelo que ficam «Eternamente inscritos/ Na [sua] consciência» (vv.7-8).

 

Aspetos formais e recursos estilísticos relevantes

De entre os recursos estilísticos, destacam-se os seguintes:

- a adjetivação simples, por posposição ao nome («Bocas roxas», «Testas brancas» - vv. 1-2), e a adjetivação dupla e simples, por anteposição ao nome («Nus, brancos antebraços», «negra poeira» - vv. 3 e 11 ), contribuindo para a descrição dos elementos que compõem o «quadro»;

- a imagem (ou hipotipose, ou «quadro», como é sintetizado no verso 5) presente na primeira quadra, representando o «nós» num ambiente belo e harmonioso nas cores;

- a comparação («Antes isto que a vida/ Como os homens a vivem» - vv. 9-10), estabelecendo a oposição entre «nós» e «os homens» quanto ao modo de viver;

- as metáforas («a vida [...] Cheia da negra poeira», «rio das coisas» - vv. 9, 11 e 16), evidenciando o carácter negativo da existência e o fluir inevitável do tempo;

- as formas verbais no presente do conjuntivo (segunda quadra), modo de representação do desejo e do hipotético, indicando a vida perfeita a que se deve aspirar; no presente do indicativo (terceira e quarta quadras), modo de expressão do real, salientando traços da existência humana e da atitude divina que fundamentam a opção tomada anteriormente pelo sujeito poético (primeira quadra);

- o recurso aos dois pontos no fim da primeira quadra, sublinhando uma intenção explicativa;

- o hipérbato (cf. vv. 13-16), que marca a relação de identificação entre os «deuses» e «aqueles»;

- …

Quanto aos aspetos formais, temos:

- esquema estrófico regular, constituído por quatro quadras;

- ausência de rima;

- presença de encavalgamentos (enjambements)-w. 3-4, 7-8; 11-12, 14-15-16;

- …

Nota - Para a atribuição da cotação referente ao conteúdo deste tópico, é considerada suficiente a apresentação de quatro elementos, sendo obrigatoriamente indicados dois recursos estilísticos e dois aspetos formais. […]

 

Presença de traços da poética de Ricardo Reis

O poema evidencia alguns traços representativos da poética de Ricardo Reis. Assim:

- a defesa de uma filosofia estoico-epicurista, postuladora de tranquilidade e de ataraxia, do gozo moderado do prazer, tendo como mote o carpe diem; Reis evita o sofrimento que decorre do excesso das emoções, contentando-se em fruir o instante, gozando assim a margem de felicidade passivei (cf. vv. 1-8);

- a recusa da dor inerente à luta do homem contra as limitações próprias da condição humana e terrena (cf. vv. 9-12) e a aceitação do carácter inexorável do tempo (cf. v. 16);

- a conceção dos deuses como um ideal do humano, apontando o caminho da elevação e da harmonia estética e moral (cf. vv. 13-16);

- …

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 138. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral - Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A. Portugal, GAVE – Gabinete de Avaliação Educacional, 2005, 1.ª fase


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Questionário sobre o poema “Bocas roxas de vinho”, de Ricardo Reis.

1. Caracterize a relação que o sujeito poético estabelece com o destinatário do poema, Lídia. Comprove as suas afirmações com citações.

2. Explicite o valor simbólico da referência à “negra poeira” que os homens “erguem das estradas”.

3. Indique os versos que apontam para a relação do sujeito poético com o tempo e defina-a.

4. Refira o valor semântico do vocabulário empregue nas duas primeiras quadras, relacionando as expressões “bocas roxas”, “Testas brancas”, “Nus, brancos antebraços” com as formas verbais “deixados” e “fiquemos”.

5. Sintetize a filosofia de vida expressa no poema.

 

Chave de correção:

1. Lídia, a companheira de “viagem” de Reis, é a destinatária deste poema, a quem o sujeito poético ensina a conter qualquer atitude emotiva (“fiquemos, mudos”). Assim, a relação que Reis estabelece com Lídia é marcada pela contenção, pela aceitação do destino inexorável (“Eternamente inscritos/Na consciência dos deuses.”), deixando-se “ir no rio das coisas”, ou seja, demitindo-se de (recusando) qualquer esforço para alterar o curso natural da vida (passividade). Reis preconiza uma vivência horaciana, próxima do “carpe diem” expressa em toda a primeira estrofe, num quadro que ele pinta com as “tintas” dos deuses.

