"Horacio y Lidia (estudio)", óelo sobre lienzo de Albert Edelfelt (Finland, 1854-1905) |
Não
creias, Lídia, que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar Oferecendo a flor Que adiámos colher. Cada dia te é dado uma só vez E no redondo círculo da noite Não existe piedade Para aquele que hesita. Mais tarde será tarde e já é tarde. O tempo apaga tudo menos esse Longo indelével rasto Que o não-vivido deixa. Não creias na demora em que te medes. Jamais se detém Kronos cujo passo Vai sempre mais à frente Do que o teu próprio passo |
Com
a essência das flores mais coniventes
Na formosura, prepara o banho, Lídia. Os anos murcham e só no corpo sentes Quente e fagueira a passagem da vida. Não digas, cética, que a carne é vã e passa Desfeita em sombra, o negro rio. O Orco Perséfone raptou rendido à graça. Talvez no além precises do teu corpo. Estima-o; e à beleza mais demora Darão os fados na vida passageira. Tépida a água, rescenda a musgo e a rosa. De Paros seja o mármore da banheira. Nua e rosada imerge na carícia Emoliente da água perfumada, E as folhas lassas dos membros espreguiça Como uma humanizada flor aquática. Não te esqueças porém de no amavio Da água verter um brando óleo de malvas Que te aveluda as coxas e mais brilho Te dá ao polimento das espáduas. E saindo do banho como a deusa Sai, das macias ondas, nacarada, Ergue-te para o amor, estátua de seda Toda coberta com pérolas de água. Por fim veste a camisa mais picante; Com pó de ouro empoa o teu cabelo. E vai para a alcova onde o teu amante Te espera radioso e fiel como um espelho.
Natália Correia, O Armistício, 1985
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Em Dual, é convocado o poeta dos heterónimos no poema “Em Hydra, evocando Fernando Pessoa”, e é igualmente particularizada a memória de Ricardo Reis num conjunto de textos subordinados ao título geral “Homenagem a Ricardo Reis”.
Curiosamente, o interlocutor intratextual – quando existe de
forma explícita – não é o homenageado mas as “suas criaturas”, nomeadamente
Neera e Lídia. Cabe precisamente a Lídia a ode que abre o ciclo, e Sophia de Mello Breyner Andresen “fala”
com Lídia num tom que só aparentemente é afim do de Ricardo Reis. Todo o
vocabulário do poema – bem como a sua arquitetura estrófica – é devedor do
léxico idiossincrásico de Ricardo Reis, não havendo, portanto, nenhum
estranhamento vocabular; há, no entanto, uma espécie de “tom” particular que
distingue radicalmente a voz de Sophia da do modelo que pretende homenagear.
Dirigindo-se a Lídia, a poetisa não faz um convite amoroso – verdadeiro ou
falacioso – mas alerta uma mulher para os perigos de um discurso que amolece
a vontade de agir. No fundo, os conselhos de Sophia tentam contrariar os
propósitos de ataraxia voluntarista procurados por Ricardo Reis; por isso, o
poema abre com um imperativo negativo que pretende atingir Lídia, o próprio
sujeito lírico e, de forma pedagógica, o leitor.
Repare-se na beleza e na força dramática da terceira estrofe:
não pode haver momentos de hesitação, porque o presente da demora não existe;
existe o passado, mas, ficando à beira do rio, como propõe Ricardo Reis,
apenas se consegue carregar a memória com esse «Longo, indelével rasto/Que o
não-vivido deixa». «Longo» e «indelével» são palavras serpentiformes e
castigadoras; o rasto do não-vivido é o sinal que transforma o futuro num
tempo duplamente amargo e confere à morte uma vitória impiedosa. Por isso,
Sophia dirige-se a Lídia exortando-a a fazer do carpe diem não um projeto de vida lenificado pelo temor, mas uma imersão
na corrente do rio. Reside aqui, creio, o centro do diálogo que Sophia de
Mello Breyner estabelece com Lídia, com Ricardo Reis e com Pessoa, pois como
diz Anna Klobucka, ao comentar outros textos, «o apelo à boda coroa o diálogo
intertextual, oferecendo-se como uma solução para a viuvez, pessoana, e não só»
(cf. "Sophia «escreve» Pessoa", Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 140/141, abril de 1996, p. 168.)
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O convite à boda, isto é, à festa do corpo e à alegria dos sentidos, constitui também a essência da mensagem que Natália Correia dirige a Lídia. Em O Armistício, um livro extraordinário publicado em 1985, Natália Correia revisita a poesia de Ricardo Reis, sobretudo em dois momentos essenciais: quando, ao propor a descrucificação de Cristo, recorre a um vocabulário que, por vezes, se aproxima das odes em que Ricardo Reis considera Cristo apenas mais um deus, nem maior nem menor do que os que já existiam no panteão – apenas é mais novo e mais triste (Vd. as odes seguintes: “Não a ti, Cristo, odeio ou te não quero”; “Não a ti, Cristo, odeio ou menos prezo”; “Não a ti, mas aos teus odeio, Cristo”) -, e quando, nos poemas que constituem o capítulo “Sete Motivos do Corpo”, invoca Lídia. O poema de Natália transforma completamente o intertexto nuclear e oferece a Lídia um cenário cultural e estético que a liberta das amarras filosofantes de Reis e lhe devolve a plenitude solar do corpo. O tema da morte - que obsidia Ricardo Reis, impedindo-o de fruir os breves prazeres da vida, e que, por outros modos, também constitui para Horácio um motivo de indisfarçável pavor – está presente no texto de Natália Correia; mas, ao contrário dos poetas que a antecedem, a voz da poetisa tem o encanto das feiticeiras e a destreza das pitonisas. O Orco, diz Natália, raptou Perséfone «rendido à graça», por isso, o corpo não deve ser negado, deve, sim, ser motivo de júbilo e de festa. Lídia, à semelhança de Vénus, a deusa que «sai, das macias ondas, nacarada», deverá perceber que são falsas e enganadoras as doutrinas que desprezam o corpo e transformam o amor num deus receoso, incorpóreo e punitivo. O belíssimo quadro, pintado com as palavras firmes e suaves de Natália Correia, é um convite e uma lição: convida-nos a participar na festa dos sentidos, e ensina-nos uma moral de gratidão. |
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 3, 2001, pp. 263-267
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- Perfil poético e
estilístico de Sophia de Mello Breyner Andresen -
apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen, por José Carreiro. Folha de
Poesia, 2020-07-17
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/Natalia_Correia, 2021 (3.ª edição).
