ÍNDICE
OBRA
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POEMA
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INCIPIT
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A Fala das Quatro Flores (1920)
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[A / Quem]
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A / Quem me atulhou o peito
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Eu
Comovido a Oeste (1940)
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[Aquele cais ali, agudo e nu]
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Aquele cais
ali, agudo e nu,
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Eu
Comovido a Oeste (1940)
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(Versos a uma cabrinha que eu tive)
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Com seu focinho húmido
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Eu
Comovido a Oeste (1940)
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[Senhor, nas minhas veias]
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Senhor, nas
minhas veias
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Eu
Comovido a Oeste (1940)
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Noite, matéria da morte
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Noite, matéria da morte,
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Eu
Comovido a Oeste (1940)
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Poema 12
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Lembro o que
perco. Estranho
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Eu
Comovido a Oeste (1940)
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Poema 17
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Pus-me a contar os alciões chegados
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Eu
Comovido a Oeste (1940)
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Poema 18
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Sombra, leva
mais longe a tua linha,
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Eu
Comovido a Oeste (1940)
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Poema 30
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Na ave que passou
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Festa Redonda (1950)
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Cantigas de Terreiro (II)
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Ponha aqui o
seu pezinho
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Festa Redonda (1950)
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Quatro coisas são precisas
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Quatro coisas são precisas
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Nem Toda a Noite a Vida (1953)
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Barcarola
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Viemos de
vagar. Vim de vagar.
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Nem Toda a Noite a Vida (1953)
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Lição de coisas
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A exatidão serena de uma flor
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Nem Toda a Noite a Vida (1953)
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Navio
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Tenho a carne
dorida
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Nem toda a
Noite a Vida (1953)
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O ovo
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Enchi de Oeste a minha vida,
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Nem Toda a Noite a Vida (1953)
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Retrato
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Cruel como os
Assírios
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O pastor morto
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De madrugada a neve envidraçou-o.
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O Bicho Harmonioso (1938)
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A concha
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A minha casa é
concha. Como os bichos
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O Bicho Harmonioso (1938)
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A furna
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Debruço-me comigo no meu poço
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O Bicho Harmonioso (1938)
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Azorean torpor
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Onde a vaga retumba eram as obras do porto:
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O Bicho Harmonioso (1938)
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Correspondência ao mar
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Quando penso no mar
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O Bicho Harmonioso (1938)
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Imagem
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Todas as
tardes levo a minha sombra a beber
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O Bicho Harmonioso (1938)
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Navio de sal
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Quando eu era pequeno, vinha o navio de sal,
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O Bicho Harmonioso (1938)
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O canário de oiro
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Se deixo
entrar este canário de oiro
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O Bicho Harmonioso (1938)
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O paço do milhafre
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À beira de água fiz erguer meu Paço
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O Bicho Harmonioso (1938)
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O bicho harmonioso
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Eu gostava de
ter um alto destino de poeta
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O Pão e a Culpa (1955)
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Espírito da noite
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Espírito da noite, variável
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O Pão e a Culpa (1955)
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O pão e a culpa
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Desde que me conheço
sei o pão
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O Pão e a Culpa (1955)
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Terra de lume
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Rezo, dobrado, aos Anjos da manhã.
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O Verbo e a
Morte (1959)
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A Vida é Tempo
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Com alma,
ideias, tempo, luta
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O Verbo e a Morte (1959)
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Casa do Ser
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Língua, Casa do Ser que lá não mora
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O Verbo e a Morte (1959)
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O poeta é o portador
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O poeta é o
portador. Carrega tudo,
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O Verbo e a Morte (1959)
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O poeta é um mostrador
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O poeta é um mostrador. Tal numa ostra
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O Verbo e a Morte (1959)
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O possível Deus
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Pudesse Deus
dizer!
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O Verbo e a
Morte (1959)
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Prece
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Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado
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O Verbo e a
Morte (1959)
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Verbo e Abismo
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Já da vaga vocálica dependo
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O Verbo e a Morte (1959)
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Verbo e Equívoco
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Chamo verbo ao equívoco falado
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Canto de Véspera (1966)
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Poema
de uma viagem ao Porto e de uma partida para a Bélgica
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As filhas do
filho ‑ e o Mundo largamente a elas.
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Limite de Idade (1972)
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Semântica eletrónica
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Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado
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Sapateia Açoriana (1976)
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Natal das Ilhas
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Natal das
Ilhas. Aonde
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Obras Completas, Vol. II – Poesia
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Bailia a Guipúscoa
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Bailemos no céu de Espanha,
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Obras Completas, Vol. II – Poesia
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Fonte clara
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Fonte clara,
fonte clara,
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Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga
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Arrependo-me de a meter num romance
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O poema tem mais pressa que o romance,
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VITORINO NEMÉSIO
Perfil biográfico e literário
Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva
N.
Praia da Vitória, 19.12.1901 – m. Lisboa, 20.2.1978
Foi
uma das figuras mais representativas da Literatura e da Cultura Portuguesas do
século XX, pela qualidade literária da sua obra e pela influência do seu
magistério universitário e da sua personalidade.
Poeta,
contista, romancista, cronista, ensaísta, conferencista, colaborador assíduo de
revistas e jornais, comunicador de rádio e televisão, Nemésio foi Professor
Catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa, onde lecionou várias cadeiras
(Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, História da Cultura Portuguesa).
Fez escola primária na Praia da Vitória, o liceu em Angra do Heroísmo e estudou
nas Universidades de Coimbra (onde chegou a cursar Direito) e de Lisboa. Ainda
adolescente e aluno do Liceu da Horta um ano (devido a comportamento menos
regular em Angra...), a cidade faialense e o seu enquadramento paisagístico e
social inspiraram-lhe referências fundamentais para o seu romance Mau Tempo
no Canal (1944), que Vasco Graça Moura chega a considerar, ao lado de Amor
de Perdição, de Camilo, e de Os Maias, de Eça de Queirós, uma das
três obras primas do romance português (v. Prefácio à tradução francesa Gros
Temps sur L’Archipel, La Difference, 1988).
Foi
jornalista em Lisboa, no começo da sua carreira, professor no estrangeiro
(Bruxelas, Montpellier, Bahia). A sua experiência cultural europeia valeu-lhe,
em 1974, o Prémio Montaigne.
A
sua obra e a sua vida apresentam profundas marcas das vivências literárias,
sociais, científicas e bélicas do século XX. Assistiu às duas grandes guerras,
a segunda das quais transformaria a sua ilha Terceira num porta-aviões (Base
das Lajes). Essas transformações e aspetos do mundo da sua infância emergem das
páginas de Corsário das Ilhas (1956), livro de crónica de viagens
indispensável para conhecer bem os Açores e o homem Nemésio.
A
infância e a adolescência decorreram no meio de uma natureza insular
condicionante: clima húmido, lava seca, vacas, paisagens agrícolas (terra que
«cheira a lava e a pelo de boi ...»), beira-mar, uma vila piscatória e uma
sociedade rural patriarcal, gentes que vivem ou da pesca ou da criação de gado,
ou de ambas as coisas. A vinda para o liceu de Angra abriu-lhe portas para
maior liberdade e para um grande mundo de conflitos sentimentais e ideológicos
(sentimentos, amores de adolescentes e iniciações anarquistas no romance Varanda
de Pilatos, 1927). A sua ilha natal será presença afectiva perene, espécie
de medida de todas as coisas, fonte constante de alusões, metáforas,
ensinamentos, paralelos e «correspondências», quando visitava outras e
distantes paragens, como as do Brasil.
Em
1916 (tem quinze anos…) publica o livro de poemas Canto Matinal (quisera
chamar-lhe Canto Vesperal...!); era então um jovem aluno do liceu de
Angra e começa o caminho de uma das mais importantes facetas de escritor:
poeta; e poeta é, de facto, um seu lado que muito sobrevalorizava, como
confessa na sua «Última lição» (1971) e em programa televisivo dos anos 70 que
tinha o nome de «Se bem me lembro».
Em
1922 publica em Coimbra o poema Nave Etérea (realizara-se a famosa
travessia aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral), mas seria em 1924, com a
publicação de Paço do Milhafre (Prefácio de Afonso Lopes Vieira) que
entraria definitivamente na criação de uma literatura referenciada às ilhas e à
fala das suas gentes. Recordações e efabulações, ainda relativamente
incipientes mas já marcantes, enchem o romance Varanda de Pilatos
(1927), que embora demasiado «próximo» dos acontecimentos, é obra a não perder,
com a leitura conduzida pelo prefácio de José Martins Garcia (edição da
Imprensa Nacional/Casa da Moeda), primeiro «biógrafo» de Nemésio.
No
mundo da poesia, decisivo haveria de ser o surgimento de La Voyelle Promise
(1935), criação poética «por dentro» da língua francesa (que dominava
excelentemente), carregada de vivências insulares. De assinalar a sua ligação
ao movimento da Presença (1927), tendo em 1937 criado a Revista de
Portugal, ano em que também publicou as novelas A Casa Fechada. Como
poeta foi, porém, sempre muito independente («surrealista sem
surrealismo»...), pois a sua forte individualidade rejeitava escolas e até as
ignorava. O Bicho Harmonioso (1938) é outro livro de referência na
trajetória poética do autor (destaquem-se poemas como «O Paço do Milhafre», «A
Concha», «O Canário de Oiro»). Alguns livros têm títulos enigmáticos: Eu,
comovido a Oeste (1940), em que Oeste é o Oeste do mar atlântico, em cujo
centro estão as viagens do poeta e a «força» das suas raízes míticas; em Nem
Toda a Noite a Vida (1953) vida e noite têm uma alternância
de sentido penitencial introspetivo e dos dois o autor diz que são «volumes de
versos que estão cheios de mim e portanto do mar e dos Açores». Mas é em Festa
Redonda, Décimas e Cantigas de Terreiro oferecidas ao Povo da Ilha
Terceira [...] (1950) que melhor evoca, em poesia ao gosto popular, um
mundo de referências, linguagens, cultos e costumes; contem evocações tão
importantes que confessa mesmo (em dáctilo escrito contido no Espólio da
Biblioteca Nacional (E11, cx. 58) que «é o [seu] livro mais fundamente
autobiográfico. Lá met[eu] infância e adolescência e é para [ele] como ouvir o
mar num búzio». O Pão e a Culpa (1955) é poesia religiosa, num sentido
de aprofundamento bíblico e teológico e de consciência do barro humano. O
Verbo e a Morte (1959) é portador de uma tónica filosófica (inclusive
leituras de Heidegger), livro onde reside um dos mais belos poemas da
insularidade, «Ilha ao longe». E Limite de Idade (1972) é o resultado de
leituras de curiosidade científica (Biologia, Medicina, Física Nuclear), de
consciência da sua doença e de jogos verbais com as linguagens das ciências: um
caso raro de convergência de ciência e literatura onde se inserem preocupações
existenciais, a «velha» saudade das ilhas e a «Ilha ao longe»… A preocupação da
origem da vida na Terra provocou um dos mais significativos poemas, «Matéria
Orgânica a Distância Astronómica». Paralelamente excogitava os problemas do seu
tempo nas crónicas que dariam o livro Era do Átomo. Crise do Homem
(1976). Uma nova fase de poesia erótica em fim de vida surgirá em Caderno de
Caligraphia e outros poemas a Marga, dos anos 70, mas só publicado, em 2003
(Imprensa Nacional/Casa da Moeda, estudo de Luís Fagundes Duarte).
Os
céus cinzentos de Bruxelas (onde era então leitor), fortes saudades das ilhas e
a vontade de fazer um romance de certa extensão (como também a moda exigia)
levaram-no a idear o célebre romance Mau Tempo no Canal. O título já vem
em agenda de Nemésio aí por Dezembro de 1937. E em 17 de Janeiro de 1938
escreve a conhecida primeira página do romance, que virá a concluir em
Fevereiro de 1944, ano da publicação. «Pareceu-me que fiz um romance das ilhas
– a nossa gente, a nossa lava, o nosso mar», como confessa em entrevista
(Entrevista ao Correio dos Açores, Ponta Delgada, 27 de Agosto de 1944).