2. A metáfora “negra poeira” encerra um sentido duplamente negativo: “negra”, enquanto dolorosa, e “poeira”, enquanto resíduo inútil. Deste modo, a “negra poeira” que os homens “erguem das estradas” simboliza a inutilidade de qualquer esforço humano no seu percurso existencial.

3. Na poética de Reis, a relação com o tempo é definida pela consciência da precariedade e fugacidade da vida, o que o leva a deixar-se “ir no rio das coisas.” (v. 16) (passividade), sem nada mais exigir, seguindo o exemplo de “aqueles/Que nada mais pretendem” (vv. 14-15).

4. O vocabulário empregue nessas duas quadras apela claramente às sensações — “bocas roxas”, “Testas brancas”, “Nus, brancos antebraços” — num convite a viver o momento como um “quadro” mudo, em que ambos se abandonam ao prazer comedido (contido); esta ideia de abandono e contenção é expressa pelas formas verbais “deixados”e “fiquemos”.

5. Retomando tudo o que anteriormente foi referido, este poema é exemplo de uma filosofia de vida epicurista eivada de estoicismo: Reis convida Lídia a gozar suavemente o presente — o Momento — sem nada mais exigir que a sua fruição.

 

Fonte: Testes de Avaliação, Português 12.ºAno, Livro do Professor – Abordagens, Zaida Braga, Auxília Ramos, Elvira Pardinhas. Porto Editora, 2005, pp. 10 e 24


quinta-feira, 2 de março de 2023

A palidez do dia é levemente dourada. (Ricardo Reis)

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A palidez do dia é levemente dourada.
O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas
                Dos troncos de ramos secos.
                O frio leve treme.

Desterrado da pátria antiquíssima da minha
Crença, consolado só por pensar nos deuses
                Aqueço-me trémulo
                A outro sol do que este –

O sol que havia sobre o Pártenon1 e a Acrópole2
O que alumiava os passos lentos e graves
                De Aristóteles3 falando.
                Mas Epicuro4 melhor

Me fala, com a sua cariciosa voz terrestre
Tendo para os deuses uma atitude também de deus,
               Sereno e vendo a vida
               À distância a que está.

 

19-6-1914

Ricardo Reis, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000


_________

1 Pártenon: templo da deusa Atena, erguido na acrópole da cidade de Atenas no século V a.C.

2 Acrópole: parte mais alta das antigas cidades gregas, em Atenas consagrada à deusa Atena; recinto sagrado onde se situavam os templos dos deuses protetores da cidade.

3 Aristóteles: filósofo grego (384-322 a.C.).

4 Epicuro: filósofo grego (341-270 a.C.).

 

 

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- modos de representação da natureza;

- importância simbólica do «outro sol»;

- aspetos formais e recursos estilísticos relevantes;

- traços caracterizadores do sujeito poético.

 

O comentário de um texto literário orientado por tópicos de análise visa avaliar as competências de compreensão e de expressão escritas.

Ao classificar o comentário elaborado pelo examinando, o professor deverá observar o domínio das seguintes capacidades:

- compreensão do sentido global do texto;

- interpretação do texto através da identificação e da relacionação dos elementos textuais produtores de sentido, na base de informação explícita e de inferências;

- seleção diversificada de elementos textuais pertinentes e adequados ao desenvolvimento dos tópicos enunciados;

- identificação de processos retóricos/estilísticos e de aspetos formais, com avaliação dos efeitos de sentido produzidos;

- relacionação do objeto em análise com o seu contexto;

- construção de um texto estruturado, a partir da articulação dos vários aspetos analisados;

- produção de um discurso correto nos planos lexical, morfológico, sintático e ortográfico.

 

 

Explicitação de cenários de resposta

Os cenários de resposta que a seguir se apresentam consideram-se orientações gerais, tendo em vista uma indispensável aferição de critérios. Não deve, por isso, ser desvalorizada qualquer interpretação que, não coincidindo com as linhas de leitura apresentadas, seja julgada válida pelo professor.

