sexta-feira, 28 de julho de 2023

Quem desenterrará o que é preciso esquecer? (Manuel António Pina)

  

Uma segunda e mais perigosa inocência

 

Aquele que quer conservar a vida perdê-la-á.

Marcos, 8, 35

 

Quem desenterrará o que é preciso esquecer?
O escritor torna-se retórico com cega serenidade,
será preciso passar para o lado de fora, flutuar?

Escrevo aquilo que não posso,
transformo-me no que me proponho destruir.
Já não é uma Literatura, é uma Fatalidade.

Aquele que quer morrer
é aquele que quer conservar a vida,
a tristeza daquele que fala ri-se de tudo,
que sentido faz isto e que sentido não faz isto?

 

Manuel António Pina, Aquele que quer morrer, 1978 (Todas as Palavras poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, p. 68)

 

No poema há uma indagação sobre renascimento e suas relações com uma ideia de arte (no caso a literatura). Partindo do mote da epígrafe, Pina inverte a equação. Em lugar daquele que perde a vida ao tentar conservá-la, temos aquele que quer conservar a vida ao querer morrer. Eis um conceito de renascimento: morrer, mas conservar a vida. O que deseja renascer precisa morrer, mas paradoxalmente manter a vida. Nietzsche fala da severa enfermidade, de um estado de quase morte, para que daí surja a segunda inocência. Já Pina trata da impossibilidade desse paradoxo (“que sentido faz isto e que sentido não faz isto?”). Aliado a isso também aparece uma ideia de arte, mas que se constrói a partir da suspeita e do paradoxo. A Literatura (escrita com maiúscula) torna-se Fatalidade, pois escreve-se na impossibilidade do dizer, nos limites do sentido e do não-sentido. Palavra ‘sentido’ que, aliás, está carregada de ambiguidade semântica: a de criar uma significação e sentir sensorialmente; pois a Literatura se confunde com a vida (essa fatalidade) e, portanto, significado e sensação (vazios ou plenos) são formas de morrer conservando a vida. “Escrevo aquilo que não posso” surge como uma constatação de suspeita tanto em relação à arte como à ideia de renascimento.

AFORISMOS 233, 236, 262 E 266, DE A GAIA CIÊNCIA (NIETZSCHE) 
O rascunho de “Uma segunda e mais perigosa inocência”
 está entremeado de uma série de excertos copiados de
 uma tradução de A gaia ciência, de Nietzsche


O poema em si estrutura-se na forma de indagação. Sintaticamente, temos cinco orações completas, sendo três delas perguntas. Apenas a segunda estrofe contém afirmações, sendo ambas asseverações da impossibilidade. Tal paradoxo da impossibilidade também é um pouco nietzschiano, pois no trecho anotado por Pina do aforismo 262 de A gaia ciência, lemos o subtítulo latino Sub specie aeterni (do ponto de vista da eternidade) e a última frase do aforismo: “o privilégio é não morrer”. Esse privilégio, segundo Nietzsche, é dos mortos e não dos vivos: “É a única maneira de partilhar o privilégio dos mortos” (NIETZSCHE, 2012, p. 164). Novamente “aquele que quer morrer/ é aquele que quer conservar a vida”. Ou ainda, no poema “Na morte de Mao”, do mesmo livro e que também aparece rascunhado nessa parte do espólio a que estamos nos referindo: “A morte é propriedade dos vivos,/ aquele que morreu já não vive nem está morto” (PINA, 2012, p. 96). A partir de uma constatação que se diria lógica – a morte só pertence aos vivos –, Pina constrói um diálogo que diz muito mais do que o lógico; aponta para a dúvida e impossibilidade como um princípio poético.

 

Entre nomes supostos: ceticismo linguístico na poesia de Fernando Pessoa e Manuel António Pina, Thiago Queiroz. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 2021

 

ANOTAÇÃO DO AFORISMO 182 E PARTE DO AFORISMO 183, DE A GAIA CIÊNCIA


[…]

Tal modulação de um sentido prévio de infância estaria ligada, em alguma medida, ao que, na escrita de Pina, ganha cena através do título de um de seus poemas, tomado de uma passagem de Nietzsche,18 em seu livro A gaia ciência: “Uma segunda e mais perigosa inocência19 (PINA, 2012, p. 68):


[...] voltamos renascidos, de pele mudada, mais suscetíveis, mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria, com língua mais delicada para todas as coisas boas, com sentidos mais risonhos, com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais infantis e cem vezes mais refinados do que jamais fôramos antes (NIETZSCHE, 2001, p. 13).

 

Na passagem de Nietzsche, lemos a finalização da frase que, embora não esteja no título do poema: “com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria” (grifo nosso), comparece, com alguma discrição, nos versos que esboçam uma quase contra-arte poética: uma segunda inocência na alegria – apesar de toda consciência da fatalidade e melancolia de quem escreve tardiamente perante uma modernidade que já não é possível alcançar, de uma primeira infância igualmente irrecuperável, de quem escreve, afinal, aquilo que não pode –, alegria inscrita, de algum modo, em grau mais sutil, não evidente, em forma de tristeza daquele que “ri-se de tudo”, através de uma relação irônica e risonha com o passado, com a Literatura, e a sua morte, de um exercício persistente, e não sem tormento, de despersonalização consciente de sua retórica em cega e contraditória “serenidade”, quando exercer essa segunda inocência, essa infância como gesto, modulação, procedimento, é antes de tudo brincar com o tempo, e no caso de Pina, com a biblioteca, esse “lugar anacrônico por excelência” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 26).

O poema traz ainda uma epígrafe: “Aquele que quer conservar a vida perdê-la-á”, apotegma de Marcos, de onde virá inclusive o verso-título do livro de 1978, Aquele que quer morrer (PINA, 1978). Existe uma disjunção de tempos nessa composição, uma montagem de temporalidades heterogêneas no espaço do poema, procedimento que pode se evidenciar na afirmação de Rui Lage:


O estatuto do poeta contemporâneo implícito na poesia de Pina é o de um investigador forense debruçado sobre o cadáver da Literatura. É uma criatura tardia, um recoletor de sentidos dispersados, um inventariador de ruínas, de “papéis velhos, vidas mortas, /identidade, sujidade, eternidade”. (LAGE, 2016, p. 29)

A infância em Pina surgiria antes de mais no gesto de um colecionador, perdido na biblioteca, capaz de em seus poemas “introduzir-se na Última Ceia pela mão de Quevedo, ao parafrasear Bob Dylan, ao cruzar num mesmo poema a letra de ‘Highway to hell’ do AC/DC com o despenhamento do carro do Sol às mãos de Faetonte” (LAGE, 2016, p. 28). Além do intenso trabalho de intertextualidade em seus poemas, das referências, colagens, do “recurso constante à citação, ao pastiche, a alusões, ao remake, à glosa, ao revivalismo” (SANTOS, 2004, p. 19), compondo o que Pedro Eiras chamará de “palimpsesto absoluto” (EIRAS, 2002, p. 155), tal gesto de infância se configuraria ainda na tentativa incessante de dissolução de uma voz autoral; na criação de pseudo heterônimos, como Slim da Silva e Clóvis da Silva;20 e em deslocamentos e desmontagens sintáticos, como, por exemplo, em torno do dêitico isto: “Alguma coisa em algum lugar/ de o que existe e de o que não existe/ é isto que escreve e a ciência de isto/ a pura voz sem sujeito e o fora de ela” (PINA, 2012, p. 69).