Refere-se aos Açores, à Horta, ao Canal Pico-Faial-S. Jorge, também no capítulo
final à Terceira, de 1917 a 1919, aos amores frustrados de João Garcia e
Margarida Clark Dulmo, contrariados por profundos ódios familiares e diferenças
sociais, acabando num casamento de acomodação. Cores, cheiros, luz, nuvens (em
profusão caprichosa), a majestosa montanha do Pico, a pesca da baleia, o
flagelo da peste, as navegações no porto cosmopolita da Horta, os conflitos
sociais, a mesquinhez da intriga, a aristocracia decadente, a burguesia, a
pobre gente das habitações rurais, os debates íntimos do sentimento e da razão,
da desforra e do olvido, a luta pela vida e o orgulho disfarçado enchem esse
romance. Nele também não falta a fala regional, em personagens como o criado
Manuel Bana e principalmente o Ti Amaro, trancador de baleias, que andou pelos
mares do Norte (o «Ariôche», Artic Ocean) e que preceitua que «pena-se
muito nesses mares, mas aprende-se mais que nua esquiola» [numa escola].
A
fala é meio picarota meio terceirense, mas resulta como experiência realista de
literatura valorizada pelo documento folclórico e antropológico. Era preciso
documentar identitariamente essas ilhas ainda mal conhecidas, que um dos seus
próximos livros, Corsário das Ilhas (1956), viria então fazer avultar
como berço da sua infância e adolescência e paisagem humana de grande
diversidade. Este livro de crónicas de viagem (1946 e 1955), que deve ser
entendido como itinerário açoriano (corsário no sentido de «fazer o
corso de»), é não só leitura indispensável sobre as ilhas atlânticas (Açores,
Madeira, Canárias) como documento humano sobre o próprio autor, que se
considera «filho pródigo» em visita de saudade à sua ilha. Este livro faz parte
de uma «série», o «Jornal de Vitorino Nemésio», antecedido por Ondas Médias
(1944), O Segredo de Ouro Preto (1954), depois seguido por Conhecimento
de Poesia (1958), Viagens ao Pé da Porta (1967), Caatinga e Terra
Caída. Viagens no Nordeste e no Amazonas (1968), Jornal do Observador
(1971).
Renovando,
por meio de crónicas sui generis, o próprio género da crónica, Nemésio
«viaja» no espaço e no tempo, dentro e fora de si próprio, com alusões
eruditas, referências inesperadas, vastíssimos conhecimentos de geografia física,
geografia humana e história, por vezes em busca de «correspondências» entre o
que vê pela primeira vez e o que conhece da sua terra ou da sua infância.
Clássico
ficou o seu texto de 1932, intitulado «Açorianidade» (Revista Insula,
7-8, Agosto, incluído depois em Sob os signos de agora, 1932), destinado
à comemoração do V centenário do descobrimento dos Açores. Foi daí que o termo Açorianidade
partiu, com grande fortuna e expansão, cujo alcance Nemésio na altura não
adivinhou. Com efeito, ele estava a falar da sua açorianidade ou
«imaginação» do ser açoriano «que o desterro afina e exacerba»: isto é, o
afastamento define ou aumenta o sentimento de pertença e ligação espiritual aos
Açores. Mais uma versão da «saudade portuguesa», mas com alcance identitário
regional e com aura política, sobretudo depois da criação do Governo próprio da
Região (1976). Como escreveu em Corsário das Ilhas, «a natural
preocupação por essas ilhas [...] por vários modos nele tende a resolver-se por
escrito». Esses modos foram a poesia, o romance, o conto, a crónica, a
conferência (como a que fez em Coimbra em 1928 sobre «O Açoriano e os Açores» e
outra em Nice em 1940, «Le Mythe de M. Queimado»). Nos anos 70, com as
vivências políticas anti-gonçalvistas e independentistas dos Açores (1975),
Nemésio foi invocado como figura tutelar ou mesmo hipotética de Presidente de
uns Açores independentes. «Até que me passe a zanga», como deixa dito em poemas
cripto-separatistas de Sapateia Açoriana (1976). A zanga havia de
moderar-se ou passar (as condições políticas, de resto, modificaram-se).
Nemésio, por sua expressa vontade, repousa no cemitério do Tovim, em Coimbra,
cidade onde estudou e tinha uma casa («Casaréus»).
Da
sua ficção, de que faz também parte o conjunto de contos O Mistério do Paço
do Milhafre (1949), recuperando anteriores narrativas de Paço do
Milhafre e acrescentando outras como o inesquecível conto «Quatro Prisões
Debaixo de Armas»; poderíamos ainda referir o inacabado romance O Cárcere
(1976, 1.º capítulo no Diário de Notícias, 30 de Março de 1978,
postumamente), no qual emerge ainda e sempre o mundo da sua ilha e da sua
infância e o sentimento de ser ilhéu: «Nunca cheguei a saber se o cárcere era
de pedra ou era de gente. Talvez de pedra com gente dentro, talvez de gente
feita de pedra».
Nemésio
foi também uma figura de grande relevo universitário. A sua tese de
doutoramento A Mocidade de Herculano até à volta do Exílio (2 vols.,
1934) é uma referência indispensável para os estudiosos daquele autor e do
liberalismo português (em Portugal e no exílio). Tem outros estudos sobre
Herculano, sobre a Rainha Santa Isabel (Isabel de Aragão, 1936), sobre o
Infante D. Henrique (Vida e Obra do Infante D. Henrique, 1960), sobre
Gomes Leal, Gil Vicente, Moniz Barreto, Afonso Duarte, o Romantismo Português
nas suas relações com a cultura francesa, Cecília Meireles, problemas das
relações luso-brasileiras, questões teóricas de literatura, num larguíssimo
leque de interesses, participações e convites de um grande homem das Letras e
da vida universitária portuguesa, como se vê pelo seu currículo e vasta
bibliografia. Foi tradutor, conferencista, fez palestras na Rádio e na
Televisão. Foi um grande conversador e assumiu-se como melómano, ensaiando
tocar modas regionais à viola.
A
projecção da sua obra e da sua personalidade permite concluir que é um dos
escritores mais significativos do século XX, estudado no seu país e no
estrangeiro, em numerosas teses de mestrado e doutoramento. Na Universidade dos
Açores, em Ponta Delgada, existe um Centro de Estudos que lhe é dedicado
(bibliografia, iconografia, investigação), o SIEN (Seminário Internacional de
Estudos Nemesianos). A cidade da Praia da Vitória desenvolve um projecto
respeitante à «Casa de Vitorino Nemésio». A Imprensa Nacional-Casa da Moeda tem
publicado as Obras Completas de Vitorino Nemésio.
António M. B. Machado
Pires, Enciclopédia Açoriana
Direção Regional da Cultura, Centro de Conhecimento dos Açores, 2011.
Bibliografia
Essencial
Aquando da
receção do Prémio Montaigne, em l974, a Editora Bertrand fez publicar uma
coletânea sobre Nemésio, Críticas sobre Vitorino Nemésio, que inclui
também a sua magistral «Última lição», publicada pela primeira vez na Miscelanea
de Estudos em honra do Prof. Vitorino Nemésio, Lisboa, Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, 1971. As Obras Completas de Vitorino Nemésio estão a
ser reeditadas pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
A.A.V.V.
(1998), Vitorino Nemésio — Vinte Anos Depois. Lisboa, Edições Cosmos e
Seminário Internacional de Estudos Nemesianos [Actas do 1.º Congresso
Internacional de Estudos Nemesianos]. A.A.V.V. (2003), Nemésio, Nemésios —
Um Saber Plural. Lisboa, Edições Colibri [Actas do Seminário Nemésio 100
Anos]. Cook, C. S. (2006), O
Menino escreve. Infância e Adolescência no universo nemesiano. Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Garcia, J. M. (1988), Vitorino Nemésio – à
luz do Verbo. Lisboa, Vega. Gouveia, M.
M. M. (1987), Vitorino Nemésio – Estudo e Antologia. Lisboa, ICALP,
«Col. Identidade» [Contém também uma antologia de estudos críticos].
Mourão-Ferreira, D. (1987), O Essencial sobre Vitorino Nemésio. Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, «Col. O Essencial». Pires, A. M. B. M. (1998), Vitorino
Nemésio Rouxinol e Mocho. Praia da Vitória, Câmara Municipal da Praia da
Vitória. Silva, H. G. (1985), Açorianidade na Prosa de Vitorino Nemésio:
realidade, poesia e mito. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda/Secretaria Regional da Educação e Cultura. Valdemar, A. (2002) Vitorino
Nemésio. Sem Limite de Idade. Lisboa, CTT-Correios de Portugal.
Revistas que
consagraram recentemente alguns artigos significativos: Revista Atlântida,
vol. XLVI, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 2001 [Centenário
de nascimento. Textos de António M. B. Machado Pires, Fátima Freitas Morna,
Fernando Cristóvão, Manuel Nemésio, Margarida Maia Gouveia, Urbano
Bettencourt]. Revista Insulana, n.º L (n.º 1) MCMXCIV, Ponta Delgada,
Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1994 [Número Comemorativo dos 50 anos de Mau
Tempo no Canal. Artigos de Adelaide Baptista, António Machado Pires, Diogo
Pires Aurélio, Helena Mateus Silva, José Martins Garcia, Manuel Urbano
Bettencourt, Maria Margarida Maia Gouveia, Paulo Meneses, Rosa Simas].
A Rotação da Memória
- exposição comemorativa do centenário de nascimento de Vitorino Nemésio.
Este site baseia-se no catálogo impresso da exposição, o qual se
estruturou, em grande parte, sobre materiais do espólio nemesiano, conservado
no Arquivo da Cultura Portuguesa Contemporânea da BN. Os documentos são
descritos peça a peça e, em alguns casos, acompanhados de imagens.
Nos materiais da oficina do escritor e nos demais que integram a «rotação da
memória» cultivada por Vitorino Nemésio, encontram-se subsídios importantes
para melhor conhecermos a sua formação, as suas viagens, o processo genético
que os seus textos conheceram e em geral os avatares da sua proteica atitude
literária – uma atitude que jamais se conformou a escolas ou a movimentos
rígidos.
Nemésio: a vida
atribulada
Em Agosto de 1916 publica o seu
primeiro livro, Canto Matinal.
O ano seguinte seria de muitas
tropelias e desacertos académicos, no liceu de Angra, uma instabilidade que há de
ser recorrente na vida de Nemésio. A opção errada pelas Ciências e, na
Universidade, a escolha do Direito antes da Filologia Românica, que só termina
em Lisboa, em 1931, não sem antes ter passado pela Universidade de Coimbra, são
disso exemplo. A par, claro está, de uma vida atribulada de jornalista e das
dificuldades económicas que teve, algumas vezes, de enfrentar: E eu,
rebentando a greve da Imprensa, não tinha comida certa: comprava um pão
casqueiro na esquina e tragava-o com golos da garrafa de toilette.
Os pregões da manhã e as prostitutas vizinhas da noite carregavam-me
na angústia (in Notas Biográficas).
Em 1933 é contratado pela Faculdade de
Letras de Lisboa, tendo-se doutorado, no ano seguinte, com a dissertação A
Mocidade de Herculano até à Volta do Exílio.
Nemésio lecionou ou desempenhou,
ainda, missões universitárias em França, Bélgica, Holanda, Espanha, Brasil,
etc., para além de ter dirigido a Revista de Portugal (1937-40), que,
segundo alguns, se assumiu como uma reacção ao psicologismo da Presença.