 

Modos de representação da natureza

A natureza é representada do seguinte modo:

- um dia de inverno de tonalidade clara («A palidez do dia»), ténue e doce, mas que, matizado pela luz ainda assim brilhante («levemente dourada») do «sol», sugere uma temperatura amena que, todavia, não o é («O frio leve treme.» - v. 4); trata-se, pois, de um bonito dia de Inverno cuja qualidade luminosa não anula o «frio» ambiente, mas em que sobressai a vibração da luz;

- uma vegetação despida de folhagem, própria da estação, que parece revivificar-se quando sobre ela incidem os raios solares («O sol [...] faz luzir como orvalho as curvas / Dos troncos de ramos secos.» - w. 2-3);

- …

 

Importância simbólica do «outro sol»

A importância simbólica do «outro sol» tem a ver com:

- a sua natureza mítica, uma vez que simboliza a cultura da Grécia Antiga por ele iluminada. (cf. w. 8-11: «o Pártenon e a Acrópole»; «alumiava os passos lentos e graves / De Aristóteles»);

- o facto de representar os valores da Grécia Antiga, tornando-se, assim, uma imagem tranquilizadora a que o «eu» se acolhe, rejeitando o desconforto de um presente cujo «sol» não aquece («Aqueço-me trémulo / A outro sol do que este» - w. 7-8);

- a presença viva de um passado habitado pelos deuses e por filósofos, sobretudo Epicuro, que aos deuses se compara na serenidade;

- …

 

Aspetos formais e recursos estilísticos relevantes

Quanto aos recursos estilísticos, salientam-se, entre outros, os seguintes:

- a adjetivação profusa, simples («dourada», «secos», «leve», «Desterrado», «antiquíssima», «consolado», «trémulo», «sereno») e dupla («lentos e graves», «cariciosa voz terrestre» - recorrendo, neste caso, à anteposição e posposição do adjetivo), caracterizando expressivamente o espaço, o tempo, as emoções do «eu» e as atitudes dos filósofos;

- a personificação («A palidez do dia», «O frio leve treme»), pondo em evidência a qualidade da luz e do frio;

- a comparação («O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas / Dos troncos de ramos secos.»), dando relevo ao efeito de metamorfose criado pela luz solar;

- o uso predominante de formas verbais do presente do indicativo (<<é», «faz», «treme», «Aqueço-me», «Me fala», «está»), marcando claramente o tempo da enunciação como atual (nas duas primeiras estrofes) e apontando para uma fusão do tempo passado no presente (cf. última estrofe); o recurso ao imperfeito do indicativo («havia», «alumiava») como forma de presentificação do passado; e as formas gerundivas («falando», «Tendo», «vendo»), expressando as acções enquanto elas decorrem;

- a metáfora «outro sol», convocando a cultura helénica como um tempo/lugar distante («pátria antiquíssima»);

- …

 

Quanto aos aspetos formais, temos:

- esquema estrófico regular, constituído por quatro quadras;

- oscilação métrica, mas mantendo a regularidade da alternância entre versos longos (os dois primeiros de cada estrofe) e versos curtos (os dois últimos da estrofe);

- encavalgamentos (enjambements) - vv. 2-3, 5-6, 10-11, 12-13;

- …

Nota - Para a atribuição da totalidade da cotação (2 + 13) referente ao conteúdo deste tópico do comentário, é considerada suficiente a apresentação de quatro elementos, distribuindo-se obrigatoriamente pelas duas categorias, recursos estilísticos e aspetos formais.

 

Traços caracterizadores do sujeito poético

O sujeito poético autocaracteriza-se como alguém que:

- se encontra exilado, separado do mundo e do tempo nos quais imperaram os valores por si respeitados («Desterrado da pátria antiquíssima da minha / Crença» - vv. 5-6);

- se refugia no pensamento pagão para superar a privação da «pátria antiquíssima» («consolado só por pensar nos deuses»): encara, assim, o «outro sol» como um elemento reconfortante, tranquilizador e protetor («Aqueço-me trémulo»);

- é conhecedor e admirador da cultura da Grécia Antiga, salientando locais sagrados emblemáticos (de Atenas) e filósofos como Aristóteles e Epicuro;

- segue a «cariciosa voz terrestre» de Epicuro, que «melhor» lhe «faia» que a de Aristóteles, valorizando a sua atitude humana mas também a sua impassibilidade divina (cf. vv. 13-14), o seu estar «Sereno» e a capacidade de ir «vendo a vida / À distância a que está»;

