Cuidados
intensivos
III
«Vê se há mensagens
no gravador de chamadas;
rega as roseiras;
as chaves estão
na mesa do telefone;
traz o meu
caderno de apontamentos
(o de folhas
sem linhas, as linhas distraem-me).
Não digas nada
a ninguém,
o tempo, agora,
é de poucas palavras,
e de ainda menos sentido.
Embora eu, pelos vistos,
não tenha razão de queixa.
Senhor, permite que algo permaneça,
alguma palavra ou alguma lembrança,
que alguma coisa possa ter sido
de outra maneira,
não digo a morte, nem a vida,
mas alguma coisa mais insubstancial.
Se não para que me deste os substantivos e os verbos,
o medo e a esperança,
a urze e o salgueiro,
os meus heróis e os meus livros?
Agora o meu coração
está cheio de passos
e de vozes falando baixo,
de nomes passados
lembrando-me onde
as minhas palavras não chegam
nem a minha vida
Nem provavelmente o Adalat ou o Nitromint.»
Quinta-feira,
5 de março
Manuel
António Pina, Cuidados intensivos, 1994 (Todas as Palavras ‒
poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012,
pp. 194-195)
O poema apresentado é
marcado por uma atmosfera melancólica e reflexiva, evocando um estado de
convalescença ou transição após uma enfermidade.
«Convalescença
significa, segundo o dicionário, um “período de transição depois de uma
enfermidade, no qual se processa a recuperação gradativa das forças e da saúde”
(HOUAISS, 2009, p. 542). Um pouco dessa transição, desse estado intermédio,
nem cá, nem lá, parece ganhar um contorno privilegiado no livro de Pina
intitulado Cuidados intensivos,
de 1994. O autor de facto havia passado por um período de internação hospitalar,
em decorrência de uma complicação mais séria de saúde. O termo “cuidados intensivos”
deriva de outro, “medicina intensiva”, voltado para pacientes em estado crítico
e que demandam monitoramento ininterrupto. Mas os “cuidados intensivos” são dirigidos
a pacientes em condições potencialmente reversíveis, com chances de recuperação
e de sobrevivência. E é nesse sentido que o título também remete, de algum modo,
à ideia de uma transição, uma abertura, um espaço intervalar,
oscilatório e frágil, entre uma interioridade e uma exterioridade. É um livro
de certo pendor dramático, embora sempre amortecido pela entoação algo
distanciada, contrabalançada, contudo, por um tom próximo, por vezes quase
doméstico, de fala ao pé do ouvido, em que a figura do “coração” em meio aos
versos é reincidente. Um dos recursos do autor para sustentar a impessoalidade
do sujeito poético parece ser, na secção intitulada “monólogos”, por exemplo, o
uso irónico de aspas ao início e final dos poemas, como se se tratasse da fala de
um outro –
na reiteração de uma desestabilização da voz enunciativa tão própria aos seus
poemas –, com marcas de datação ao fim de cada um, indicando o dia da semana e do
mês, o que aludiria a uma encenação descritiva e sequencial de diário ou registo
biográfico.» (in Entre o brinquedo e abiblioteca: a poética de Manuel António Pina, Paloma Roriz Espínola. Niterói,
Universidade Federal Fluminense, 2020)
A seguir, destacam-se
algumas linhas de leitura do poema:
O poema começa com uma
série de instruções ou tarefas aparentemente quotidianas, como verificar
mensagens, regar roseiras e encontrar objetos, mas, ao mesmo tempo, cria uma
sensação de isolamento e distanciamento. O sujeito poético parece estar sozinho
ou lidando com uma solidão interna (Manuel António Pina utiliza aqui a sua experiência
hospitalar para explorar emoções e reflexões relacionadas com a convalescença).
Os versos "o tempo,
agora, / é de poucas palavras, / e de ainda menos sentido" sugere uma
reflexão sobre a passagem do tempo e a importância das palavras na vida do
sujeito. Há uma sensação de que as palavras são insuficientes para expressar
completamente o que ele está a sentir ou a viver.
O poema expressa um desejo
por algo além da vida e da morte, uma "coisa mais insubstancial". O
sujeito poético questiona o propósito de ter sido dotado de palavras, medo,
esperança e experiências se, no final das contas, há algo que não pode ser
alcançado ou compreendido plenamente.
Os versos “Agora o meu
coração / está cheio de passos/ e de vozes” sugerem uma agitação interna, uma
sensação de estar sobrecarregado por lembranças, experiências e pensamentos. Há
uma mistura de sentimentos e uma necessidade de processar tudo o que está a acontecer
ao seu redor.
O poema termina com
referências explícitas a dois medicamentos, Adalat e Nitromint, que são utilizados
para tratar certas condições médicas. Essas referências podem simbolizar a
busca por uma solução para a angústia e o desconforto emocional, mas, ao mesmo
tempo, podem destacar a limitação dos medicamentos em resolver questões
existenciais mais profundas.
A datação do poema na
quinta-feira, 5 de março, insere o poema em um contexto temporal específico,
sugerindo que ele pode ter sido escrito durante um período particular na vida
do autor, possivelmente durante a sua convalescença.
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