quinta-feira, 2 de março de 2023

A palidez do dia é levemente dourada. (Ricardo Reis)

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A palidez do dia é levemente dourada.
O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas
                Dos troncos de ramos secos.
                O frio leve treme.

Desterrado da pátria antiquíssima da minha
Crença, consolado só por pensar nos deuses
                Aqueço-me trémulo
                A outro sol do que este –

O sol que havia sobre o Pártenon1 e a Acrópole2
O que alumiava os passos lentos e graves
                De Aristóteles3 falando.
                Mas Epicuro4 melhor

Me fala, com a sua cariciosa voz terrestre
Tendo para os deuses uma atitude também de deus,
               Sereno e vendo a vida
               À distância a que está.

 

19-6-1914

Ricardo Reis, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000


_________

1 Pártenon: templo da deusa Atena, erguido na acrópole da cidade de Atenas no século V a.C.

2 Acrópole: parte mais alta das antigas cidades gregas, em Atenas consagrada à deusa Atena; recinto sagrado onde se situavam os templos dos deuses protetores da cidade.

3 Aristóteles: filósofo grego (384-322 a.C.).

4 Epicuro: filósofo grego (341-270 a.C.).

 

 

Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- modos de representação da natureza;

- importância simbólica do «outro sol»;

- aspetos formais e recursos estilísticos relevantes;

- traços caracterizadores do sujeito poético.

 

O comentário de um texto literário orientado por tópicos de análise visa avaliar as competências de compreensão e de expressão escritas.

Ao classificar o comentário elaborado pelo examinando, o professor deverá observar o domínio das seguintes capacidades:

- compreensão do sentido global do texto;

- interpretação do texto através da identificação e da relacionação dos elementos textuais produtores de sentido, na base de informação explícita e de inferências;

- seleção diversificada de elementos textuais pertinentes e adequados ao desenvolvimento dos tópicos enunciados;

- identificação de processos retóricos/estilísticos e de aspetos formais, com avaliação dos efeitos de sentido produzidos;

- relacionação do objeto em análise com o seu contexto;

- construção de um texto estruturado, a partir da articulação dos vários aspetos analisados;

- produção de um discurso correto nos planos lexical, morfológico, sintático e ortográfico.

 

 

Explicitação de cenários de resposta

Os cenários de resposta que a seguir se apresentam consideram-se orientações gerais, tendo em vista uma indispensável aferição de critérios. Não deve, por isso, ser desvalorizada qualquer interpretação que, não coincidindo com as linhas de leitura apresentadas, seja julgada válida pelo professor.

 

Modos de representação da natureza

A natureza é representada do seguinte modo:

- um dia de inverno de tonalidade clara («A palidez do dia»), ténue e doce, mas que, matizado pela luz ainda assim brilhante («levemente dourada») do «sol», sugere uma temperatura amena que, todavia, não o é («O frio leve treme.» - v. 4); trata-se, pois, de um bonito dia de Inverno cuja qualidade luminosa não anula o «frio» ambiente, mas em que sobressai a vibração da luz;

- uma vegetação despida de folhagem, própria da estação, que parece revivificar-se quando sobre ela incidem os raios solares («O sol [...] faz luzir como orvalho as curvas / Dos troncos de ramos secos.» - w. 2-3);

- …

 

Importância simbólica do «outro sol»

A importância simbólica do «outro sol» tem a ver com:

- a sua natureza mítica, uma vez que simboliza a cultura da Grécia Antiga por ele iluminada. (cf. w. 8-11: «o Pártenon e a Acrópole»; «alumiava os passos lentos e graves / De Aristóteles»);

- o facto de representar os valores da Grécia Antiga, tornando-se, assim, uma imagem tranquilizadora a que o «eu» se acolhe, rejeitando o desconforto de um presente cujo «sol» não aquece («Aqueço-me trémulo / A outro sol do que este» - w. 7-8);

- a presença viva de um passado habitado pelos deuses e por filósofos, sobretudo Epicuro, que aos deuses se compara na serenidade;

- …

 

Aspetos formais e recursos estilísticos relevantes

Quanto aos recursos estilísticos, salientam-se, entre outros, os seguintes:

