COMO DIZER O SILÊNCIO?
Se em folhagem de poema
me catais anacolutos
é vossa a fraude. A gema
me catais anacolutos
é vossa a fraude. A gema
não desce a sons prostitutos.
O saltério, diletante,
fere a Musa com um jasmim?
Só daí para diante
da busca estará o fim.
Aberta a porta selada,
sou pensada já não penso.
Se a Musa fica calada
como dizer o silêncio?
Atirar pérola a porco?
Não me queimo na parábola.
Em mãos que brincam com o fogo
é que eu não ponho a espada.
Dos confins, o peristilo
calo com pontas de fogo,
e desse casto sigilo
versos são só desafogo.
E também para que me lembrem
deixo-os no mercado negro,
que neles glórias se vendem
e eu não sou só desapego.
Raiz de Deus entre os dentes,
aí, pára a transmissão.
Ultrassons dessas nascentes
só aves entenderão.
O saltério, diletante,
fere a Musa com um jasmim?
Só daí para diante
da busca estará o fim.
Aberta a porta selada,
sou pensada já não penso.
Se a Musa fica calada
como dizer o silêncio?
Atirar pérola a porco?
Não me queimo na parábola.
Em mãos que brincam com o fogo
é que eu não ponho a espada.
Dos confins, o peristilo
calo com pontas de fogo,
e desse casto sigilo
versos são só desafogo.
E também para que me lembrem
deixo-os no mercado negro,
que neles glórias se vendem
e eu não sou só desapego.
Raiz de Deus entre os dentes,
aí, pára a transmissão.
Ultrassons dessas nascentes
só aves entenderão.
Natália Correia, O Dilúvio e a PombaLisboa, Edições Dom Quixote, 1979
Contrastando com a “fala” espinhosa de teor existencial do eu lírico de Orides, aspeto a ser analisado no terceiro capítulo deste trabalho, está a crítica ao “silenciamento” ou à impessoalidade do discurso expressa pelo eu feminino de Natália, opções diferentes de focalização, mas sobre o mesmo recorte poético: a palavra.
Como o próprio título indica, esse poema hermético de Natália, ironicamente construído todo em sete sílabas poéticas, métrica típica das cantigas populares, que, como tal, são de fácil apreensão, apesar das inversões sintáticas na segunda e quinta estrofes, apresenta um questionamento a respeito da necessidade de o eu lírico feminino expressar-se aproveitando-se das artes musical e literária.
Como falar sem se expressar e sem expor a individualidade (a subjetividade)? Essa é a questão principal do poema.
O signo “saltério”, da segunda estrofe, é ambíguo: assim como pode significar uma lira, pode também ser um canto satírico e estar sendo empregado no sentido de ferir a “Musa”. Nesse caso, o eu feminino responde à provocação com seus versos, que lhe permitem desabafar e “dizer o silêncio”. Sendo entendido como lira e tendo seu sentido reforçado pelo adjetivo “diletante”, amante das artes e da literatura, o signo, apontando para um elemento adjacente à produção musical e literária pela associação entre lira e lirismo, liga-se à composição de versos como uma atividade complementar à expressão da individualidade.
Ao criticar, no segundo, terceiro e quarto versos da terceira estrofe, a neutralidade (“sou pensada já não penso”), esse poema de Natália apresenta, no entanto, um paradoxo quanto à expressão da individualidade, com a declaração, na primeira estrofe, de que o anacoluto, “som prostituto”, não é uma forma sintática adequada para exaltar o sujeito. Na sexta estrofe, o eu exalta-se, revelando não um recurso de linguagem para isso e complementando, dessa maneira, a lacuna deixada pela primeira estrofe, mas afirmando as glórias trazidas ao eu pelos versos deixados “no mercado negro”.
O uso da terceira pessoa (“a Musa”) significando, na verdade, a primeira, no caso de Natália, um eu feminino, identificado pela forma passiva da construção verbal “pensa(m)-me” (“sou pensada”), coloca em foco uma atitude lírica problematizada em forma de interrogação nos dois últimos versos da terceira estrofe de “Como dizer o silêncio?”.
[…]
O referido questionamento existe tanto em “Como dizer o silêncio?” quanto em “Forma”; a diferença é que o caráter sublime do poema de Orides mascara a constatação áspera de que a voz em primeira pessoa, de um determinado modo, acaba tornando-se evidente no poema lírico, constatação essa posta em relevo pelo despojamento do ser de Natália, inconformado com a neutralidade pelo facto de esta roubar-lhe a atitude de pensar. Portanto, para Natália, a impessoalidade, o culto ao silêncio, a concisão, a fragmentação e a busca pela palavra exata praticadas por Mallarmé não permitiriam ao poeta “dizer o silêncio”.
Discurso crítico e posicionamento lírico em Orides Fontela e Natália Correia, Priscila Pereira Paschoa.
São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista - Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, 2006, pp. 60-63.
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► Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise
literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro. In: Lusofonia
– plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível
em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/europa-galiza-e-portugal-continental-e-ilhas/Lit-Acoriana/Natalia_Correia,
2021 (3.ª
edição).
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/03/05/como.dizer.o.silencio.aspx]
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