 

_______

18 Como bem aponta Rui Lage, Pina em entrevista à “Ciber- kiosk”, afirma de forma explícita: “Os poemas de Aquele que quer morrer radicam, fundamentalmente, em duas leituras (os livros geram outros livros): o Tao Te King e A gaia ciência, de Nietzsche” (PINA, 2016, p. 18).

19 A expressão encontra igualmente lugar numa fala de Pina sobre a infância, em entrevista dada a Luís Miguel Queirós: “A infância é algo que só se tem quando se perde, porque as crianças estão perto de mais da infância para se aperceberem dela. Como em outras poesias, na minha a infância – a palavra ‘infância’ e a ideia de infância mais do que a concreta memória de uma infância – é, julgo eu, a melancolia da ‘primeiridão’, de um tempo mítico em que olhámos o mundo e a nós próprios pela primeira vez, com olhos inocentes de palavras e de memória, isto é, ‘não embaciados de nenhuma palavra/ e nenhuma lembrança’. Não é a inocência da criança, que é uma inocência inocente, mas uma nietzschiana ‘segunda e mais perigosa inocência’, uma inocência que se sabe inocente, ou então apenas uma espécie de vontade de inocência” (QUEIRÓS, 2011, s/p).

 

Entre o brinquedo e a biblioteca: a poética de Manuel António Pina, Paloma Roriz Espínola. Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2020

 

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Cuidados intensivos, Manuel António Pina


 

Cuidados intensivos

 

III

 

«Vê se há mensagens
no gravador de chamadas;
rega as roseiras;
as chaves estão
na mesa do telefone;
traz o meu
caderno de apontamentos
(o de folhas
sem linhas, as linhas distraem-me).
Não digas nada
a ninguém,
o tempo, agora,
é de poucas palavras,
e de ainda menos sentido.
Embora eu, pelos vistos,
não tenha razão de queixa.

Senhor, permite que algo permaneça,
alguma palavra ou alguma lembrança,
que alguma coisa possa ter sido
de outra maneira,
não digo a morte, nem a vida,
mas alguma coisa mais insubstancial.
Se não para que me deste os substantivos e os verbos,
o medo e a esperança,
a urze e o salgueiro,
os meus heróis e os meus livros?

Agora o meu coração
está cheio de passos
e de vozes falando baixo,
de nomes passados
lembrando-me onde
as minhas palavras não chegam
nem a minha vida
Nem provavelmente o Adalat ou o Nitromint.»

Quinta-feira, 5 de março

 

Manuel António Pina, Cuidados intensivos, 1994 (Todas as Palavras poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, pp. 194-195)

 

O poema apresentado é marcado por uma atmosfera melancólica e reflexiva, evocando um estado de convalescença ou transição após uma enfermidade.

«Convalescença significa, segundo o dicionário, um “período de transição depois de uma enfermidade, no qual se processa a recuperação gradativa das forças e da saúde” (HOUAISS, 2009, p. 542). Um pouco dessa transição, desse estado intermédio, nem cá, nem lá, parece ganhar um contorno privilegiado no livro de Pina intitulado Cuidados intensivos, de 1994. O autor de facto havia passado por um período de internação hospitalar, em decorrência de uma complicação mais séria de saúde. O termo “cuidados intensivos” deriva de outro, “medicina intensiva”, voltado para pacientes em estado crítico e que demandam monitoramento ininterrupto. Mas os “cuidados intensivos” são dirigidos a pacientes em condições potencialmente reversíveis, com chances de recuperação e de sobrevivência. E é nesse sentido que o título também remete, de algum modo, à ideia de uma transição, uma abertura, um espaço intervalar, oscilatório e frágil, entre uma interioridade e uma exterioridade. É um livro de certo pendor dramático, embora sempre amortecido pela entoação algo distanciada, contrabalançada, contudo, por um tom próximo, por vezes quase doméstico, de fala ao pé do ouvido, em que a figura do “coração” em meio aos versos é reincidente. Um dos recursos do autor para sustentar a impessoalidade do sujeito poético parece ser, na secção intitulada “monólogos”, por exemplo, o uso irónico de aspas ao início e final dos poemas, como se se tratasse da fala de um outro – na reiteração de uma desestabilização da voz enunciativa tão própria aos seus poemas –, com marcas de datação ao fim de cada um, indicando o dia da semana e do mês, o que aludiria a uma encenação descritiva e sequencial de diário ou registo biográfico.» (in Entre o brinquedo e abiblioteca: a poética de Manuel António Pina, Paloma Roriz Espínola. Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2020)

A seguir, destacam-se algumas linhas de leitura do poema:

O poema começa com uma série de instruções ou tarefas aparentemente quotidianas, como verificar mensagens, regar roseiras e encontrar objetos, mas, ao mesmo tempo, cria uma sensação de isolamento e distanciamento. O sujeito poético parece estar sozinho ou lidando com uma solidão interna (Manuel António Pina utiliza aqui a sua experiência hospitalar para explorar emoções e reflexões relacionadas com a convalescença).

Os versos "o tempo, agora, / é de poucas palavras, / e de ainda menos sentido" sugere uma reflexão sobre a passagem do tempo e a importância das palavras na vida do sujeito. Há uma sensação de que as palavras são insuficientes para expressar completamente o que ele está a sentir ou a viver.

O poema expressa um desejo por algo além da vida e da morte, uma "coisa mais insubstancial". O sujeito poético questiona o propósito de ter sido dotado de palavras, medo, esperança e experiências se, no final das contas, há algo que não pode ser alcançado ou compreendido plenamente.