SOPHIA, A «FREIRA», E NATÁLIA, A «CORTESû
Sophia
de Mello Breyner Andresen (1919 – 2004) não era uma pessoa com
quem fosse fácil lidar. E quando detestava alguém, detestava a sério. Era capaz
da maior secura no trato. Agustina Bessa-Luís, com quem Sophia tinha uma
relação também nada fácil, cúmplice, mas muito ambivalente, de admiração, mas
também de picardia, desculpou-a dizendo: «Há mulheres que têm virtudes de
rainha e por isso são mal compreendidas».
Natália
Correia (1923 – 1993) era um dos seus ódios de estimação. A aristocrata não
tolerava a agitadora militante, chocava com ela, não a queria nem por perto.
Acontece
que essa antipatia era mútua. Natália embirrava igualmente com Sophia, não a
suportava. Oriunda da Ilha de São Miguel, nos Açores, de estatuto social muito
mais baixo (era filha de uma professora primária e de um comerciante que
emigrou para o Brasil quando esta tinha seis anos), estava sempre de pé atrás
relativamente ao facto de Sophia, vinda da alta burguesia do Porto e católica,
ter uma posição oposicionista ao fascismo e ser de esquerda.
«Para
Sophia, Natália era uma “cortesã”. Para Natália, Sophia era uma “freira”»,
comenta Isabel Nery na biografia
que escreveu da poetisa Sophia.
Sophia,
de humores, com uma ironia muito difícil de entender, com muito medo das
doenças, obcecada com a limpeza e a desinfeção (tinha pavor de micróbios), e
Natália, com um sentido de humor muito especial, polémica, irascível, cheia de
excentricidades, tão extraordinária quão assustadora, eram duas mulheres
grandiosas, porém, nada fáceis.
Sempre
que se cruzavam em atividade literárias ou políticas, se davam de caras uma com
a outra, era de fugir. Dialogavam o mínimo e indispensável e sempre com
palavras cortantes. Todavia, tinham de se cruzar várias vezes, já que viviam na
mesma cidade, Lisboa, tinham muitos amigos em comum e percursos muito
semelhantes: duas destacadas poetisas; duas escritoras com papel social,
posicionando-se como artistas intervenientes e não isoladas nas suas torres de
marfim; duas grandes figuras da cultura portuguesa; duas intelectuais para quem
a escrita, a leitura e a vida eram inseparáveis; duas mulheres que se bateram
toda a vida pela liberdade e pela democracia; duas mulheres defensoras da
cultura ao serviço do Homem e não do poder, Sophia argumentando: «A política é
que é um capítulo da cultura e não o contrário», Natália, que chegou a ser
consultora para os Assuntos Culturais da Secretaria de Estado da Cultura e,
mais tarde, deputada, dizendo: «Fui deputada porque me pediram para introduzir
o discurso cultural no Parlamento»; duas oposicionistas ao Estado Novo, ambas
apoiantes, em 1969, da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), que
estaria na génese do Partido Socialista; duas mulheres ativistas que passaram
pela política, com presença na Assembleia da República (Sophia pelo PS de Mário
Soares e Natália pelo PPD de Sá Carneiro e, mais tarde, pelo PRD do general
Ramalho Eanes)...
As
duas eram incompatíveis. Provavelmente por terem tanta coisa em comum... Duas
mulheres destemidas, corajosas, rebeldes, insubmissas, inconformistas; de
personalidade muito forte, carismáticas; ambas vaidosas e orgulhosas; ambas
muito egocentradas; ambas com o invulgar dom da palavra; ambas nada
vocacionadas para a lida da casa; ambas com uma sensibilidade e imaginação
invulgares; tiveram ambas mães muito presentes, com forte influência na sua
personalidade, que zelaram para que tivessem uma educação acima do comum e uma
cultura privilegiada.
Sophia,
princesa da Ética e da Estética, uma diva distante e fria, muito contida,
avessa ao contacto físico, distraída, de cabeça nas nuvens, etérea, fumando o
seu cigarro fino e longo entre os dedos esguios, Natália, uma Madona de
sensualidade, desafiadora, fogosa, de pose deslumbrante, enigmática, fumando um
cigarro na sua icónica boquilha segura com a mão papuda.
Tão
diferentes e tão iguais, tão iguais e tão diferentes...
(Paulo Marques, Facebook, 01-04-2023)
CARREIRO, José. “As vozes de Lídia”. Portugal, Folha
de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 10-03-2014 (última atualização: 02-04-2023). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2014/03/as-vozes-de-lidia.html
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