De Nemésio, escreve José Martins
Garcia (Vitorino Nemésio: a obra e o Homem), biógrafo e estudioso da obra do mais conhecido autor
açoriano do século XX:
Há na obra de Vitorino Nemésio um
desequilíbrio que dá muito que pensar [...]. Precocemente publicado - livro de
poemas aos catorze anos -, é precisamente na poesia que mais dificuldades sentirá
quando vier a compreender que um poema não é um mero pretexto para exibição em
"Jogos Florais". Cirandando pela atividade jornalística, nunca
perderá o hábito, nem mesmo quando catedrático e premiado-condecorado, de
enviar artigos, ensaios, crónicas para os mais diversos órgãos de comunicação.
Professor, faz palestras na rádio e, mais tarde, na televisão. Romancista [...],
contista, só de longe em longe o narrativo se intromete nas crónicas, após a
publicação de O Mistério do Paço do Milhafre. [...] Mação, sofre uma
tremenda crise religiosa. Contestatário, pede misericórdia a Deus-Pai. Irregular.
Inconformista... E contudo poucos escritores portugueses terão obtido em vida
tantas distinções literárias, culturais, académicas e outras...
Em 1971 Vitorino Nemésio tem de
abandonar a cátedra. O facto [...] provoca-lhe um abalo psicológico notório.
Mas Nemésio reage, quer «regressar» a uma atividade que o apaixonou [...]: o
jornalismo. [...] Chega o dia 24 de Abril de 1974. Nemésio, reformado, ainda
palestrava na televisão. Mas a "liberdade" de Abril sumiu-se em 1975.
A Nemésio já não consentem que palestre na televisão. É no meio da barafunda
político-ideológica que o escritor assume a direção de O Dia em 11 de
Dezembro de 1975. Não chegou a permanecer nesse posto [...].
Reinicia então uma fase de intensa
colaboração em jornais de Lisboa e Porto. Todos os seus amigos íntimos
reconhecem um facto: Nemésio vive com dificuldades económicas. Precisa de
escrever para continuar o fadário de sempre: ganhar a vida [...].
Há nesta última faceta qualquer coisa
de trágico. Dir-se-ia que o biógrafo de Bocage e de Gomes Leal [...] estava
condenado a sentir, nos seus derradeiros dias, a afronta dessa Lisboa que nada
respeita e a ninguém reconhece... A pátria, a madrasta, ficou-lhe com os ossos,
com os ossos dum Homem que sempre buscou a «Ilha perdida»...
E não resisto à transcrição dum
testemunho: «Se bem me lembro, no decurso de um dos seus trajetos, aos
domingos, através do Bairro Alto e do Chiado, em que lhe fazia companhia,
quando entregava, em várias redações, artigos escritos nas últimas horas,
Vitorino Nemésio dizia-me com mal disfarçada amargura: 'Sou uma costureira que
anda a distribuir roupa feita ao domicílio'.» (António Valdemar).
Faleceu no hospital da CUF, no dia 20
de Fevereiro de 1978. (José Martins Garcia, Vitorino Nemésio: a obra e o
Homem)
“Vitorino Nemésio: a vida atribulada” in
Ser em Português 12, coord. A.
Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999.
Fotografia © Arquivo DNA nove de Dezembro de
1971, o escritor e poeta açoriano Vitorino Nemésio (1901-1978), proferia a sua
última lição na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tinha então 70 anos
e chegara ao limite de idade para exercer a docência.
UM HOMEM A RESOLVER-SE
O mestre Nemésio regressou à sua ilha
Terceira 30 anos depois de ter rumado ao Continente. Em 1946, a estadia foi
curta, mas prolongada a de 1955. Voltou, dizia, para se «resolver por
escrito». Mas poderia alguém ter dúvidas que o homem, já em idade de gente,
ainda havia de lhe sobrar passado por construir? Sobrava, sim senhora. Os seus
dois regressos foram para volver-se a olhar para dentro, mergulhar no fundo de
si mesmo. «O passado vale duas vezes o presente... Uma - porque vale o que foi,
exatamente quando era; outra - porque torna a valer esse valor quando puxamos à
memória, agora que não é precisamente senão aquilo foi.» Belas palavras estas
as da herança por ele lavrada no Corsário das Ilhas, livro de
memórias, de viagens (interiores, disse alguém), ou, digo eu, um jogo bem ao
jeito dele, o de deixar-se ir construindo-se, palavra por palavra, à frente dos
nossos olhos espantados. «Então, afinal, o homem precisou desse tempo todo para
saber bem onde nasceu, com quem se fez, que vida levou, e como tudo isso lhe
ficou na alma?» Pois, se calhar... Aquele seu «Se bem me lembro» foi fina
ironia, hem?
Vitorino Nemésio, o ilhéu do mundo
Escritor, viajante, professor,
pai, comunicador e o que mais se verá, de Nemésio e seu legado se celebra o
centenário. Retrato de um homem que só viveu de pão e de verdade.
Podia ter como apelido Gomes da Silva, não fosse o padre Rocha,
que baptizou a criança na Igreja Matriz da Praia, Ilha Terceira. Bem podia ter
exclamado «se bem me lembro, o 19 de Dezembro é dia de São Nemésio». Nessa
manhã de 1901, nasceu o filho de Maria da Glória Mendes Pinheiro e Victorino
Gomes da Silva. Ao petiz é dado o nome Vitorino por causa do pai, a quem
tratavam por «mestre» e era músico amador na Filarmónica local, e por culpa do
avô, marceneiro digno e senhor do ofício de que a família ainda guarda em
relíquia uma cómoda de cerejeira que, a estas horas, já andará encerada.
Foi educado na Vila da Praia da Vitória, quase sempre em casa das
tias Menezes. À criada, Genuína Baganha, dedicou uns versos de delícia: «A
Genuína Baganha/ Foi servir pra nossa casa:/ Criou-me como melrinho/ Debaixo da
sua asa!// Dava-me sopas de leite/ Cantando-me uma cantiga:/ 'O menino nã nas
come?/ Nã nas acha na barriga!'». Não foi menino de coro na Matriz, mas ajudava
o padre Rocha na celebração da missa, ao tempo dita em latim. O seu filho
Manuel descreve-lhe o quarto de dormir, como um retrato de um homem por inteiro
e onde tudo se explica e desvenda: «Era uma espécie de cela de monge onde se
recolhia para melhor se abrir ao mundo. A sua cama era simples, de vinhático
com duas tarjas altas. À cabeceira tinha um pequeno crucifixo e um terço em
contas de madeira muito bonito, mas pobre e com uma cruz em osso desgastada e
lustrosa pela usura do tempo e dos dedos das mãos. Na sua mesinha de trabalho
tinha uma imagem pobrinha, daquelas que se vendem nas feiras, do saudoso padre
Cruz tanto da sua devoção. Rodeado de livros amontoados no chão à volta da
cama, para além das estantes, o meu pai vivia ali numa enorme 'desarrumação'
arrumada à sua maneira, com ordens expressas de que apenas lhe fizessem a cama
de lavado, lhe arejassem o quarto e lhe passassem o pano do pó ao de leve por
cima dos livros e dos móveis que mal cabiam no quarto, para além de um enorme
guarda-fato». Uma «cela de monge»? Teria Nemésio, professor e conferencista ao
longo de quatro décadas, homem viajado e «navio desarvorado», comunicador
exímio, pai de quatro filhos, um dos maiores escritores do século findo e o que
mais se verá, um recanto de alma em forma de assoalhada? Acreditaria ele que a
verdadeira saga é a aventura do espírito? Foi ele o ilhéu do mundo?
Ser um homem é ser «quem viveu muito, viu ou passou muitas
histórias e ajudou a fazer algumas», gostava de dizer. Para começar, adorava
escrever em comboios. Em viagem usava a Rolls Royce das canetas, uma Conklin de
aparo fino, ou então uns lápis bem afiados com a pequena navalha de cabo de
osso em chifre de veado. A letra era miúda e redonda, poupada para caber nas
pequenas páginas de ainda mais exíguos cadernos, folhas pautadas, toalhas de
mesa ou bilhetes de trem. Escrevia poemas nas margens dos textos alheios. Era
poeta, acima de tudo, nem que o afirmasse três vezes por via das dúvidas dos
outros. Em casa tinha uma Remington, de preto escancarado, com teclas brancas
como um piano. Lembra Manuel que o pai «a tocava com mestria num admirável
'orquestrar cantarolado' de escrita a dois espaços em papel A4 que lhe saía do
rolo quase sem mácula. Apenas uma ou outra emenda a tinta e lá seguia para a
tipografia, por vezes à pressa, mais um artiguinho da última hora num acudir ao
seu ganha-pão». Coisas da vida.
Nemésio falava sempre do pai, por isto e aquilo lamentava-se «ai,
meu pai, ai, meu pai», até ao fim da vida. Victorino Gomes da Silva, faleceu
cinquentão, em Abril de 1923. Dizem testemunhos que era um «homem bizarro» mas
de inteligência inquestionável. Passou para o filho a dificuldade de se
decidir, tinha habilidade para a música mas dela sabia pouco, dedicava-se ao
comércio e tinha a graça de vir amiúde ao Continente para tratar de mudar de
ramo. O filho adorava tanta estranheza. À sua maneira: «Eu era um bocado
tímido, desafiavam-me à pancada, eu dava pancada, recebia pancada, jogava ao
pião e ficava a ver os miúdos, em pêlo, a nadar nas Caneiras. Mas não entrava
na água», lembrou uma vez em entrevista televisiva.
O que ditam as cronologias literárias começa nessa altura. Aos 13
anos vê em letra de imprensa o seu primeiro texto, aos 15 lança um livro de
poemas chamado «Canto Matinal» e participará em jornais e revistas, as que
dirige e funda, aquelas onde colabora regularmente, já influenciado pelos
ideais republicanos cuja propaganda na Ilha Terceira e na Horta, onde fará
parte do liceu, o entusiasma e influencia. Por graça, o futuro professor
catedrático e doutor honoris causa era um mau aluno. Talvez seja brutal dizê-lo
assim, mas faltava continuamente às aulas e mal sabia para onde se virar, entre
Ciências, Direito e Letras. Só aos 20 anos acaba o liceu, já os pais pensavam
em arranjar-lhe emprego e acabar com tanta desdita. Há quem diga que o seu
problema era não ser devidamente apreciado.
Em 1919 alista-se no Exército, arma de Infantaria, como voluntário
e vem para Lisboa. Digamos, citando-lhe os termos, que era algo volúvel quanto
a vocações: «Quis ser padre, soldado e médico, mas não deu em nada. Acabei como
professor e escritor. E poeta.» Tem papel activo nas greves de 1921, em
particular no jornal «Última Hora», faz comícios e respira de alívio quando
tudo aquilo acaba. Volta à Terceira para descansar. «Fui refazer-me daqueles
cansaços. É que em Lisboa passei muita fominha», lembrava. O que fazer com este
homem? Uns amigos da capital «constituem-se como fiadores», dizia Vitorino, e
mandam o rapaz para Coimbra onde fará três dos cinco anos de estudos previstos,
mais dado à discussão política e às tertúlias que aos estudos. Trouxe uma lição
que apregoará até ao fim: «As posições políticas acirradas e adversárias tinham
pouco que ver com as relações de amizade». Em rigor, a sua grande vocação era a
literária, a poética, tudo o resto andava em torno. Mesmo a religião, a que
vinha do ambiente familiar nos Açores, «católica, não beata, mas assídua».
Serão a adolescência, as garotices e os amores que o afastarão, provisoriamente,
das coisas de Deus.