- a adjetivação profusa, simples («dourada», «secos», «leve», «Desterrado», «antiquíssima», «consolado», «trémulo», «sereno») e dupla («lentos e graves», «cariciosa voz terrestre» - recorrendo, neste caso, à anteposição e posposição do adjetivo), caracterizando expressivamente o espaço, o tempo, as emoções do «eu» e as atitudes dos filósofos;

- a personificação («A palidez do dia», «O frio leve treme»), pondo em evidência a qualidade da luz e do frio;

- a comparação («O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas / Dos troncos de ramos secos.»), dando relevo ao efeito de metamorfose criado pela luz solar;

- o uso predominante de formas verbais do presente do indicativo (<<é», «faz», «treme», «Aqueço-me», «Me fala», «está»), marcando claramente o tempo da enunciação como atual (nas duas primeiras estrofes) e apontando para uma fusão do tempo passado no presente (cf. última estrofe); o recurso ao imperfeito do indicativo («havia», «alumiava») como forma de presentificação do passado; e as formas gerundivas («falando», «Tendo», «vendo»), expressando as acções enquanto elas decorrem;

- a metáfora «outro sol», convocando a cultura helénica como um tempo/lugar distante («pátria antiquíssima»);

- …

 

Quanto aos aspetos formais, temos:

- esquema estrófico regular, constituído por quatro quadras;

- oscilação métrica, mas mantendo a regularidade da alternância entre versos longos (os dois primeiros de cada estrofe) e versos curtos (os dois últimos da estrofe);

- encavalgamentos (enjambements) - vv. 2-3, 5-6, 10-11, 12-13;

- …

Nota - Para a atribuição da totalidade da cotação (2 + 13) referente ao conteúdo deste tópico do comentário, é considerada suficiente a apresentação de quatro elementos, distribuindo-se obrigatoriamente pelas duas categorias, recursos estilísticos e aspetos formais.

 

Traços caracterizadores do sujeito poético

O sujeito poético autocaracteriza-se como alguém que:

- se encontra exilado, separado do mundo e do tempo nos quais imperaram os valores por si respeitados («Desterrado da pátria antiquíssima da minha / Crença» - vv. 5-6);

- se refugia no pensamento pagão para superar a privação da «pátria antiquíssima» («consolado só por pensar nos deuses»): encara, assim, o «outro sol» como um elemento reconfortante, tranquilizador e protetor («Aqueço-me trémulo»);

- é conhecedor e admirador da cultura da Grécia Antiga, salientando locais sagrados emblemáticos (de Atenas) e filósofos como Aristóteles e Epicuro;

- segue a «cariciosa voz terrestre» de Epicuro, que «melhor» lhe «faia» que a de Aristóteles, valorizando a sua atitude humana mas também a sua impassibilidade divina (cf. vv. 13-14), o seu estar «Sereno» e a capacidade de ir «vendo a vida / À distância a que está»;

- é, em suma, um epicurista que, como tal, valoriza a vivência calma e distanciada do presente;

- …

 

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 - Recurso. Portugal, GAVE [IAVE], 2003)

 

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Texto de apoio 

O Misérrimo Desterro 

Tal como a impossibilidade de obter a calma e a liberdade de antigamente o força a buscar a ilusão de cada uma dessas coisas, a impossibilidade de buscar a felicidade há de certamente conduzi-lo a buscar a ilusão disso. Em certo sentido, é isso que é tentado através da consolação de pensar nos deuses de que dá conta a ode “A pallidez do dia é levemente dourada” (BNP 51-10r), uma ode escrita logo a 19 de junho de 1914.

A modernidade em que Reis nasceu é aqui associada ao frio e à palidez de um dia iluminado por um “sol de inverno”, por contraste com o dia mais quente e mais brilhante que caracteriza a “patria antiquissima” de que está desterrado. Sendo a felicidade que não pode alcançar equiparada, portanto, ao calor e à claridade do Verão, a ilusão da felicidade, que é tudo o que pode buscar nas condições presentes, deve poder ser obtida por qualquer fonte de calor ou claridade que se crie artificialmente. Tal artifício não é, pelo menos nesta ode, idêntico àquele de que falei no capítulo anterior. Não obstante o calor providenciado pela proximidade do fogo, o prazer de ficar à lareira relacionava-se, nesse caso, sobretudo com as histórias antigas que nessas condições se contariam. Não é, de todo, o que está aqui a ser insinuado, até porque o tópico da ode não é, como nesse caso, a relação entre a liberdade e a inconsciência da juventude, mas a relação entre a felicidade e as condições propiciadas pela pátria antiga para que ela se pudesse buscar. Neste sentido, é importante verificar a afinidade entre o consolo facultado pela estratégia de pensar nos deuses, apresentado como solução para o desterro logo no segundo verso da segunda estrofe, e o que é dito no resto da ode, sobretudo a respeito do comportamento divino com que a serenidade de Epicuro é descrita.