Os versos “Agora o meu coração / está cheio de passos/ e de vozes” sugerem uma agitação interna, uma sensação de estar sobrecarregado por lembranças, experiências e pensamentos. Há uma mistura de sentimentos e uma necessidade de processar tudo o que está a acontecer ao seu redor.

O poema termina com referências explícitas a dois medicamentos, Adalat e Nitromint, que são utilizados para tratar certas condições médicas. Essas referências podem simbolizar a busca por uma solução para a angústia e o desconforto emocional, mas, ao mesmo tempo, podem destacar a limitação dos medicamentos em resolver questões existenciais mais profundas.

A datação do poema na quinta-feira, 5 de março, insere o poema em um contexto temporal específico, sugerindo que ele pode ter sido escrito durante um período particular na vida do autor, possivelmente durante a sua convalescença.

 

 

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Não digas nada, Fernando Pessoa


 

Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada!
Deixa esquecer.

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda esta viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não digas nada.

 

23-8-1934

Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990).  - 167.

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/460

 

Intertextualidade

 

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supôr o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor — muito melhor! —
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espêlho se vê.

Mário Cesariny Vasconcelos, 
O Virgem Negra, Assírio & Alvim, 1989

 

 

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.

In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)

e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 

terça-feira, 25 de julho de 2023

Para quién escribo (I), Vicente Aleixandre

 



Para quién escribo (I)

¿Para quién escribo?, me preguntaba el cronista, el
periodista o simplemente el curioso.

No escribo para el señor de la estirada chaqueta, ni
para su bigote enfadado, ni siquiera para su alzado
índice admonitorio entre las tristes ondas de música.

Tampoco para el carruaje, ni para su ocultada
señora (entre vidrios, como un rayo frío, el brillo de
los impertinentes).

Escribo acaso para los que no me leen. Esa mujer
que corre por la calle como si fuera a abrir las
puertas a la aurora.

O ese viejo que se aduerme en el banco de esa plaza
chiquita, mientras el sol poniente con amor le
toma, le rodea y le deslíe suavemente en sus luces.

Para todos los que no me leen, los que no se cuidan
de mí, pero de mí se cuidan (aunque me ignoren).

Esa niña que al pasar me mira, compañera de mi
aventura, viviendo en el mundo.

Y esa vieja que sentada a su puerta ha visto vida,
paridora de muchas vidas, y manos cansadas.

Escribo para el enamorado; para el que pasó con su
angustia en los ojos; para el que le oyó; para el que al
pasar no miró; para el que finalmente cayó cuando
preguntó y no le oyeron.

Para todos escribo. Para los que no me leen sobre
todo escribo. Uno a uno, y la muchedumbre. Y
para los pechos y para las bocas y para los oídos
donde, sin oírme, está mi palabra.

 

Vicente Aleixandre (1898-1984),
Em un vasto dominio (1962)



 


Para quem escrevo (I)

Para quem escrevo?, perguntava-me o cronista, o
jornalista ou simplesmente o curioso.

Não escrevo para o senhor de casaco esticado, nem
para o seu bigode zangado, nem mesmo para o seu
dedo indicador levantado entre as tristes ondas de música.

Tampouco para a carruagem, nem para a sua escondida
senhora (atrás dos vidros, como um raio frio, o brilho
dos impertinentes).

Escrevo talvez para os que não me leem. Essa mulher
que corre pela rua como se fosse abrir as
portas à aurora.

Ou esse velho que adormece no banco dessa praça
pequena, enquanto o sol poente com amor o
toma, o rodeia e o dissolve suavemente nas suas luzes.

Para todos os que não me leem, os que não se cuidam
de mim, mas de mim se cuidam (embora me ignorem).

Essa menina que ao passar me olha, companheira da minha
aventura, vivendo no mundo.

E essa velha que sentada à sua porta viu a vida,
parideira de muitas vidas, e mãos cansadas.

Escrevo para o apaixonado; para aquele que passou com a sua
angústia nos olhos; para aquele que o ouviu; para aquele que ao
passar não olhou; para aquele que finalmente caiu quando
perguntou e não o ouviram.

Para todos escrevo. Para os que não me leem sobre
tudo escrevo. Um a um, e a multidão. E
para os peitos e para as bocas e para os ouvidos
onde, sem me ouvirem, está a minha palavra.

 

Vicente Aleixandre (1898-1984),
Em um vasto domínio (1962)

 

Vicente Aleixandre

Poeta espanhol, nasceu a 26 de abril de 1898, na cidade de Sevilha. Filho de um engenheiro civil e neto materno de um oficial de alta patente, acompanhou a família na sua mudança para Málaga, onde passou a infância.

No ano de 1909 os seus progenitores de novo se mudaram, desta feita para Madrid, onde veio a permanecer o resto da sua vida. Ingressando nesse ano no Colégio Teresiano, instituição de orientação religiosa, concluiu os seus estudos em 1913. Foi admitido no curso de Direito da Universidade de Madrid em 1914, obtendo o seu diploma ao fim de seis anos.

Em 1920 foi nomeado professor assistente na Escola de Gestão Mercantil de Madrid passando, pouco tempo depois, ao serviço dos caminhos de ferro. Em 1922 foi-lhe diagnosticada uma insuficiência renal que o impossibilitou de levar uma vida normal, pelo que preferiu retirar-se para a propriedade rural da família, onde começou a compor poesia.

Em 1926 apareceram alguns dos seus poemas na Revista de Occidente graças ao esforço de alguns amigos que, discordando do secretismo de Aleixandre, decidiram enviá-los à redação do periódico. Em 1927 mudou-se para as cercanias de Madrid e, no ano seguinte, publicou o seu primeiro livro, uma coletânea de poemas intitulada Ámbito (1928), caracterizados pelo seu naturalismo e emoção.

O dealbar da década de 30 marcou um período surrealista na sua obra, denunciado em volumes como La Destrucción O El Amor (1935), criação universal de erotismo e morte, e que foi considerada pelos críticos como a sua melhor.

A eclosão da Guerra Civil Espanhola fez com que Aleixandre passasse uma temporada na área ocupada pelas tropas republicanas, já que as suas obras foram interditas pelo regime de Franco, e a sua residência pilhada e destruída. Pôde, no entanto, retomar a sua atividade editorial durante o período da Segunda Guerra Mundial, pelo publicou, em 1944, Sombra Del Paraíso, obra melancólica que reverte para o papel de lucidez do homem enquanto poeta.

Seguiram-se, entre outros trabalhos, Historia Del Corazón (1954), um estudo da fraternidade, Los Encuentros (1958), En Un Vasto Dominio (1962), obra de enquadramento cosmológico do conceito da morte, Poemas De La Consumación (1968) e Diálogos Del Conocimiento (1974), análise dialética da esperança e do abandono.