Duvidar é a sua maior ferramenta. Inventa o termo «açorianidade»,
quantas vezes mal percebido por alheios em intempéries independentistas, quer
ver a condição de ilhéu aceite na criação estética, pergunta porque não há uma
literatura açoriana. Diz das ilhas serem o seu meio original, «partido,
fragmentado, feito de mar e de terra, talvez mais de mar que de terra». É
metódico como pode, mas só o casamento vai pôr ordem na «casa». Desposa
Gabriela Monjardino em 1926 e passa a viver em casa dos pais dela. Ela é tomada
como uma mulher quase «militarista» no lar, de tal forma é organizada. Diz-se
que Nemésio mal chegaria à cátedra sem ela. No futuro, seria Gabriela a manter
a harmonia e o pão na mesa com explicações de francês, língua em que era exímia
e cuja «mão» em diversas traduções de Vitorino nunca foi devidamente apreciada.
Manuel, o filho, lembra: «A mesa era matriarcal e o meu pai, distraído e às
vezes atento, era apenas mais um dos filhos.»
Licenciado em Filologia Românica em 1931, professor auxiliar até
se doutorar em 1934 com uma tese sobre a mocidade de Alexandre Herculano
(aprovada por maioria e «três bolas pretas», o que Nemésio nunca «engolirá» a
preceito), vai ensinar para Montpellier onde permanece até 1937, no Collège des
Ecossais.
Começa o ciclo de cartas para os filhos, queridas, ternurentas,
brincalhonas, a rasgar por inteiro a ideia de um intelectual puro e duro,
professoral e doutoral até à medula. A 6 de Novembro de 1935, escreve à filha
Georgina: «Hoje é o dia dos teus anos. Muitos parabéns e muitos beijos.
Gostaste dos presentinhos que te demos e que os teus irmãos te levaram? Gi, não
te esqueças de nos ir mandando uns postais dos que te deixei. Mas não escrevas
muito, para não tirar tempo ao estudo nem te cansares. Bastam três ou quatro
palavras acompanhadas de um desenho do Jorge e de rabiscos do Manuel e da
Aninhas. Eles têm feito muitas tropelias ao levantar e ao deitar?» Antes, em
Abril de 1934, escreve a Gabriela: «Meu amor, aqui tens a minha primeira carta
escrita do meu novo desterro. Comprei uma lâmpada portátil de abat-jour verde
que me custou 30 francos. Hei-de levá-la para casa, se Deus quiser, e verás que
maravilha. Serve para trabalhar à mesa e ler na cama. A bacia é óptima, num
cantinho com duas torneiras e lâmpada. A estante, excelente. Há bidé. Estou
alto!» Ou: «As tuas cartas vão em crescendo de amor. São maravilhas. Logo te
escrevo e beijo mais do que agora.» De Bruxelas, responde à pergunta da mulher
sobre os seus «projectos»: «Por ora, são de trabalho os primeiros. Mas ao mesmo
tempo vai crescendo em mim um apetite de nova vida, que por ora não posso falar
a fundo porque não passa de um apetite. A minha inquietação interior está a
tomar um rumo diverso, a canalizar-se toda para a ânsia cristã. Mas insisto que
tudo isto por ora é demasiado intelectual para ter consistência. A noite
passada, ao meditar nestas coisas, pensei muito em ti, na aliança de fé e acção
que podemos realizar com intensidade ainda um dia. Não posso ser mais claro a
este respeito, por isso mesmo que o que se passa em mim é uma crise religiosa,
muito vaga e difusa. A verdade é que pouco a pouco a concepção católica do
mundo e de Deus se me torna outra vez acessível e se me quer oferecer como
minha. Tenho tantas saudades dos filhos! Gostava tanto de te ver com o chapéu
'espampanante', assim limpinha e a fazer gosto na mocidade que nos resta! Tanto
bêso...»
Vem escrito nos compêndios a importância deste «prelado» em
França, de como Nemésio conheceu figuras da intelectualidade francesa, de como
abriu horizontes. É o começo de uma série de viagens, de um circuito que de bom
grado a crítica e as teses universitárias gostam de encontrar na poesia de
Vitorino. Nem de propósito é esse o tema de «Viagem», um notável mas desigual
documentário realizado para a RTP por Maria João Rocha e em que parte destas
linhas se baseiam, enquanto se espera a sua redifusão como parte da celebração
do centenário do nascimento de Nemésio, coadjuvada pela exposição documental na
Biblioteca Nacional agendada para o próximo dia 11.
Vem dito nas badanas e margens, nas dedicatórias de muitos dos
seus 14 mil volumes de biblioteca pessoal, que Vitorino Nemésio conheceu toda a
gente e que a dita tratou de provar que o conhecia a ele. O Brasil foi,
possivelmente, a grande paixão de viajeiro. Escreve da Bahia para a filha
Georgina: «Escrevo-te estreando uma bestial camisa de dois bolsos. (isto é
beige, Gabriela? Estou a escrever à Georgina!). Estamos ambos muito surdinhos,
graças a Deus! Mas até dá graça ao diálogo... E a camisa é realmente clarinha,
'cor de areia', disse o snr. Novais, o patrício que ma vendeu tirando 50
cruzeiros dos 450 escudos que pedia. Começam aqui com cedo os estoiros de São
João! É cada um! Cidade bulhenta e suja, mas muito pitoresca e de boa gente». Divide-se
em conferências, leituras de poesia e aulas. A alma está sempre no mesmo lugar.
Diz a partir de Fortaleza: «Eu é que tenho este jeito seco e lacónico de
cartear. Mas o meu coração está todo virado para vocês, como um girassol
velho.» Ou: «Vou entretendo a debilidade (horas à espera da canja!) escrevendo.
Saudades, digo! As tuas palavras de incitamento a eu 'recriar' comovem-me.
Acabarei por dar o salto! Às vezes apetece-me. O pior é a rede de ocupações. Ao
jantar: sopas.»
Falam de despesas, dos cheques que não chegam, das promessas de
trabalho, de mais uns tostões para a casa, de uns «cobres bons». Os familiares
recordam-no como um homem muito afectuoso, de lágrima fácil, mais que dado à
família. Há, claro, o mistério de Margarida Clark Dulmo, a personagem de «Mau
Tempo no Canal», à espreita sobre um juro do Pasteleiro a vinda do «seu» João
Garcia. Chamava-se Maria e com ela trocou Nemésio correspondência durante meio
século. Conheceram-se quando o escritor tinha 15 anos. Monárquica acérrima,
guardou até ao fim o segredo de uma enfatuação de que ninguém fala, uma
paixoneta que talvez fosse mais que isso, mas que Vitorino não fazia
transparecer ou indiciar nas cartas à família e a Gabriela. Esqueceu as mágoas
a escrever «Mau Tempo no Canal». Há quem diga que morreu sem esquecer a menina
loura da Terceira a quem terá pedido amores ainda em 1936, já casado há dez
anos. Não seria o pai a dar-lhe o maior dos conselhos: «O meu pai é a grande
saudade da minha meninice. Todas as coisas que eu vi e senti vão ter a ele como
um rio. Foi ele que me deu esta alegria que tenho enterrada na minha abstracção
e nos desvios de uma vida de que sou o único culpado, mas também foi ele, ou
antes o seu fadário, que encheram a minha adolescência de melancolia e de
temor».
A sua saúde de ferro é atingida por doença mortal, uma vez mais
sofrida, outras ténue e imperceptível. Já passara os ardores dos anos 50,
quando a intelectualidade perguntava qual o papel do catolicismo nos tempos
correntes. Nemésio reconverte-se à religião, deixa-o escrito preto no branco em
«O Pão e a Culpa» ou «O Verbo e a Morte». Ensina «O Malhadinhas», de Aquilino
Ribeiro, como se fosse o livro do século. Perde-se de amores por Dostoievsky e
Lins do Rego. Escreve e ensina, com a alternância possível.
Vem do ensino universitário a sua mais amada característica. Um
homem é o que é na conversa. De bom grado prefere que um aluno lhe proporcione,
olhos nos olhos e ouvidos à ilharga uma conversa interessante do que passe uma
cadeira com a quantidade de matéria que «empinou». Passa o ensinamento aos
filhos, mas os alunos passam maus bocados. Adoram-no pela «verve», a cultura
imensa, a capacidade de falar de tudo e de nada, sempre voltando ao pensamento
central que ali o leva. O problema maior são os exames: uma aula de Nemésio
nunca é meio caminho andado para saber o que vai sair no «ponto». Talvez fosse
melhor sair com ele e cantar ladainhas enquanto o professor se acompanhava à
guitarra, ou estar a seu lado deliciado com um prato de abrótea frita ou uma
sopa de carne, duas iguarias que inspiravam a Nemésio o inevitável comentário:
«É melhor que no Ritz!»
Em 1969 faz-se vedeta de televisão com «Se Bem Me Lembro...»,
programa de charlas em solilóquio onde Vitorino era deixado com as suas
memórias, a sua concepção do mundo, num jeito nervoso, eufórico, de prosa
pausada, deliciosa, mal se segurando na cadeira por conta da alegria imensa de
conversar. Dizia-se à boca calada que se jantava desligando o som às «Conversas
em Família» de Marcelo Caetano e se parava o garfo a meio caminho enquanto
Nemésio discorria. Era uma figura popular, demasiado popular. «Ali sou um homem
de careta, no ecrã, mas não me conhecem como poeta, só me conhecem naquelas
coisas», lamentava-se. Até que o PREC o demita, serão seis anos de programa onde,
aos poucos, vai refazendo sem querer a sua própria autobiografia. É ali que
confessa o estado actual da sua religiosidade: «Sou contraditoriamente
religioso e ateu. Religioso nas horas vagas.»
A certa altura vislumbra uma saída para a crise financeira da
família quando o convidam para director do jornal «O Século». Está tudo no
lugar até dar uma entrevista à «Flama». Ao perguntarem-lhe que perfil editorial
quer dar ao diário, ele responde «pluralismo de opinião, tolerância, diálogo,
representatividade dos grupos e direito de resposta». O convite é imediatamente
retirado. Não era, já se vê, homem com quem o Estado Novo pudesse contar, nem
havia Primavera marcelista que o levasse aos píncaros. Exulta com o 25 de Abril
mas nem mesmo a sua rebeldia de juventude aguenta tantos excessos. Dará, com
infinda graça, o retrato dos vira-casacas: «Sempre que raia uma nova aurora, é
sempre muito mau ver um homem que faz a 'toilette' de última hora.»
Até à morte, a 20 de Fevereiro de 1978, vive dos possíveis
prazeres, a começar pela guitarra que só os amigos tinham a generosidade de
fingir admirar com talento. Tinha bom ouvido, mas tocava mal e não há volta a
dar-lhe. A guitarra contentava-o, quase tanto como cantarolar com voz rouca e
trejeitos de sorriso matreiro. Nos alvores revolucionários e mesmo antes, em
plena Guerra Colonial, cita na TV, sempre que pode, a velha máxima de António
Sérgio: «Guerra às ideias e paz aos homens.» É tudo o que lhe interessa. Ainda
se torna director do jornal «O Dia», mas demite-se poucos meses depois.
Passou os últimos dias no Hospital da CUF, longe das noites de
sono justo e sem pesadelos, entre os médicos e os filhos revezados em vigília.
Rabiscava uns derradeiros poemas, a agraciar os amigos, a pedir desculpa por
pequenas ou maiores ofensas, do pão, da culpa, do verbo e da morte. Em
sussurros, pediu ao filho Manuel para ser sepultado no cemitério de Santo
António dos Olivais, em Coimbra, e que os sinos da igreja tocassem o Aleluia em
vez de dobrar a finados. O que se cumpriu.
A poucos escritores portugueses pode uma vida comparar-se a uma
viagem, fosse ela pelos cantos claros do mundo ou as esquinas escuras da
inquietação. Professor, romancista, comunicador, poeta e tudo, o legado de
Vitorino Nemésio, o do homem e da palavra, não tem paralelo. Como resumir a
vida de um homem destes numa única ideia. O melhor é usar o que ele disse ao
receber o Prémio Montaigne, em Março de 1974. Terminou a sua alocução e
agradecimento desta maneira: «A carta de cidadania é precisa para voto e
passaporte, mas também se passa sem essas coisas. Sem pão e verdade é que não.»