- é, em suma, um epicurista que, como tal, valoriza a vivência calma e distanciada do presente;

- …

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 - Recurso. Portugal, GAVE [IAVE], 2003)

 

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Texto de apoio 

O Misérrimo Desterro 

Tal como a impossibilidade de obter a calma e a liberdade de antigamente o força a buscar a ilusão de cada uma dessas coisas, a impossibilidade de buscar a felicidade há de certamente conduzi-lo a buscar a ilusão disso. Em certo sentido, é isso que é tentado através da consolação de pensar nos deuses de que dá conta a ode “A pallidez do dia é levemente dourada” (BNP 51-10r), uma ode escrita logo a 19 de junho de 1914.

A modernidade em que Reis nasceu é aqui associada ao frio e à palidez de um dia iluminado por um “sol de inverno”, por contraste com o dia mais quente e mais brilhante que caracteriza a “patria antiquissima” de que está desterrado. Sendo a felicidade que não pode alcançar equiparada, portanto, ao calor e à claridade do Verão, a ilusão da felicidade, que é tudo o que pode buscar nas condições presentes, deve poder ser obtida por qualquer fonte de calor ou claridade que se crie artificialmente. Tal artifício não é, pelo menos nesta ode, idêntico àquele de que falei no capítulo anterior. Não obstante o calor providenciado pela proximidade do fogo, o prazer de ficar à lareira relacionava-se, nesse caso, sobretudo com as histórias antigas que nessas condições se contariam. Não é, de todo, o que está aqui a ser insinuado, até porque o tópico da ode não é, como nesse caso, a relação entre a liberdade e a inconsciência da juventude, mas a relação entre a felicidade e as condições propiciadas pela pátria antiga para que ela se pudesse buscar. Neste sentido, é importante verificar a afinidade entre o consolo facultado pela estratégia de pensar nos deuses, apresentado como solução para o desterro logo no segundo verso da segunda estrofe, e o que é dito no resto da ode, sobretudo a respeito do comportamento divino com que a serenidade de Epicuro é descrita.

Tal como o frio em que consiste viver “desterrado da patria antiquissima da minha /crença” requer o calor do consolo de “pensar nos deuses”, não viver sob um sol que o aqueça requer a criação de um que o faça. O sol que Ricardo Reis assim cria é “o sol que havia sobre o Parthenon e a Acropole”, o mesmo sol que “alumiava os passos lentos e graves / de Aristoteles fallando”. Não é decerto casual que Reis lembre Aristóteles, dado que o assunto em análise é o da felicidade. A referência a Aristóteles, no entanto, tão depressa aparece como desaparece: Reis sabe que a proposta aristotélica não lhe interessa e que, na verdade, fora pela noção de felicidade epicurista que invocara o sol antigo. Epicuro fala-lhe melhor do que Aristóteles, como o afirma na transição da penúltima para a última estrofe, precisamente porque a sua voz lhe é mais “cariciosa” e “terrestre” (RR 101), isto é, porque o consolo que há na serenidade e na indiferença proposta por Epicuro não dispensa um certo tipo de prazer. Enquanto epicurista, Reis pretende extrair prazer do sol que cria para se aquecer; a ilusão da felicidade assim criada não serve apenas para suportar o conhecimento tenebroso de que não é possível ser feliz.

Há no consolo de “pensar nos deuses”, por isso, um comprazimento idêntico ao consolo providenciado pela serenidade e pela indiferença epicurista. Pensar nos deuses é criar o sol que o aquece porque, de acordo com a doutrina epicurista, pensar nos deuses sem outra intenção que não seja pensar neles é ter “para os deuses uma atitude tambem de deus”, exatamente aquilo que, na última estrofe, Reis afirma sobressair quer da serenidade exibida por Epicuro ao falar, quer da indiferença com que vê “a vida / á distancia a que está”. Mais uma vez, parece existir uma coincidência entre a ética estoica e a ética epicurista. Se o desterro e o frio da época em que Reis vive lhe impõem a atitude estoica de se consolar pensando nos deuses, a ataraxia em que essa atitude consiste aproxima-o dos deuses, como Epicuro, permitindo-lhe assim comprazer-se na ilusão do regresso à pátria e do calor com que se aqueça142. Não é por acaso, de resto, que o esforço de criação de um sol alternativo é dado pela antítese “aqueço-me trémulo” (RR 101): sendo esse sol a que se aquece criado por si, Reis aquece-se continuando, porém, a tremer de frio; sendo essa felicidade meramente ilusória, alcança-a continuando, porém, a saber que é infeliz.