Eleito membro da Real Academia Espanhola em 1950, Vicente Aleixandre foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1977.

Faleceu em Madrid a 14 de dezembro de 1984.

Porto Editora – Vicente Aleixandre na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2023-07-25]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$vicente-aleixandre

 

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Encontro no inverno com António Lobo Antunes, Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade

António Lobo Antunes



ENCONTRO NO INVERNO COM ANTÓNIO LOBO ANTUNES


Com as aves aprende-se a morrer.
Também o frio de janeiro
enredado nos ramos não ensina outra coisa
— dizias tu, olhando
as palmeiras correr para a luz.
Que chegava ao fim.
E com ela as palavras.
Procurei os teus olhos onde o azul
inocente se refugiara.
Na infância, o coração do linho
afastava os animais de sombra.
Amanhã já não serei eu a ver-te
subir aos choupos brancos.
O resplendor das mãos imperecível.

 

Eugénio de Andrade, Foz do Douro, 18-01-2000

Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

Com as aves aprende-se a morrer”. Esse verso precário, tão breve, condensa na sua órbita um arquivo de tantas hipóteses e variantes de leitura e uma experiência tão completa que não pode senão tornar-se um verso difícil. Mas, ao mesmo tempo, somos inteiramente vencidos pelo paradoxo: o poema de que esse verso faz parte é cruelmente explícito, diz-nos mais do que qualquer interpretação ou comentário podem reaver – como se tivesse, por trás, a luz fria do mito. Entre o canto do poeta e a inevitabilidade do fim, foi esse o talismã obstinado que Eugénio de Andrade escolheu para confiar à palavra escrita o encontro com António Lobo Antunes.

O momento não era para menos. Eugénio está a receber o amigo na clausura da sua intimidade, guiando-o pelos múltiplos níveis do átrio da sua consciência. Para nos aproximarmos responsavelmente do poema, talvez seja prudente partirmos da suposição de que esse verso abre a cena de um embate mano a mano, uma dança em pleno inverno: Eugénio e António, os dois de armas na mão, procurando vencer nas planícies mais consumadas (e ao mesmo tempo mais dissidentes) da deterioração física e cognitiva, do silêncio e da morte, da noite e da paixão.

O poema concebido nessa ocasião, 18 de janeiro de 2000, e que acima transcrevi, tornou-se depois epígrafe de Não entres tão depressa nessa noite escura, romance publicado por António Lobo Antunes nesse mesmo ano. Os dois textos acomodam-se, portanto, numa responsabilidade de transparência mútua. Quando festejaram os 80 anos de Eugénio, Lobo Antunes, em homenagem ao amigo, foi ao Porto para ler publicamente o poema. Como me parece que o poema e o romance delimitam os contornos de um entretecimento vital entre as duas poéticas, e assim respondem um ao outro, tentarei nas próximas páginas descrever a atmosfera desse encontro. […]

Aí, precisamente aí, vem o poema oferecer-nos, com cuidadosa elegância, uma chave para adentrar no romance de que constitui – afinal, como poderia ser outra coisa? – uma espécie de pórtico. Do burburinho de Maria Clara ouvem-se ressonâncias idílicas, Lícidas ao longe. Ao contrário do de Pessoa, do de Ruy Belo, do de Herberto, diante da eminência da morte o triunfo de Eugénio abre-se à claridade do dia total. Como em qualquer outro confronto literário, o que está em questão é o âgon e não pode deixar de haver um vencedor: e se o sentido e a estética da “bela morte” são íntimos de Eugénio, não o são de Lobo Antunes, nem das suas conceções médicas. E aliás, como se depreende da crónica em que homenageou o amigo poeta, já doente, intitulada “O coração do dia”, o prosador tem ampla consciência disso:

Censuro-me não o visitar agora: é que não suporto vê-lo acabar assim, reduzido a um pobre fantasma titubeante. A ele, que tanto prezava a beleza e a sua própria beleza […]

a doença resolveu destruí-lo no que mais lhe importava, tornando-o um Rimbaud desfigurado, dependente, trágico […]. Ao Eugénio prefiro lembrá-lo como o conheci: orgulhoso, altivo, falando-me de jacarandás e frésias, amando

e era verdade

o «repouso no coração do lume». (ANTUNES, 2006, p. 230).

 

Penso que Não entres tão depressa nessa noite escura e o poema “Encontro no inverno com António Lobo Antunes” se enraízam perfeitamente um ao outro quando evocam esse momento da experiência humana em que a linguagem com que nos recriamos dia após dia confina com a noite – e, porque é isso que no limite os une, acomodam-se na necessidade de confrontar a finitude de cada um e, nesse esforço, ambos se encarregam de nos abrir as portas para a imaginação criadora que nos reinstala na infância. […]


O primeiro verso do poema de Eugénio de Andrade tem uma luz branca e uniforme, que emana das próprias aves. Enquanto isso, o título do romance, que consiste, evidentemente, numa adaptação livre do emblemático lamento de Dylan Thomas, intromete-nos entre duas esferas de luminosidade contrastante. Ouvimos alguém que pede, ou roga, a alguém que não entre, ou pelo menos entre mais lentamente, e mais silenciosamente, nessa noite evidente, inevitável e determinante para a composição do texto. No admirável estudo que dedicou a essa obra, Maria Alzira Seixo admite, aliás, que pode ser “o próprio texto a noite escura.” (2002, p. 387).

Talvez aí encontremos um espaço de compatibilidade entre eles.

Continuemos, por isso, a ouvir o poema: “Também o frio de janeiro enredado nos ramos não ensina outra coisa”. Esse segundo verso prediz, ao mesmo tempo que assume, uma inquietação visivelmente distinta do anterior; repare-se no modo como reage ao tempo suspensivo do verso de abertura: nada, na mudez insidiosa dos ramos das árvores, está de acordo com a transitividade do silêncio do verso anterior. Nem com a transparência da conceção de morte, oposta à voragem das sombras nos ramos. Dir-se-á, numa primeira análise, que constitui um comentário desse primeiro verso, prolongando-o numa continuidade de sentido. Parece-me, no entanto, que quando se concentra numa observação de foro meteorológico e numa referência aos ritmos sazonais, substitui, assim, o caráter concêntrico, vitalista, do qual as aves são um emblema e um símbolo de ascensão.