E mais não disse por não haver quem o dissesse melhor.
José
Mendes com Luísa Amaral, Expresso-Revista, 01/12/2001
Fotografias de Rui Ochôa
Do paroquial ao universal
Unidade e diversidade em
Nemésio
Poeta, acima de tudo. E três vezes
dito, se assim o obrigassem. A obra de Nemésio é vasta e multiforme feita da
consciência do exílio. Com a insularidade por metáfora.
É raro um autor publicar o seu primeiro livro aos 15 anos.
Aconteceu com Vitorino Nemésio e, se é fora de dúvida que, com o seu Canto
Matinal (1916), o autor estava ainda preso a modelos tardo-românticos um tanto
ou quanto requentados e longe da excepcional qualidade literária que veio a
atingir mais tarde, é interessante registar que se nos apresenta já então com
um considerável domínio de uma série de aspectos técnicos e formais da escrita
poética. A «Canto Matinal» e a «Nave Etérea» (1923), chamou ele «dois livritos
não propriamente precoces, senão precipitados (…) Dessas coisas que se estampam
no ímpeto da adolescência, sem critério». Mas, de algum modo, pode dizer-se que
Nemésio, assim, começou a dominar a oficina muito antes de estar em condições
de lhe agregar os outros ingredientes que fizeram dele um dos maiores poetas do
século XX. Dois desses ingredientes, a que, à falta de melhor termo, chamarei
«descontracção» e «naturalidade», vieram a acentuar-se progressivamente,
insinuando-se no manuseio da utensilagem de que continuou a servir-se e que
veio a abranger um leque de ferramentas muito vasto, da erudição mais
estonteante e do profundo conhecimento do fenómeno da criação literária à
frescura e à surpresa da sensibilidade de raiz mais chã e popular.
Alguns desses aspectos surgem já, plenamente afirmados, numa
língua que não era a de Nemésio, em «La Voyelle Promise» (1935), seu primeiro
livro importante, para depois alastrarem pela obra portuguesa. Ali são
prenunciados, conquanto numa língua que não era a sua, vários dos temas e
vários dos processos prosódicos e rítmicos que depois se tornarão
característicos nele, em que a rigidez «metronómica» de certas regularidades
surge espontaneamente transgredida ou é temperada pelas inflexões da fala, como
mais tarde o virá a ser, na sua íntima musculatura, por notas da própria
pronúncia açoriana.
Nessa altura, Supervielle e Valéry contam-se entre os seus
mestres. Fala do seu biénio de 1934 a 1936 em Montpellier nestes termos: «Lá
vivi dois anos de fervor e renovo espiritual: o domínio francês na revelação da
poesia noemática de Valéry e soteriologia de Claudel, além da 'caligramática'
de Apollinaire.» E se Apollinaire é uma chave para certos efeitos mais
desconcertantes da escrita poética nemesiana, uma pequena obra-prima de rigor,
de inteligência e de humor, como «Mademoiselle Hypothèse» só se compreende a
partir de uma destra apropriação de alguns processos de Valéry. É também em «La
Voyelle Promise» que surge pela primeira vez, creio eu, uma auto-alusão ao seu
nome («- Némésis, la payenne // Aime la chair, le sang / Et d'autres friandises
/ Qu'on ne sert qu'aux étangs / Écartés des églises», lê-se no poema «L'oeuf à
la coque»), como muito mais tarde, no final de «Mau Tempo no Canal», o mesmo
mito será implicado pela referência ao anel de Polícrates.
De uma época ainda anterior aos seus primeiros contactos vividos
com a França datarão as suas primeiras leituras de Rainer Marie Rilke (m.
1926), de quem já havia várias traduções disponíveis em Francês. Mas a
experiência rilkeana depois foi certamente aprofundada através das traduções de
Paulo Quintela que começaram por ser publicadas, em 1938, na «Revista de
Portugal» (dirigida por Nemésio), juntamente com uma «Carta a Vitorino Nemésio
para servir de credencial a algumas traduções». Para além das influências
possíveis num poeta que defendia expressamente a contaminação da poesia
nacional pela grande poesia das outras literaturas como condição de qualidade,
a poesia de Rilke e a de Hölderlin (esta também, provavelmente, conhecida mais
a fundo e mais tarde graças a Paulo Quintela), juntamente com a leitura de
Heidegger e uma especial vivência do barroco literário ibérico, explicam muito
da feição simbolista, existencial e religiosa da poesia do nosso autor.
Em boa medida a modernidade do Nemésio dos anos 30 e das décadas
seguintes deriva dessa matriz complexa, e da sua propensão para conciliar
processos e prosódias de matriz mais culta e de filiação literária mais
identificável com um pessoalíssimo à-vontade face aos temas que tratava, um
reviver sem complexos da tradição popular e uma radicação directa no húmus de
uma memória ligada à sua terra natal (os Açores, a Ilha Terceira),
construindo-se e erguendo-se «peça a peça, / De saudade, vagar e reflexão».
Em todo o caso, o seu simbolismo, de laivos e alusões por vezes
fortemente rilkeanos, difere do de Rilke em aspectos essenciais. O poeta checo
investe a sua escrita de uma carga expansiva em que os referentes estão mais
ligados ao «ser» da própria palavra numa sua relação aristocrática com o mundo
do que aos seres e coisas concretos do mundo. A poesia de Rilke raramente
transcende o universo de um «poético» nobre, em que a formulação escamoteia
alguma coisa para que alguma outra coisa se lhe substitua e para que o poema
fique a vibrar como uma espécie de tensão elegantemente estabelecida entre
esses dois pólos. O poeta açoriano procura que a palavra irradie a propósito
dos referentes do seu quotidiano, vivido actualmente ou lembrado numa peculiar
iluminação recapitulativa que vai das epifanias às impurezas.
A carência e o seu contrário em Rilke são algo de indefinidamente
pre-sentido, de ilimitado (o «das Offene»), prestes a, mas sempre aquém de
perfazer-se numa plenitude entrevista. Em Nemésio, a carência é a de algo por
que já se passou, de que já se fez a experiência e de que, por isso, agora se
sente a falta. Rilke fala nas rosas, ou nos frutos, ou nos animais, logo como
símbolos em si que, pelo próprio facto de serem incorporados no poema, abrem
para uma dimensão ontológica, sendo a sua presença activa no texto assegurada
pela sua inclusão num jogo inesperado de interrelações muito flexivelmente
estabelecidas. Nemésio pode falar das flores, ou da espinha de um peixe que
apodrece no cais, ou até do ADN, mas precisa sempre de um concreto verificado,
aferido e referenciado pela sua experiência pessoal, para a transfiguração
poética dos materiais que utiliza.
Nesse trânsito, a que a espessura do Tempo vem agregar-se numa
angústia agudamente vivida que passa pela intuição do Ser, do Nada e da Morte,
consiste o seu «Gesang ist Dasein» e aquilo a que poderíamos chamar a sua
dimensão existencial. As metáforas é que, depois, ganham qualquer coisa de
rilkeano, embora sejam mais filosoficamente desenvolvidas, como acontece com as
suas referências aos anjos, ou mais visceralmente germinativas, como aquele
«ovo de tanta coisa, o coração» de que diz «mal começar» num poema escrito
perto dos quarenta anos, a combinar-se com um exercício sobre o despertar dos
sentimentos e a reflexão sobre eles, um sentido da quente densidade do mistério
e da reiterada interrogação sem resposta definitiva como inseparáveis da vida
consciente, uma capacidade de entrega pela via da palavra a essa decifração
frustrada que vê no amor de Deus e na experiência de tipo místico a única
resposta possível. Para Nemésio, a poesia e a filosofia tocam-se: «A
reminiscência platónica autoriza por igual uma especulação sobre o juízo e
outra pela imagem e alusão. O universo inteligível é tão conceptual como o
alegórico (…) Assim, de um mito comum nascem as duas estirpes de pesquisadores
do real: poetas e metafísicos.»
Há em Nemésio uma permanente capacidade de se deixar surpreender
pelo real e, ao mesmo tempo, pela capacidade metafórica que a palavra tem de
engendrar a literatura, ou de nela se tornar, a partir desse mesmo real. A sua
poética não é uma poética de transfiguração da palavra, mas de transfiguração
do próprio mundo que a palavra consegue designar e fixar («Com medo de o
perder, nomeio o mundo»).
Por outro lado, há em Nemésio, tanto no poeta como no prosador,
uma permanente dimensão autobiográfica, quer autêntica, quer simulada numa
escala relativa. Nemésio poetisa a partir das circunstâncias da sua vida, das
referências aos seus familiares, dos seus gostos e desgostos, prazeres e
desprazeres, de tudo o que lhe surge como ensejo de meditação intensa,
incluindo a sua aproximação das incandescências do transcendente, inseparável
do exercício do Verbo.
O seu mundo interior, cujo peso o aproxima dos presencistas, vai
muito mais além do destes, nos planos da sinceridade e da intensidade. A poesia
de Régio vive do remorso de Deus e de uma consciência expiatória e um tanto ou
quanto artificiosa do mal; a poesia de Torga vive da interpelação de um Deus em
que ele não acredita mas que increpa como pretexto para afirmação do seu
orgulho desafiante e do seu humanismo grandiloquente; a de Alberto de Serpa
vive de um quotidiano de província registado sem grandes ambições visionárias;
a de Saúl Dias concentra-se em momentos de simples intensidade lírica,
intimista e contemplativa. Nemésio organiza «naturalmente» o seu mundo
interior, capaz de grandes angústias, mas sem perda da «joie de vivre» e de um
sentido final da redenção e da Graça divina; é crente para se enriquecer
intimamente a partir da sua crença; fala de Deus, dos anjos e da morte; olha as
coisas grandes e pequenas, até as de escala microscópica, porque elas dão um
sentido ao mundo e à vida; não se desinteressa da filosofia «tout court» nem da
filosofia da linguagem; investe na ciência e no saber interdisciplinar; é um
dos nossos grandes poetas do amor, da ternura e da sensualidade; brinca e joga
com as palavras porque a poesia é uma arte da manipulação delas de que não se
excluem o divertimento nem a ingenuidade; e explora toda uma outra série de
campos em que a literatura é apenas um dos pólos. «Toda a vida estudei de tudo
e o mais que podia para o que desse e viesse. Não me preparava dia a dia para
amanhã e depois ou racionando, como a formiga, do Verão propício ao Inverno
rigoroso. Mas talvez não fosse apenas leviano, como a cigarra, pois nunca tive
de dançar no Inverno e cantei sempre.»
É célebre a síntese de David Mourão-Ferreira no conspecto da
variedade prodigiosa da obra nemesiana: «Alguém que verdadeiramente nascera com
um talento multiforme, o qual teria dado, à vontade, para mais dez autores e
todos eles de primeira água: dois ou três poetas, a apontarem novas direcções e
novos modos de ser moderno na poesia portuguesa; outros tantos ficcionistas, a
redimirem de muito erro a nossa ficção (…); dois críticos, pelo menos, e ambos bem
necessários - um da melhor cepa impressionista, o outro apetrechado com toda a
aparelhagem da mais completa erudição (…); e ainda um extraordinário filósofo
da cultura; e ainda um biógrafo e um historiador; e ainda um multifacetado
cronista, que por completo renovou as leis do género.» Mas, relida uma obra com
toda essa desvairada multiplicidade, não deixa de nos ficar uma impressão da
sua unidade profunda, articulada em torno de uma preocupação de humanismo
fraternamente procurado e vivido ao longo de todo o arco que vai do paroquial
ao universal, ou em que o paroquial é provavelmente a própria condição do
universal.