Tal como o frio em que consiste viver “desterrado da patria antiquissima da minha /crença” requer o calor do consolo de “pensar nos deuses”, não viver sob um sol que o aqueça requer a criação de um que o faça. O sol que Ricardo Reis assim cria é “o sol que havia sobre o Parthenon e a Acropole”, o mesmo sol que “alumiava os passos lentos e graves / de Aristoteles fallando”. Não é decerto casual que Reis lembre Aristóteles, dado que o assunto em análise é o da felicidade. A referência a Aristóteles, no entanto, tão depressa aparece como desaparece: Reis sabe que a proposta aristotélica não lhe interessa e que, na verdade, fora pela noção de felicidade epicurista que invocara o sol antigo. Epicuro fala-lhe melhor do que Aristóteles, como o afirma na transição da penúltima para a última estrofe, precisamente porque a sua voz lhe é mais “cariciosa” e “terrestre” (RR 101), isto é, porque o consolo que há na serenidade e na indiferença proposta por Epicuro não dispensa um certo tipo de prazer. Enquanto epicurista, Reis pretende extrair prazer do sol que cria para se aquecer; a ilusão da felicidade assim criada não serve apenas para suportar o conhecimento tenebroso de que não é possível ser feliz.

Há no consolo de “pensar nos deuses”, por isso, um comprazimento idêntico ao consolo providenciado pela serenidade e pela indiferença epicurista. Pensar nos deuses é criar o sol que o aquece porque, de acordo com a doutrina epicurista, pensar nos deuses sem outra intenção que não seja pensar neles é ter “para os deuses uma atitude tambem de deus”, exatamente aquilo que, na última estrofe, Reis afirma sobressair quer da serenidade exibida por Epicuro ao falar, quer da indiferença com que vê “a vida / á distancia a que está”. Mais uma vez, parece existir uma coincidência entre a ética estoica e a ética epicurista. Se o desterro e o frio da época em que Reis vive lhe impõem a atitude estoica de se consolar pensando nos deuses, a ataraxia em que essa atitude consiste aproxima-o dos deuses, como Epicuro, permitindo-lhe assim comprazer-se na ilusão do regresso à pátria e do calor com que se aqueça142. Não é por acaso, de resto, que o esforço de criação de um sol alternativo é dado pela antítese “aqueço-me trémulo” (RR 101): sendo esse sol a que se aquece criado por si, Reis aquece-se continuando, porém, a tremer de frio; sendo essa felicidade meramente ilusória, alcança-a continuando, porém, a saber que é infeliz.

Enquanto velho lúcido, Reis possui a lucidez necessária com que recordar a lucidez da juventude. Não podendo voltar a ser jovem, dado o desterro em que se encontra, e não podendo, por isso, buscar a felicidade que buscaria noutras circunstâncias, Reis preserva, todavia, a lucidez da juventude. Apesar de não lhe permitir reaver a juventude, tal lucidez autoriza-o, pelo menos, a recriá-la artificialmente e a fingir, por conseguinte, a felicidade que a ela se associa. Que essa juventude seja recriada, a julgar pela ode ainda agora analisada, através do truque de pensar em deuses que o consolem, e que a felicidade inerente à juventude possa de algum modo ser fingida através da criação de um sol com o qual se possa aquecer, dá à estratégia uma vaga carga erótica.

 

Nuno Amado, Ricardo Reis, 1887-1936. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2016

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142 É este comprazimento, sempre presente em Reis, que me faz discordar da ideia de Luís de Oliveira e Silva de que “Reis é possuído pelo ‘horror de morrer’ que o Fausto de Pessoa encarna, pelo timor mortis causado pela angustiosa impossibilidade da presciência humana” (Silva, 1985: 107).

 

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