As consequências dessa disparidade são significativas. Talvez se possa interpretar esses versos como se segue. As aves esotéricas de Eugénio, captadas em pleno voo, são provas de uma imersão substantiva no mundo. Eugénio fornece-nos aves que questionam a própria existência; delas a poesia surge, delas se retorna à origem do mundo que revela sempre que o gesto se torna concreto. Um mundo onde o homem realiza a sua existência por meio da indagação permanente. Mas o “tu” a quem o poema se dirige, o “tu” que profere o segundo verso, vai comunicar apenas aquilo que vê de um ponto exterior: os ramos despidos, a densidade do frio, a atmosfera de apagamento que sobressai desse cenário. Esse frio de janeiro não é imanente como as aves do primeiro verso são imanentes: tem mais a ver com qualquer coisa abstrata, alguma coisa como as cegonhas e arvéloas dos livros de Lobo Antunes, que insistem sempre no poder curativo de uma forma de autenticidade perdida.

Daí que eu leia o modo como esse dístico nos impõe uma espécie de conflito entre dois modos diversamente organizados de apreensão do tempo e de aceitação da finitude: entre a aceitação de que a morte é uma forma suprema de beleza e uma heideggeriana possibilidade de realização da liberdade, e uma voz, cheia de raiva, de desespero, de “comovida urina e dos líquidos obscuros”, que recusa essa noite escura.

Procurar os olhos onde o azul se refugiara” não é o mesmo que procurar os olhos que se refugiaram no azul, equivalente mais preciso da imagem em que Lobo Antunes delimita e concentra a sua persona, esse retrato simultaneamente físico e psíquico que todos os antunianos têm na memória:

(e digo isto ao espelho)

Não sou um senhor de idade que conservou o coração menino. Sou um menino cujo envelope se gastou. (ANTUNES, 2008a, p. 45).

 

É como se o poeta, num simples encontro, tivesse intuído a angústia com que o amigo se aterrorizava com a sombra do fim, batendo-se incansavelmente, livro após livro, por gestos de frases, momentâneos fulgores, simulações de rostos, de tal modo que nas suas vozes o passado modela constantemente a percepção do presente. Sobre o abismo, a mancha esbatida da luz confinou com a temporalidade e com a clareira da criação. “Bom dia, Eugénio” – é como Lobo Antunes, do fundo da noite mais escura da alma saúda o amigo mais íntimo do sol. A busca (ou, direi, recoleção?) da infância é naturalmente o argumento da segunda estrofe do poema do encontro entre esses dois escritores reclusos. Em Eugénio, a inocência corresponde à presença da infância autêntica, essa infância de sol azul (como a poética de Sophia de Mello Breyner vem até aqui como uma onda no mar…) em que a brancura insuperável do linho era suficiente para afastar os seres da sombra.

Ora, Eugénio é o amigo mais íntimo do sol, como bem o sabe o criador da Julieta de A ordem natural das coisas (1992). Mais significativo se torna, por isso, esse passo se o relacionarmos com algumas passagens de “Se eu fosse Deus parava o sol sobre Lisboa”, crônica antuniana (incluída em Quarto livro de crónicas, de 2011) que parte de um verso de Fernando Assis Pacheco para nos levar num itinerário sobre a angústia da existência. Em certo sentido, parece-me estarem aí resumidos e esclarecidos os pontos fractais da ressonância entre os dois autores:

Oxalá o sol continue parado sobre Lisboa, parado sobre mim e eu embalsamado nele. Vestido dele. Afogado nele. Se eu fosse Deus. Se eu fosse Deus era uma carga de trabalhos, não lhe invejo a sorte. Ontem jantar em casa da minha mãe, com os meus irmãos. Valha-me isso. Umas noites saio dali mais em paz, outras numa guerra imensa comigo, levando todo o passado às costas, que alegra e dói. Nada mudou e tudo mudou: como eu gostava de ser pragmático em lugar de viver numa nuvem cujos limites, aliás, distingo mal. (ANTUNES, 2011, p. 74-75).

 

Os últimos três versos do poema parecem entoar uma despedida. A princípio, não me custa acreditar que seja a despedida desse “tu” que se deixa, enfim, fundir na tessitura contínua da noite. Mas como pode despedir-se alguém que a todo o momento se confunde na aurora como se entoasse um cantar de amigos e num impulso que se ergue triunfalmente até à haste mais alta? Que é o que agora acontece: o caminho de ascensão será feito pelos choupos brancos, significante suspeitíssimo na poética de Eugénio – os choupos que em “As mãos e os frutos”, recorde-se, correspondem aos próprios olhos do poeta, “carregados de sombra e rasos de água”. É falso, portanto, que amanhã já não seja o poeta a ver o amigo subir às árvores da infância – esses choupos que as mãos despem, ao subir, ecoam em si o próprio viril e auroral canto do poeta.

O resplendor das mãos imperecível” ganha, assim, os sentidos de uma imagem lapidar – no brilho, na serenidade com que lida com o fim e dá lustro ao momento do coroar de glória. Esse verso não exprime uma recusa ao fim, rumo a qualquer forma de eternidade, mas uma aceitação de que a morte, muito simplesmente, faz parte da bagagem quotidiana e da unidade do ser. De certo modo, morrer corresponde a adquirir o brilho duro, inviolável, das estátuas. E por isso aplico sobre esse poema de Eugénio, tentando extrair-lhe o impulso essencial, o juízo admirável de Eduardo Prado Coelho, a propósito de Sophia:

Daí que haja […] uma espécie de integração da morte convertida em mero lugar de passagem no percurso irreprimível da vida. A morte é preparada em cada instante da vida. Na medida em que o visível se debruça sempre para o lado de lá do invisível, a morte aflora em cada instante de intensificação do real, é um tecer incessante que se entrelaça em nós. (COELHO, 2012, p. 121).

Na sequência do que ficou dito, vou sugerir, primeiro, que o verso participa de uma atmosfera grega, a partir da qual é plausível admitir, sem alusões descabidas, que o verso possa ser sumariamente lido como a celebração da bela morte que Eugénio compõe no seu canto. A sua figuração, nesse caso, deixa-nos sumariamente suspensos, atentos a uma tensão cognitiva, uma espécie de cristalização, tão límpida quanto obscura: não são as mãos imperecíveis, mas imperecível é o seu brilho através dos tempos.

Mas convenhamos: a decidibilidade não é um fator absoluto nem no idioleto de Eugénio, nem em Lobo Antunes, que nunca dispensam um elemento enigmático. Muito menos se o motivo for o das mãos, seminal para qualquer uma dessas poéticas. Daí que o verso se anime, especialmente, de um desejo de futuro: instiga-nos a tentar dizer o mundo numa só frase – como se a missão do poeta fosse a de erguer orficamente uma cosmogonia.