Já uma vez escrevi que a obra de Pessoa gira em torno do vazio e a
de Nemésio se alimenta do «cheio». Por isso os exercícios da razão pessoana são
áridos e pessimistas, reduzidos a concluir pelo sem sentido do mundo e da
presença humana nele, enquanto o trabalho da razão nemesiana se aplica a uma
outra dialéctica, mais eufórica e reconciliada com a vida, pronta a
acompanhar-lhe os sobressaltos e superar-lhe as contradições.
Como mais tarde veio a acontecer com Sophia, Nemésio, sai de uma
encruzilhada em que Saudosismo, Simbolismo e um certo vitalismo se combinam. Só
que, em Nemésio, menos dado a geometrizações abstractizantes do que a autora de
«Coral», acresce uma especial atenção à cultura popular, aos nomes e às funções
da coisas e aos ofícios e artesanalidades, e tudo isso tem uma música própria e
é dotado de uma particular e irradiante radioactividade. Tudo isso, que faz
normalmente parte do mundo, faz também parte do seu mundo e tem dignidade
suficiente para que o poeta o não desdenhe.
A sua consciência do exílio, construída a partir da metáfora da
insularidade em contraponto com o tema do mar, por via dos «temas coerentes e
reiterados do sentido da existência pela representação do passado: o mundo da
infância no microcosmo da Ilha; o isolamento no seio de uma comunidade
patriarcal; a revelação de Deus e do próximo na vizinhança e na família, do
destino no amor e na promessa da morte», leva-o a colmatar de vários modos essa
distância do ponto de partida, quer pessoal, quer lusitano, quer antropológico.
Esta chave explica não apenas a sua obra poética e a sua obra
romanesca, com especial destaque para esse monumento inigualável da ficção portuguesa
que é «Mau Tempo no Canal», mas ainda muitas das outras páginas que escreveu, a
propósito de tudo o que lhe acenava como fazendo parte de um mundo que ele via
e vivia como imemorialmente seu.
Vasco
Graça Moura, Expresso-Revista, 1/12/2001
|
Caricatura de Vitorino Nemésio, por Santiago (António Santos) |
UNIDADE E DIVERSIDADE EM NEMÉSIO
Rouxinol
e mocho, ou seja, poeta e erudito, assim se confessou Vitorino Nemésio. Não há
nenhum escritor português contemporâneo (incluindo Pessoa) com uma tal
diversidade. Diversidade de géneros e de tonalidades: a biografia histórica
meio ficcionada, o compacto ensaio académico sobre Herculano, as crónicas de
imprensa, as viagens distantes e domésticas, as evocações literatas, os contos
e novelas, o magnífico Mau Tempo no Canal. E a poesia: metafísica,
polémica, surrealista, lúdica, erótica, regionalista, científica. Nemésio é um
mundo. A sua erudição colossal e divagante contribuiu para a imagem pública de
professor heterodoxo e conversador notável. E a irrequietude poética fez uma
obra variada, por vezes difícil, a poesia de alguém que, como ele dizia, se
desfaz em linguagem, que vai atrás das palavras, que faz com que as palavras o
sigam, seja a palavra o Verbo cristão, a severa filologia, o neologismo
científico, os sotaques locais, as surpresas fonéticas.
Desta
unidade e diversidade nos tem dado conta António Machado Pires, que foi
assistente de Nemésio na Faculdade de Letras de Lisboa. "Rouxinol e Mocho" recupera pequenos livros e textos
dispersos de temática nemesiana, o que explica algumas repetições. É, no geral,
uma boa introdução aos temas essenciais do polígrafo ilhéu.
Os
textos analisam com algum detalhe a dimensão multifacetada de Nemésio. É um
trânsito constante entre "rouxinol" e "mocho", uma escrita
feita de história, alusões cultas, jogos verbais, subtil biografismo. Machado
Pires interroga em particular o que significa a "açorianidade" de
Nemésio. "Mau Tempo no Canal" e "Corsário das Ilhas" são
exemplos de como em Nemésio o regionalismo é universalista.
No
romance de 1944, um dos quatro ou cinco mais importantes do nosso tempo
português, convergem as impressões e os saberes de Nemésio acerca das ilhas. O
clima, as rochas, o verde, as baleias, o oceano, o isolamento, a estratificação
social, a variedade fonética, a força do destino, o "azorean torpor".
A ilha como génesis, cosmogonia, nostalgia, arquétipo. Terceirense expatriado,
Nemésio encontrou nesse "romance das ilhas" uma âncora em que fundeou
a sua extraordinária vastidão de interesses e capacidades. Uno e diverso,
Nemésio faz da ilha um motivo central da sua obra: "A sua universalidade é
também a do homem que trabalha os símbolos: o mar e a ilha, o eterno e o
efémero; o paço e o milhafre, a casa e as asas da imaginação; o rouxinol e o
mocho, o poeta e o sábio; as algas, os corais e a concha, os epifenómenos dessa
insularidade ao mesmo tempo feérica e fechada na memória de si própria
(...)" (pág. 56). Corsário
das Ilhas (1956), peregrinação sentimental que deve bastante a As Ilhas Desconhecidas (1926) de
Raul Brandão, mostra de novo como o tema ilhéu congrega as preocupações e
inclinações de Nemésio, acrescidas de uma certa culpabilidade de filho pródigo,
alguém que viveu fora a vida quase toda. A "ilha", em Vitorino
Nemésio, é mais que um sítio: é imagem e biografia, motivo e angústia, mocho e
rouxinol.
Pedro Mexia,
http://ipsilon.publico.pt/livros/critica.aspx?id=255811
Perfil poético de
Vitorino Nemésio
DIVERSIDADE TEMÁTICA E FORMAL DA POESIA DE VITORINO
NEMÉSIO
|
POEMAS
|
Mundo
concreto de "raiz rural ou marítima" (o mar, a ilha); interioridade
(ambiente íntimo e doméstico); tempo como vivência (a infância); contraste
sublime/abjecto; tensão eu/tu (o Sagrado, o Divino).
•
telurismo
•
insularidade e isolamento
•
relação directa do homem com a sua circunstância física e psicológica
•
condicionalismos da interioridade
•
angústia existencial
•
ansiedade
•
visão teocêntrica do homem e do mundo
•
humanismo nacionalista
|
Quando eu morrer, a terra aberta
Outro
Testamento (Quando eu morrer deitem -me nu à
cova)
Retrato
Requiescat
Noz
de Fogo
Casa
do Ser
A
Concha
Orfeu
Écloga
Quatro coisas são precisas
O futuro
perfeito
Indício
velado
|
CARÁCTER
DESCRITIVO DA POESIA; visualidade, imagens de natureza espacial; intuição
súbita, livre associação de imagens; exuberância verbal.
•
identidade açoriana
• presença da ilha e o regresso à infância
•
sempre o bater do mar para sentir a força da terra
|
A
nortada encheu de ilhas o
horizonte
Arte
poética
O recorte de um cão, na areia, ao luar
Semântica
electrónica
|
Nemésio: uma espécie de humildade
JÚPITER
1901
Nasci no ano em que se
descobriu a Grande Perturbação de Júpiter.
Minha Mãe não deu por nada,
meu Pai não era astrónomo,
Mas houve lá em casa
uma grande perturbação na água do banho,
Que meu Pai, músico,
acompanhava regulando encantado o seu metrónomo.
E Júpiter, assim
mimado, com pai por ele, saiu poeta,
Com seus doze
satélites, quatro deles principais:
Serafina, Lourdes,
Lídia, Isaura,
A Primeira Grande
Perturbação de Júpiter
No ano em que nasci.
Elas em roda da
banheira,
Meu Pai tocando flauta
(Serpentes? no ninho em
mim)
E um céu de vapor de
água,
Difração de
satélites...
Júpiter! Júpiter!
Tu és o Toiro de fumo
Que nunca terás Europa.
Vitorino Nemésio, Limite
de Idade, 1972
RETRATO
DE VITORINO NEMÉSIO
Era um homem das ilhas, dos
Açores,
que tocava violão. Tocava bem.
Talvez faltassem todos os rigores
do virtuosismo artístico. Porém
nesse improviso havia tal encanto,
tal à-vontade, que era, na verdade,
como se a gente lhe escutasse um pranto,
um grito, uma alegria, uma saudade...
E havia tanto que aprender com ele!
Era um amigo sem comparação...
Contava tudo. Até de uma cabrinha
falou num verso... Que poeta aquele!
De repente me vem do coração
a última vez de sua mão na minha.
Em Nemésio coexistem, defrontam-se, o
eterno saudoso das ilhas a Oeste ‑ infância, família, antepassados, povo que trabalha, montanhas, fumas,
o mar, o risco, a
distância – e o vagabundo de olhos curiosos bem abertos, insaciáveis. ("Minha mãezinha ao longe, e eu nato andante"),
cosmopolita apesar de castiço, poeta francês
em França
ou na Bélgica, poeta brasileiro no Brasil, com recetividade e poder mimético admiráveis, escritor europeu (Prémio Motaigne por ato de
justiça que tardava) que é preciso ler na
intertextualidade mais ampla, num quadro de referências onde, por
exemplo, se encontram um Pascal e um Unamuno, um
Rilke e um Ortega,
um Valéry e um Heidegger, não faltando entre os portugueses Camões e Pessoa,
claro, e Nobre, Pessanha,
Raul Brandão, Pascoaes.
Mais ainda: graças a uma prodigiosa
retentiva, era "guarda-mor" (em simples conversa
o revelava) de vários universos, captados por
experiência direta ou por leitura: evocava
homens, coisas, eventos, com uma abundância que não prejudicava a nitidez ‑ mas aqui simultaneamente erudito e conhecedor do concreto, quer lhe ocorresse um episódio da emigração romântica
ou um texto de Santo Agostinho, quer lhe
viesse à lembrança uma planta ou um utensílio da vida rural, que para tudo
dispunha do termo adequado, exibindo um domínio da língua que era prova de
cultura extensíssima. E todavia o saber não
lhe "pesava", o enamoramento do passado não o impedia de viver
o presente, de auscultar a angústia da nossa
época, de atualizar pela cultura a sua imagem do mundo;
foi, em poesia, inventivo, livre, inovador, como
poucos, tão moderno que nunca deixou de o
ser ‑ e como que timbrou em demonstrá-lo
pela juvenil resposta que deu aos setenta anos: o seu Limite
de Idade,
poesia "invadida" pela microbiologia e pela física atómica,
mas ainda reduto de superior lirismo e humor.
Em Vitorino Nemésio descobrimos, como outras tantas marcas de riqueza, o
contraponto da distração egocêntrica e da
comunicabilidade, mesmo da atenção ao outro; a combinação do impulso emocional, da
entrega fácil, desprevenida, e duma consciência lúcida de espectador de si
que leva à autodefesa irónica. Sensual e
místico, espontâneo e fingidor, o poeta sugere-nos a aceitação das contradições
próprias da natureza humana e, especialmente, dos versáteis em que a vida se excedeu. Define-se como um "portador": carrega
os desejos, os sonhos, os danos que o tempo
faz, as culpas; há
nele uma indulgência para consigo que se estende em tolerância
compassiva para com os outros, e postula
um Deus de perdão,
como o de Bocage. Nemésio, com efeito, não
ostenta o orgulho duma forçada coerência. Em vez disso, uma conformidade, uma aceitação humilde que se completa com o
bálsamo da confissão aos quatro ventos: "Tenho a
culpa de tudo." "Assumo a noite e
o mal que nela está." Não promete
combate nem renúncia; pede compreensão, diz o seu cansaço e a nostalgia
do outro lado da vida: "Direi, pela noite, não
ódio que tivesse/Nem detestar vida corpórea
e ninhos de manha/ Mas meu alto cansaço, a
tristeza de lá/Onde se sente o aqui traído, a falsa entranha" (in "Requiescat").