Enquanto velho lúcido, Reis possui a lucidez necessária com que recordar a lucidez da juventude. Não podendo voltar a ser jovem, dado o desterro em que se encontra, e não podendo, por isso, buscar a felicidade que buscaria noutras circunstâncias, Reis preserva, todavia, a lucidez da juventude. Apesar de não lhe permitir reaver a juventude, tal lucidez autoriza-o, pelo menos, a recriá-la artificialmente e a fingir, por conseguinte, a felicidade que a ela se associa. Que essa juventude seja recriada, a julgar pela ode ainda agora analisada, através do truque de pensar em deuses que o consolem, e que a felicidade inerente à juventude possa de algum modo ser fingida através da criação de um sol com o qual se possa aquecer, dá à estratégia uma vaga carga erótica.

 

Nuno Amado, Ricardo Reis, 1887-1936. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2016

__________

142 É este comprazimento, sempre presente em Reis, que me faz discordar da ideia de Luís de Oliveira e Silva de que “Reis é possuído pelo ‘horror de morrer’ que o Fausto de Pessoa encarna, pelo timor mortis causado pela angustiosa impossibilidade da presciência humana” (Silva, 1985: 107).

 

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quarta-feira, 1 de março de 2023

Lisboa com suas casas de várias cores (Álvaro de Campos)

 



Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores...
À força de diferente, isto é monótono,
Como à força de sentir, fico só a pensar.

Se, de noite, deitado mas desperto
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos,
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.

Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
À força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.

Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.

11/5/1934

Álvaro de Campos, Poesia, edição de Teresa Rita Lopes, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, pp. 491-492.

 

Questionário sobre o poema “Lisboa com suas casas”, de Álvaro de Campos

1. Relacione o conteúdo do verso 7 com o dos primeiros seis versos do poema.

2. Na segunda estrofe, o sujeito poético manifesta o desejo de sonhar algo diferente da realidade.

Explicite o contexto em que ocorre a manifestação desse desejo, bem como a razão pela qual o sujeito poético não o consegue concretizar.

3. Tanto no verso 8 como no verso 22, são enunciados processos de transformação no sujeito poético, ambos associados a uma ideia de intensificação.

Explicite esses processos de transformação.

4. Selecione a opção de resposta adequada para completar a afirmação.

De entre os vários processos que contribuem para imprimir ritmo ao poema, destaca-se a presença, em simultâneo,

(A) de um esquema rimático fixo em todas as estrofes e da repetição de palavras em final de verso.

(B) da alternância entre versos longos e versos curtos e de anástrofes frequentes.

(C) de um esquema rimático fixo em todas as estrofes e de anástrofes frequentes.

(D) da alternância entre versos longos e versos curtos e da repetição de palavras em final de verso.

 

Critérios específicos de classificação

1. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

− a repetição, quase obsessiva, da representação de Lisboa com as suas casas de várias cores (vv. 1 a 6) leva o sujeito poético a associar o adjetivo «diferente» (v. 7) à paisagem que perceciona;

− a constância/persistência dessa regularidade conduz, todavia, à ideia expressa pelo adjetivo «monótono» (v. 7), evidenciando um sentimento de tédio.

2. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

− o desejo do sujeito poético ocorre na solidão insone da noite, momento de lucidez propício ao pensamento e ao devaneio/sonho;

− o sujeito poético não consegue concretizar o seu desejo, pois a realidade prevalece sobre o sonho, como se a imagem de «Lisboa com suas casas/De várias cores» estivesse gravada no seu íntimo («Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras» v. 17).

3. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

− no verso 8, a intensificação das emoções («À força de sentir») conduz ao pensamento / à intelectualização das emoções / à racionalização;

− no verso 22, a intensificação da consciência («à força de ser eu») conduz à inconsciência / à não consciência de si / à anulação do «eu».

4. Chave: (D)

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 – 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 27-B/2022, de 23 de março). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2022, Época Especial

 

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