A persistência e a conjugação enfática desse verso no romance de Lobo Antunes tornam-se de novo palpáveis se procurarmos rastrear o seu efeito no setting polifônico erguido por Lobo Antunes em torno da voz de Maria Clara de Não entres tão depressa nessa noite escura. Maria Clara, a protagonista desse livro assumidamente genesíaco, e o ser autobiograficamente mais completo e a imagem mais unificadoramente próxima de si que o autor nos concedeu, (atendendo ao que Lobo Antunes sobre ela nos diz), vive entre o impacto da realidade e a hipótese do sonho. O pai está doente e, entre internamentos e intervenções cirúrgicas, a morte afigura-se incontornável. Toda a ação se desencadeia a partir dessa angústia e do esforço de restituição dos segredos pessoais e familiares de Maria Clara. Institui-se uma ideia de passagem, mas o final do livro é deliberadamente inacabado; mesmo que tudo possa apontar para esse desfecho, não saberemos se o pai da adolescente morre ou não.

Quando tentamos decompor e interpretar a simbiose em que esses textos estruturalmente já coexistem, as dificuldades agravam-se. Mas esse é um ponto importante e creio que temos aí a base da dependência essencial entre os dois textos, ou melhor, da dependência do romance sobre o poema que o antecede.

Segundo o juízo de Óscar Lopes, a alegria que Eugénio nos provoca é a alegria de uma esperança impensável. Ora, a verdade exaltada do “resplendor de um brilho imperecível” invoca precisamente essa cláusula. Se aceitarmos que a vida que flui nesse poema é uma forma de vida breve, formulação de modo nenhum excessiva se atendermos ao espírito grego que a guia e que a exalta, a intimidade com Homero é máxima nessa ambição simultaneamente telúrica e cósmica do poeta. Como nos explica Vernant sobre essa modalidade da morte entre os antigos heróis gregos: “Sua memória é sempre viva: ela inspira a visão direta do passado que é o privilégio do aedo. Nada pode atingir a bela morte.” (VERNANT, 1978, p. 62).

Como vimos, há uma questão de base a delimitar as correspondências entre o texto e o romance: a ascensão gradativa e contínua de uma linguagem que se torna progressivamente um instrumento de revelação da plenitude solícita dos versos de Eugénio embate violentamente nos espelhos impiedosos e na consistência de detrito das ficções antunianas. Por isso, bloqueamos numa limitação crítica clara. Daí que a concordância vascular que se estabelece entre o poema e o romance de que é paratexto tem aqui os seus desafios mais amargos. De fato, as topologias de que procedem – o cristal transparente de Eugénio opõe-se, quase ponto por ponto, à densidade ironista do romancista – nem sempre compactuam. O inverno, notação simbólica para o anoitecer da vida, não está exatamente no mesmo plano de nessa noite escura, afeta à deterioração e à passagem do tempo, que o dêitico torna uma experiência intensiva. Como a crítica tem profusamente demonstrado, a noite, a insônia, a doença e a deterioração são eixos simbólicos cuja importância na gramática antuniana nunca pode ser sobreavaliada. Ainda assim, a reciprocidade da resposta é indesmentível: afinal, a sua maneira, ambos respondem ao avançar inexorável da noite do mundo.

Tentemos avançar um pouco mais, sem nos intimidarmos perante a impossibilidade da paráfrase. Como sabemos, o encontro entre Eugénio de Andrade e António Lobo Antunes ocorre no limiar da luz, na passagem da claridade para a noite. O autor do romance, na voz de Maria Clara, vai, aliás, submeter a densidade e a textura dessa noite (expressas pelo epíteto “escura”, supostamente desnecessário, e pela ação, porque se trata de alguém que está a entrar) a uma espécie de prova empírica. Mas a realidade do postulado de Eugénio é por si só suficiente: o espírito grego que é o seu torna o agente e a ação absolutamente coincidentes.

Ora, se o gesto pleno, verticalizado, com que a mão desoculta o rumor do silêncio impositivo da morte faz parte por inteiro dos meios de Eugénio de Andrade – e a opção por “resplendor” e pela durabilidade do enunciado são de uma índole pragmática que disso faz eco –, não há como presumir o mesmo em relação aos de Lobo Antunes. Como qualquer leitor rapidamente deduz, se os seus universos se constituem frequentemente de um tempo suspenso, em pretérito imperfeito, não remetem de maneira nenhuma para a conceção de uma Arcádia concreta, onde as palavras e as coisas se entrelaçam numa democracia do ser, numa exaltação da vida que se liberta das contingências da história e da limitação temporal da existência humana.

Muito pelo contrário, nas ficções de Lobo Antunes, a condição da humanidade é opressivamente crepuscular. Essa insistência na finitude do homem é, aliás, o que principalmente se formula no título do romance que aqui analisamos: afinal, a voz que solicita ao outro que não entre tão depressa nessa noite pressupõe um impulso, uma mobilidade, e pressupõe que o tempo conjuntivo, o momento de opção, por inúteis que sejam, são a resposta à inevitabilidade dessa transição. A morte corresponde a um estado terminal – é consequência da doença, da aniquilação irremediável das faculdades vitais. Mas em Eugénio pratica-se outra forma de enraizamento, uma aproximação decisiva, concreta e quotidiana às coisas.

Compreende-se, por isso, que seja essencial retomar o poema assim que dermos o romance por terminado. O poema de Eugénio penetra inteiramente o núcleo mais íntimo do romance e mantém-no, repetidamente, em estado primordial. Envolvendo o romance, como seu guardião, o poema funciona, em síntese, como uma estranha prótese para a consciência de Maria Clara e a violenta intromissão da noite no seu mundo. Essa solicitação, tão inquieta, tão inquietante, que brada a alguém que não entre tão depressa nessa noite desloca-se para a fria lucidez do “Amanhã não serei eu a ver-te”. Essa é instância de uma apreensão outra do tempo, na presença de uma morte firme, cumprida e solucionada, imune ao “[...] processo de presença da não-presença que é intolerável [...]” (COELHO, 2012, p. 122) que se associa ao envelhecimento físico e psíquico do indivíduo.

Lobo Antunes, ele-mesmo, o eremita-da-rua-do-conde-redondo, até pode ter seguido à risca as prescrições de Montaigne quanto ao imperativo de fabricar o núcleo de solidão (a arrière-boutique) em que o homem deve examinar os seus espelhos interiores e assim preservar os créditos básicos da felicidade. Outra coisa são as suas personagens e a sua insônia, os mundos doentes e deteriorados, sem Aquiles ou Antígonas, colapsados de multidões fantasmáticas, de afetos truncados e despojos inúteis, de existências que nunca sobrevivem no contorno do canto.