Diversidade temática
e formal da poesia de Vitorino Nemésio
Diversidade poética: do saudosismo e da
«Presença», ao surrealismo e outras experiências estéticas.
Importa desde já salientar a
importância da obra poética de Vitorino Nemésio relativamente à compreensão do
modo como a nossa poesia contemporânea evoluiu desde os tempos da «Presença».
Afastando-se de tendências epigonais que, inicialmente, são ainda visíveis
(desde as tardo-românticas às de um certo saudosismo) a obra poética de
Vitorino Nemésio assimila, desde os anos 30, uma articulação imagética que se
aproxima do surrealismo para, na década seguinte, se orientar mais para uma
essencialidade verbal que começa a explorar a dimensão simbólica da linguagem
e, depois, desenvolve o que na poesia poderia ser um feixe de preocupações de
ordem religiosa, filosófica e científica, aliadas a uma condensação de índole
verbal e simbólica que posteriormente se vai aprofundar.
Fernando Guimarães, in
Dicionário de Literatura Portuguesa, org. de Álvaro Manuel Machado
*
Dois ciclos temáticos se interseccionam na poesia de Vitorino
Nemésio:
· evocação/saudade do passado/tempo da ilha e da
infância;
· reflexão sobre o sentido da existência
(revelação de Deus e do próximo), relacionada com uma perspectiva religiosa sem
que assumem importância os temas da morte, da culpa e do pecado.
A perceção pluridimensional da poesia
de Nemésio resulta da intersecção de dois grandes ciclos temáticos, que hoje
sentimos percorrer de lés a lés a sua obra inteira, mas cujo contraste vivo só
viria a definir-se com nitidez a partir de O Pão e a Culpa (1955).
Encarando-os segundo os seus valores faciais, digamos que esses dois ciclos são
o da saudade da infância açoriana e o da meditação existencial de sentido
heideggeriano-religioso.
Óscar Lopes, «Vitorino Nemésio», in Os Sinais e os Sentidos
*
O CICLO DA INFÂNCIA
Os volumes de versos até agora
publicados de Nemésio agrupam-se claramente em dois ciclos que se intersectam
mormente em Nem Toda a Noite a Vida, impresso
em Dezembro de 1952, o mais heterogéneo dos seus livros. No primeiro desses
ciclos, a razão da existência (ou o polo dos valores) é demandada através das
saudades de uma infância que se desenha lá longe, nas Ilhas, dentro de um aro
de ondas salgadas, gaivotas, espuma, e que assume vários rostos mas sobretudo o
do Pai e o de um primeiro amor autoinibido.
Óscar Lopes, História Ilustrada das Grandes Literaturas, pp. 847-848
*
Nemésio, fazendo emergir, na sua
imagística, o «Mito da Ilha Perdida», fá-lo não só como a projeção de um
conflito, mas como uma proposta de solução: ancorado na sua crença religiosa, o
Poeta vislumbra o reduto seguro que o aguarda no fim de seus dias sobre a
terra, o qual representa a reprodução-síntese do útero materno que o gerou e do
seu mar da infância, fechando-se, assim, o ciclo de sua vida.
Lúcia Cechin, A Imagem Poética em Vitorino Nemésio, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da
Educação e Cultura, 1983
*
E toda esta produção (a produção
literária de Nemésio), embora multiforme, não deixa todavia de ser unívoca; por
detrás desta obra (que constitui ela própria uma espécie de arquipélago)
manifesta-se o incessante apelo do arquipélago natal: através de uma arte de
sugestão e de evocação, por meio dos cercos estilísticos mais sábios ou das intuições
mais fulgurantes e mais simples, com toda uma simbólica de grande poesia e, ao
mesmo tempo, a frescura da genuína inspiração popular – sempre Vitorino Nemésio
se tem esforçado por atingir-se inteiro, por se reconduzir à infância e à ilha
natal, que representam, uma e outra, e uma na outra, as imagens de uma perdida
unidade. As suas obras da última fase (sobretudo O Pão e a Culpa) sugerem ainda que a toda esta
procura, no geral imanente, se sobrepôs o transcendente encontro da Graça.
David Mourão Ferreira, in
Dicionário de Literatura, dir. de Jacinto do Prado Coelho.
*
Para um ser cuja consciência de si se
circunscreve, as mais das vezes, à feição animal do seu “eu”, é curioso observar
como a rememorização de um passado longínquo, cuja idade emblemática é a da
infância, o pode fazer recuar a um tempo original e restituir-lhe, livre de toda
a precariedade física e moral, a dimensão da sua verdadeira identidade.
De entre O Bicho Harmonioso, Eu,
Comovido a Oeste e Nem Toda a Noite a
Vida, são sobretudo os dois primeiros que se mostram como o percurso de uma
memória a reavivar um passado mítico para atingir o fundo de si mesma. O acesso
às origens será o acesso do ser à sua
realidade primordial, “água”, “voo “ ou “som”, que só a Ilha e o mar,
pela força congénita à sua estrutura, podem legitimamente simbolizar.
Maria Madalena Gonçalves, Poesias de Vitorino Nemésio, pp. 27-28
(Apresentação crítica, seleção e sugestões)
*
O CICLO DA VIA METAFÍSICA E RELIGIOSA
O triunfo poético de
Nemésio não é de modo nenhum uma consagração. Não se liga a um prémio ou a uma
cerimónia mundana. É, sim, o resultado duma luta interior, duma busca orientada
por uma certeza íntima, por vezes duma quase autoflagelação onde atuam
memórias insulares, sonhos já destroçados, o Amor como anseio jamais realizado,
e Deus na infinita ambiguidade de seus desígnios ‑ até na surdez do universo.
José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Lisboa,
Editora Arcádia, 1978
*
Para Nemésio, o mundo é tentação: de
beleza, de vitalidade, de amor. Mas o mundo não é "verdadeiro" na
medida em que é "ilha perdida". Na sua materialidade, ele é ilusão,
miragem, apelo traiçoeiro. Mal se caminha ao encontro da visão apetecida, o
"ser" da imagem esfarela-se e abre ao entendedor a sua ausência: ou é
imagem do passado, ou é febre dos sentidos – ou ambas as ilusões fundidas numa
amálgama cuja realidade interior é dor, angústia, remorso, culpa. É na esfera
dessa culpa que se move grande parte da poesia nemesiana, sendo o poeta, por
assim dizer, um lugar de digladiação entre a realidade perdida e o verbo que a
suscita numa plenitude imaterial. […]
Duas grandes linhas comandam [a sua poesia]: por um lado, a
renúncia ao mundo: por outro, a sensorialidade como ritual. Da renúncia resultará a poesia intimista, o monólogo que
Deus ouvirá ou não. Da sensorial idade indomada resultará o impulso
pagão que levará o poeta a encarar a festa como ritual.
José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Lisboa,
Editora Arcádia, 1978
*
A renúncia
inspira a Nemésio uma obra de notório carácter ascético: O Pão e a Culpa.
E dizemos ascético não só pelas propostas feitas pelo autor, mas também pelas
características da sua linguagem poética.
Tendendo para o verso curto ‑ mas não desdenhando, em matéria de medida mais longa,
o decassílabo, nem mesmo
alongamentos alheios à métrica silábica, que acabavam por se subordinar a um ritmo determinado pela distribuição das
sílabas tónicas ‑, Nemésio utiliza ainda surpreendentes "enjambements" a fim de pôr em relevo rimas internas que, de outra forma,
ficariam um tanto apagadas no deslizar do verso. Não se trata, evidentemente,
duma inovação. Acontece simplesmente que todos esses processos poéticos
revelam, em O Pão e a Culpa, um tal grau de exposição, de violentação
íntima, de premeditada desarticulação,
que o leitor pensa numa espécie de descarnamento.
O que se mostra em O Pão e a
Culpa é um homem em crise, perdida a fé nas coisas terrenas. Esse homem
quer dialogar com Deus, exibindo as chagas. Chagas resultantes do pecado, da
fraqueza, do "Iodo" humano. E, se o silêncio é "peso de Deus"
em Nem toda a noite a vida, a exibição da matéria humana
aos olhos do Criador não conseguirá destruir o seguinte equívoco: a penitência,
em tais termos poéticos, não constituirá mais um pecado de orgulho? Por outras
palavras: agarrar na culpa e rimá-Ia em poemas tão depurados como os deste
livro será depor a vida nas mãos de Deus, ou ainda rebelião contra Deus? Terrível
dilema, para o qual a resposta sensata seria o tal silêncio... que nos
privaria, obviamente, dos poemas de Vitorino Nemésio.
“A renúncia, a
culpa, a relação com Deus” in Ser em Português 12, coord. Artur Veríssimo, Porto, Areal
Editores, 1999
*
Em fim de vida, ou de viagem, este
alto astronauta da fantasia continuava a deslumbrar-se, mais do que nunca, pelo
lado icárico do destino humano. Nada de prometeísmo na sua inspiração que não
foi nunca de revolta ou de combate de armas de luz com o anjo bíblico,
território cedo ocupado por José Régio e Torga. O seu signo é o de Ariel, a sua
vocação ascensional para compensar a plúmbea força de uma culpabilidade à
Caliban, com que a vida, ou apenas o equívoco prazer dela, lhe encharcou as
asas de fogo do seu verbo livre e submisso no círculo de um deus de misericórdia
e de perdão.
*
Ora toda a melhor poesia religiosa se
mostra ciente de ciladas e equívocos a que nunca se exime. Na tradição
literária portuguesa, é Régio o antecessor temático de Nemésio que mais importa
considerar, a fim de descortinarmos alguma medida de autenticidade relativa.
Podia, é certo, recuar-se a Junqueiro, e perguntar, por exemplo, até que ponto uma
palavra tão dileta e superdeterminada como "pão", consagrado símbolo
místico de toda a origem e sustento da vida, da alma, da poesia, não inchará
por vezes, como no poema epónimo de O Pão
e a Culpa, até ao alegorismo cansativo da Oração ao Pão. Mas Régio está sem dúvida muito mais à vista. Apesar
de uma partitura extremamente sóbria, para concerto de câmara sem metais, lá
escapam algumas ressonâncias de estridência regia na, ora nas sondagens a o meu
poço, ora nas psicomaquias de um meu remorso barato ou de um chorar por medida
de versos, ora em conexas exortações à impiedade do Anjo ou ao voltar do látego
de o Outro.
Não se trata de meros passes de
estilo, pois é precisamente ao nível microscópico da expressão que Nemésio aqui
melhor se define. Trata-se de todo um conceito, que se quer vivido e vívido, de
religião. A caminho de melhor explicação disto que dizemos, veja-se o seguinte:
paradoxalmente, e sobretudo em poeta que veremos tão senhor da sua arte, esta
casuística também regiana dos labirintos onde a casuística do misticismo se
mete – desemboca várias vezes em apologia do silêncio: Silêncio de Deus. / Levantar a voz começa / A pôr o homem sozinho / Como
morto numa essa. É claro que toda a palavra autêntica se gera de uma dialética
sua com um dado silêncio. Nem mesmo é exclusivo da palavra poética o nascer de
um silêncio. Mas a questão que aqui irrompe vai mais fundo, é a questão do poder
ser-se, ou não, superiormente humano (e, em espécie, catolicamente autêntico) independentemente
de uma comunhão: com os homens num Deus de caridade, e com Deus nos homens tais
como são, e mesmo estão.
Óscar Lopes, História Ilustrada das Grandes Literaturas, pp. 850-851
*
|
Vitorino Nemésio, em scrimshaw (Museu de Angra do Heroísmo, ilha Terceira, Açores) |
O mar em Nemésio surge como um princípio criador, uma realidade
concreta ‑ a qual transparece nas palavras ou imagens que acompanham a sua
descrição: gaivotas, vagas, areais, ilhéus, dunas - e estende-se até nós como
um cordão umbilical, entregando-nos a sua força geradora, o seu alimento.