Por isso, talvez se justifique, nesse ponto, retomamos por alguns instantes a questão da infância e da sua substanciação como refúgio para as desordens do mundo, em direção à “[...] reinvenção da infância imortal de todos os homens.” (LOURENÇO, 1983, p. 164). A obsessão é comum aos dois autores, mas as modalidades diferem em muitos aspetos. Lembremo-nos desse menino aterrorizado que procura a mão da mãe num corredor escuro: é um fantasma antigo e ubíquo na gramática antuniana. Maria Clara não foge à regra. E é no espelho, afinal de contas, que todos nós nos revemos, identicamente aterrorizados pelos limites concretos da temporalidade, e não na transparência arcaica da infância branca desse poema de Eugénio, cuja sintaxe de reconciliação revigorante não depende, como depende nas imagens da infância em Lobo Antunes, de uma Arcádia pré-existente. Procure-se no livro, linha após linha, nos milhares de páginas dos romances e das crónicas: não há heróis em Lobo Antunes, e o apogeu da “bela morte”, quando muito, não passa de um desejo impossível sequer de formular. Heitor já não é uma franquia dessa marca dos deuses a que se chamava destino.

É belo o modo como Eugénio e Lobo Antunes respondem um ao outro. Mas eles são os tigres, o crítico não. Queiramos ou não, chegada a hora de terminar, nada de fundamental foi dito acerca da intimidade que se constitui entre esses dois autores: sobre o modo como coincidem, sobre a textura contínua que os urde na mesma trama – essa malha fina será sempre inacessível à penumbra do nosso olhar e do nosso exame. Eduardo Lourenço, afinal, não mentiu: “[...] qualquer poesia suspende incessantemente o que parece dizer, e o que diz, di-lo numa forma que se não pode fechar sobre si mesma.” (LOURENÇO, 1983, p. 139). Mas quem sabe, em todo o caso, se o poema não é uma forma de sairmos desse romance – ou, talvez, de a leitura principiar sempre de novo?

Por isso ainda talvez se possa dizer que “Frima-te António” – isto é, “aguenta, António!” até que Deus faça o sol parar sobre Lisboa – o corolário da crônica que citamos, é também um dos corolários da transfiguração da noite que o dispositivo de Lobo Antunes vai operar em Não entres tão depressa nessa noite escura.

É que, ao contrário do que se passa com Eugénio de Andrade, o preferido de Apolo, volvendo o perfil orgulhoso de Aquiles até a luz da kalós thánatos, tanto António Lobo Antunes como maior parte de nós, que não sentimos mais a incandescência dos heróis gregos e desejamos partilhar todo o otimismo dos médicos, tentaremos sempre adiar, até ao último instante, a entrada nessa noite escura.

 

REFERÊNCIAS

ANDRADE, E. Os afluentes do silêncio. 9. ed. revista e acrescentada. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 1997.

ANDRADE, E. Encontro no Inverno com António Lobo Antunes. In: ANTUNES, A. L. Não entres tão depressa nessa noite escura. 6. ed. Lisboa: Dom Quixote, 2008 [2000].

ANTUNES, A. L. Terceiro livro de crónicas. 1. ed. Lisboa: Dom Quixote, 2006.

ANTUNES, A. L. Segundo livro de crónicas. 2. ed. Lisboa: Dom Quixote, 2007 [2002].

ANTUNES, A. L. Livro de crónicas. 7. ed. Lisboa: Dom Quixote, 2008a [1998].

ANTUNES, A. L. Não entres tão depressa nessa noite escura. 6. ed. Lisboa: Dom Quixote, 2008b [2000].

ANTUNES, A. L. Quarto livro de crónicas. Lisboa: Dom Quixote, 2011.

COELHO, E. P. A mecânica dos fluidos/A noite do mundo. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2012.

HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2007.

LLANSOL, M. G. La nube habitada. Cuentos del mal errante. Disponível em: http://www.fronterad.com/img/nro314/lanube/nube.html. Acesso em: 03 jun. 2019.

LOURENÇO, E. Poesia e Metafísica. Lisboa: Sá da Costa, 1983.LOURENÇO, F. Introdução. In: HOMERO. Ilíada. Lisboa: Cotovia: 2007, p. 7-25.

MANCELOS, J. Notas para o Canto das Aves em Eugénio de Andrade e em três poetas clássicos ingleses. Máthesis, Viseu, n. 17, p. 205-221, 2008. Disponível em: https://ubibliorum.ubi.pt/bitstream/10400.6/4305/1/notasparaocantodasaves.pdf. Acesso em: 28 fev. 2019.

NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

SEIXO, M. A. Os romances de António Lobo Antunes: análise, interpretação, resumos e guiões de leitura. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.

STEINER, G. Linguagem e silêncio: Ensaios sobre a literatura, a linguagem e o inumano. Lisboa: Gradiva, 2014.

VERNANT, J. P. A bela morte e o cadáver ultrajado. Discurso, São Paulo, n. 9, p. 31-62, 1978. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/37846/40573. Acesso em: 28 fev. 2019.

 

André Corrêa de Sá, “Dessa extinção que habita a vida: Homero e Eugénio na Foz do Douro” in Revista FronteiraZ (Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP) n.º 22 – julho de 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.23925/1983-4373.2019i22p205-219

 

 

CORAÇÃO DO DIA

(crónica de António Lobo Antunes)

 

O poeta Eugénio de Andrade está muito doente. É meu amigo e não tenho coragem de o visitar. Quando ia à sua casa, no Passeio Alegre, um espaço de cuidadosa brancura diante das palmeiras e do mar, recebia-me com vinho fino, biscoitos, livros, pequenas atenções que me tocavam, conforme me tocava a sua delicadeza, a sua fidalguia. A mesa de mármore para escrever. Nunca me disse mal de ninguém e a vaidade que o habitava, tão ingénua, comovia-me. Em certo sentido conservou-se sempre um camponês da Beira Baixa natal, feito de puerilidade e manha, gerindo ciosamente a sua obra a fingir-se desinteressado, distantíssimo e, no entanto, alerta como um coelho bravo. Escrevemo-nos durante anos, falávamos ao telefone com frequência, a sua ternura com as minhas filhas comovia-me. E, periodicamente, vinham versos, livros, retratos dedicados, o seu rosto a carvão pelo escultor José Rodrigues que, como dizia, «sabe a minha cara de cor». Pediu-me para fazer uma sessão de fotografias com ele: e Dario Gonçalves, pessoa muito querida sua, veio com a máquina. O Eugénio pediu-lhe um momento, desapareceu, e regressou, todo pinoca, para os bonecos. Ele mesmo escolheu os ângulos, as posições: e lá fiquei, sentado, com o Eugénio de pé atrás de mim, a mão espalmada no meu ombro, naquela pose para o Futuro que gostava de assumir. Normalmente falávamos de poesia, pedia-me que lhe lesse o que compunha, discutíamos as correcções que ele encaixava a cada edição nova e que, por vezes, me não agradavam: aceitava as críticas numa humildade de criança apanhada em falta, experimentávamos outras palavras, repetíamos tudo. A sua solicitude e a sua ternura em relação a mim eram infinitas. Já doente e estando eu em Roma para um prémio, o padre e poeta José Tolentino Mendonça, que ele apreciava grandemente e é um dos poucos homens que admiro e respeito, contava-me que o Eugénio o chamava, preocupado que eu estivesse bem. Punha, na camaradagem, um desvelo fraterno, ainda que fosse um homem rugoso, cheio de caprichos, capaz de uma violência fria, insuportável para quem não estimava, e de uma coragem física que, em geral, se não lhe adivinhava. Dele recebi durante anos e anos inúmeras provas de estima. Censuro-me não o visitar agora: é que não suporto vê-lo acabar assim, reduzido a um pobre fantasma titubeante. A ele, que tanto prezava a beleza e a sua própria beleza

   (o Eduardo Lourenço, amigo de ambos

   – E então chegou-nos a Coimbra aquele Rimbaud)

  a doença resolveu destruí-lo no que mais lhe importava, tornando-o um Rimbaud desfigurado, dependente, trágico, o «cesto roto» que Cesário Verde, uma das suas paixões, evocava a respeito de si mesmo, enquanto a tuberculose o «escangalhava»: «Entra-me a chuva, entra-me o vento no corpo escangalhado». Ao Eugénio prefiro lembrá-lo como o conheci: orgulhoso, altivo, falando-me de jacarandás e frésias, amando

   (e era verdade)

  o «repouso no coração do lume». E, depois, havia pequenos actos que o definiam inteiro: uma das ocasiões em que fui ao Porto encontrei um livro de Jorge de Sena, um livro póstumo, horrível, em que Sena atacava companheiros de viagem (Cesariny e Vitorino Nemésio, por exemplo, muito melhores artistas do que ele) de um modo tão vil que me indignou. Referi o livro ao Eugénio. Ele ficou longamente em silêncio e depois tirou o seu exemplar debaixo de um móvel e pouso-o no sofá. Segredou

   – Tinha-o aqui escondido, sabe, porque não queria que pensasse mal do Jorge.

Eu nunca conheci Jorge de Sena e no entanto na boca do Eugénio era sempre o Jorge, tal como, para o Zé Cardoso Pires, Alves Redol era sempre o António, Carlos de Oliveira o Carlos, e tão-pouco conheci Redol ou Oliveira. Mas este acto do Eugénio define-o bem: a defesa intransigente daqueles que amava, a sua preocupação em cuidar-lhes do perfil com um carinho idêntico ao que punha no cuidar do seu. Tinha a paixão da amizade, que poucos lhe mereciam, aliás, e uma rara, permanente fidelidade a ela. Reparo agora que estou a relatar tudo isto no passado, como se o Eugénio tivesse morrido. Talvez porque o homem que continua vivo não é ele. Talvez por pudor meu. Talvez porque o fim de um amigo me seja difícil. Talvez porque me custa não vir abrir-me a porta se tocar à campainha, subir as escadas e dar, nas paredes, com múltiplas representações suas por múltiplos pintores, dúzias de Eugénios de todas as idades, aparências, feitios, de qualidade variável, bons, maus, assim-assim, as dúzias de Eugénios, obsessivamente repetidos de que o encantava rodear-se. No meio de tanto Eugénio imóvel só ele se mexia. Deixava escapar para um, para outro, um soslaiozinho satisfeito, contente de ser vinte, de ser trinta, de ser quarenta, de ser uma multidão de criaturas que formavam uma espécie de guarda de honra à sua volta, à medida que desrolhava o vinho fino, me servia um cálice

 

Eugénio de Andrade visto por Emerenciano (1988)

   – Não posso beber

 me chegava um guardanapo de linho ofuscante, um prato de biscoitos, taças de bombons, anunciava

   – Comprei-os para si

   ocupava a poltrona puxando a manta sobre os joelhos

   – Este frio

   relanceava as árvores, as ondas, gaivotas cinzentas que gritavam, sacudia a mão num gestozinho precioso de prestidigitador e adiantava o peão do rei do início de uma frase. Duas ou três horas depois acompanhava-me à saída como se avançássemos em corredores de palácio. E de certo modo aquele edifício pequeno era de facto um palácio. O seu palácio e ele um velho conde entre cortejos de glórias inventadas e reais. Quanto mais inventadas mais reais. Da rua, as janelas acesas pareciam mostrar uma casa vazia. Antes assim: se topasse alguém nas cortinas não saberia distinguir se era o Eugénio ou uma das suas representações encaixilhadas quem me acenava de cima. Ou então ele só existia quando estávamos juntos. Se não estávamos suponho que não passava de uma das palmeiras do Passeio Alegre, dobrando-se para a direita e para [a] esquerda consoante o vento e os borrifos do mar.

 

António Lobo Antunes, revista Visão, 06-05-2000. Crónica posteriormente publicada no Terceiro Livro de Crónicas, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2005.

 

 

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“A metáfora em Eugénio de Andrade” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Eugénio de Andrade, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 2018-04-23. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-metafora-em-eugenio-de-andrade.html

 

“A água nas trevas”, Mário Santos. Público, 04-11-2000. Disponível em: https://www.publico.pt/2000/11/04/jornal/a-agua-nas-trevas-150827

Não entres tão depressa nessa noite escura de António Lobo Antunes: da escrita romanesca à partitura musical”, Catarina Vaz Warrot. Diacrítica vol.29 n.º 3. Braga, 2015. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0807-89672015000300008&lng=pt&nrm=iso

Não entres tão depressa nessa noite escura, de António Lobo Antunes”, Pedro Fernandes. Letras in.verso e re.verso – Literatura e entretenimento, 25-06-2015. Disponível em: https://www.blogletras.com/2015/06/nao-entres-tao-depressa-nessa-noite.html

“A moldura literária em Não entres tão depressa nessa noite escura, de António Lobo Antunes”, Aline Souza. Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 4, núm. 2, julho-dezembro, 2017. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=575967288012