Fernando Guimarães, «A Expressão Simbólica em Vitorino Nemésio», in Linguagem e Ideologia
*
O mar
é um mundo de coisas vivas, a vaga, as conchas, os peixes, o sal, as sereias,
onde tudo é íntimo e prodigioso, é um reino com uma organização onírica, ali flutua,
livre, uma eroticidade lírica, vasta, oceânica, ali o poeta é rei.
A vaga é água de múltiplos meandros,
resumindo, no fascínio e no repúdio, na transparência e na sufocação, na vida
interior e no movimento excêntrico, a existência carregando a infância com ressaibos
de reino fabuloso e de reino tirânico.[...]
[O navio não possui, em O Bicho Harmonioso], a carga histórica
de mediador de terras e de povos mas a carga erótica de precursor das águas, de
mediador da «vaga» e do «capitão». [...] O navio é a figura que faz
ocasionalmente coincidir os dois campos opostos, materialidade sólida e
liquidez flutuante, formando um conjunto complexo que se associa ao próprio
ser.
Duarte Faria, Outros Sentidos da Literatura
*
O
talento de Nemésio reside em intuir um mar que se desdobra em ilha e de uma
ilha que se desdobra na multiplicidade de vivências que lhe ficaram
definitivamente agarradas, a começar pela memória do pai, esse duplo da ilha,
que Nemésio de lá traz e há de levar às costas pela vida fora, como se fosse um
outro Eneias a sair de Troia com Anquises. […]
A identificação com a água “que se some” é, em
Nemésio, algo mais profundo do que o pressentimento, cristão ou simplesmente
estoico, da inevitabilidade da vita brevis. A água não é aqui um
equivalente do que é efémero e, por isso, vão. Pelo contrário, ela representa o
elemento primordial, aquele de onde todos os outros hão de brotar, o caos
informe que traz no ventre todas as formas possíveis. David Mourão-Ferreira, um
dos críticos mais atentos e dos que melhor se apercebeu do papel do mar na
poesia nemesiana, cita a este propósito os estudos de Mircea Eliade: “Uma das
imagens da criação que melhor se manifesta é a ilha que subitamente se
manifesta no meio das vagas. ( ) A imersão na água simboliza a regressão ao
pré-formal, a reintegração no modo indiferenciado da preexistência. A emersão
repete o gesto cosmogónico da manifestação formal, e a imersão equivale a uma
dissolução das formas.
A leitura que David Mourão-Ferreira faz da dialética
entre o mar e as ilhas fica-se unicamente por um registo Jungiano da
psicanálise, em que a água funciona como figura do inconsciente, ao mesmo tempo
que o rochedo firme da ilha representa a “síntese de consciência e vontade”, em
que o eu se refugia dos perigos e medos inspirados pelo mar do inconsciente. Semelhante
interpretação, que os críticos da Presença não enjeitariam, fica, no entanto,
muito aquém de esgotar a função desempenhada por essa dialética na obra de
Nemésio. Permite, é certo, apreender um duplo campo de identificação do poeta,
ora com o mar ora com a ilha, que vai ao arrepio das leituras que o
circunscrevem a esta última, entendida como espaço imaginário cujas fronteiras
estariam delimitadas desde a infância e a adolescência. Ignora, contudo, a
fecundidade do mar e a sua natureza intrinsecamente proteiforme, a qual faz que
a ilha seja não tanto o diferente, o que lhe resiste, mas uma sua manifestação.
Precisamente por isso, ilha e mar são ambos fonte inesgotável de formas de o
poeta se dizer a si próprio, mediante uma pluralidade de metáforas todas elas
com origem no magma oceânico. Na ilha, o eu projeta-se como idêntico a si
mesmo, imagem socialmente reconhecida, figura estável e de contornos bem
delimitados, a salvo da diluição, que pode ir dar à loucura, ou sabe Deus onde.
Porém, o mar permanece, inclusive no interior dessa mesma projeção, como se o
poeta fosse apenas um búzio que soa em permanência dentro de si, impedindo-o de
assentar arraiais na ilha e condenando-o, qual Sísifo, à infindável procura de
uma imagem e de uma palavra que representem a impossível fixidez da identidade
em que ele se imagina. Porque o mar de Nemésio não é o mar de Sophia. Nesta, a
pureza e a exatidão das palavras remetem para um horizonte geométrico, perfeito
mas platónico, um mar suspenso no “arco azul do tempo”, que a vista alcança com
a mesma nitidez da luz, enquanto em Nemésio há “um mar de sangue enorme,
arroxeado”, um “mestre de angústia” e um “Mestre de limpeza – o sujo de todos
os vestígios/Que vai, com o peito exposto e de cristal cortado, /Desafiando os prodígios/E
atirando às vezes por desprezo à terra um afogado!”. O mar de Nemésio não é
tão-pouco o Mar Português, de Fernando Pessoa, ao qual Deus deu o perigo
e o abismo, “mas nele é que espelhou o céu”. Tais abstrações dizem pouco a
alguém, como Nemésio, para quem o mar é acima de tudo um símbolo do desejo,
encapelado e húmido – “a primeira mulher que amei foi uma cisterna” –, infinito
e impossível de moldar em definitivo, que ora é “navio duro” que se vai “à vaga
verde” ora se desfaz na boca sonhada, onde “há uma violenta humidade/De que os
filhos antigamente não podiam falar a seus pais/Mas que agora vemos ambos
corajosamente húmida /E não podendo mais com um beijo que cresce e rebenta/Como
esta última lágrima em que te dissolvo sem querer”. Daí, por um lado, a riqueza
de imagens em que o poeta se metamorfoseia, sem, contudo, alguma vez se
“outrar” realmente; daí também, por outro lado, a remissão para o concreto
dessas imagens, a carga sensorial que se pressente nos objetos nomeados e que
repercute as Correspondências, de Baudelaire – “numa tenebrosa e profunda
unidade/( )/os perfumes, as cores e os sons se correspondem” –, como Nemésio,
de resto, assume, no prefácio que redigiu, a pedido do editor, para a antologia
publicada em 1961.
Como proceder a esta aproximação do concreto, tão
evidente na belíssima “Arte Poética” de O Bicho Harmonioso – “o flanco
das coisas só sangrando me comove” – e que Vasco Graça Moura evoca, num poema
já antigo e muito comentado, onde fala em “tocar no fundo o coração das coisas/doce
e silente coração que as coisas/para o Nemésio tinham e pró Caeiro não”? Na
imagética do mar, já o dissemos, o que se encontra é o informe originário, a
meio caminho entre a abstração das puras formas e a possibilidade de devir
coisa. O desafio que se coloca ao poeta é, por conseguinte, o de encontrar as
palavras que evoquem o mar, sem o remeterem à categoria de espelho do céu,
despida do lodo e da salsugem que no-lo tornam sensível, nem o reduzirem a um
simples objeto, incorporado no linguajar comum, onde já se perderam todos os
vestígios da sua simbologia originária. O talento de Nemésio reside em intuir
um mar que se desdobra em ilha e de uma ilha que se desdobra na multiplicidade
de vivências que lhe ficaram definitivamente agarradas, a começar pela memória
do pai, esse duplo da ilha, que Nemésio de lá traz e há de levar às costas pela
vida fora, como se fosse um outro Eneias a sair de Troia com Anquises. Escusado
será dizer que essa intuição se joga nas palavras e que as palavras estão
carregadas de sentidos, que a história e a cultura lá depositaram. Não é
possível nomear as coisas que existem, à maneira de Adão no Paraíso. Quanto
muito, é possível criar coisas novas, nomeando-as. É esse o trabalho do poeta,
de cada vez que evoca a sua própria imagem, ou a do mundo, e através dessa
evocação as furta à condição de restos fossilizados do que já havia e já era
conhecido, para as levantar em pura novidade e criação: “A voz que se ergue no
ermo/Dá uma torre às coisas/Obriga-as devagar ao unido da coroa e do firmal.”
Diogo Pires Aurélio “Nemésio: o mar e a ilha”,
Q - Quociente de Inteligência, 22 de março de 2014.
*
[Depoimento de Vitorino Nemésio]
Comparei a minha memória da infância a
plâncton: Flutuação, calor de águas de cima, um nada de radioatividade...
Não sei nadar (o que é monstruoso para ilhéu tão firme ao mar!), mas
sufoquei-me muitas vezes agradavelmente na enchente, nas poças de lava
da Ponta Negra, e sei o que são algas,
polvos, medusas, crustáceos. Ainda hoje quando cheiro o mar me comovo. N'Eu Comovido a Oeste está liricamente e
como que fenomenologicamente essa minha experiência do mar, a que tudo o
que fiz responde. Vejo-o grosso e amargo, ou então muito azul, a perder de
vista, barrado de paquetes na horizonte nos verões da guerra de 14, e agora
gosto de o reverificar nos vapores caboteiros da Empresa Insulana ‑ Cedros,
etc. ‑ passando entre o ilhéu da
Graciosa e, perigosamente. a terra, ou levado em lancha baleeira de José
Cristiano do cais das Lajes do Pico às Velas de São Jorge, com dois ou três
pescadores e uns bigodes de espuma à proa.
O meu mar
interior tem pouco peixe antigo... Eu digo: recordações exatas, diacrónicas,
este, aquele, aqueloutro... Eu na banheira, menino, é só uma nuvem de vapor de água e
pedacinhos de sabão com que brincava: depois a sensação aconchegada do lençol
do enxugo...
Vitorino
Nemésio, 1971
[Nemésio cultivou], a par duma poesia
mais «culta» (digamos assim), uma poesia de cunho popular. Essa poesia
"culta" verdadeiramente iniciada sob a influência da Europa, e muito especialmente
da língua francesa ‑ iria assumir traços filosofantes, reflexões sobre o «ser»
e a «enunciação», inquietações acerca do sentido, avaliações do mundo e da
memória, interrogações acerca da vida e da morte, do devir e da permanência. Mas,
a par de tais inquietações, Vitorino Nemésio cultivou uma poesia radicalmente
vinculada à tradição popular, uma poesia que pede às cantigas ao desafio o seu essencial
substrato, à redondilha maior as regras da versificação, à quadra popular o seu
estendal de rimas. […]
[Trata-se, por exemplo, da poesia
inserta em Festa Redonda, 1950.] Festa Redonda é um conjunto de
"cantigas" que, como o título indica, comungam numa certa conceção de
"festa”: Aí se enquadram reminiscências da infância e da juventude,
folguedos, cantares e danças. Tudo retransmitido por uma voz pessoal: a
singular voz de Vitorino Nemésio […]
Vitorino Nemésio fez-se assim mais um
entre os cantores:
Samacaio
deu à costa
Sem ser navio nem peixe:
Eu arribei a uma vida...
Queira Deus que não me deixe!
Samacaio foi à América,
Veio de lá calafona:
Trouxe uma suera de lã
Pró peito da minha dona.
Nunca ninguém cantou tais versos do Samacaio.
São o improviso de Nemésio como se, no terreiro, botasse a sua cantiga...
sobre o mesmo tema, mas com pessoal originalidade, que isto de repetir ipsis
verbis fica muito mal a cantador. Criteriosamente, o léxico evoca a
aventura açoriana no Novo Mundo:"calafona" (o que foi à
Califórnia),"suera" (sweter) são, na derradeira quadra
transcrita, as marcas mais sintomáticas da interpenetração linguística. Mas
cheia de naturalidade! Lá, nos Açores, diz-se assim.
José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Lisboa,
Editora Arcádia, 1978
*
A conceção de poesia e de poeta.
A busca do
sentido da existência remete-nos para uma conceção de poesia com função de interrogar
o real; poesia como processo de conhecimento e de decifração da vida humana.
Esse sentido é procurado na representação do passado e da infância, no
microcosmos da Ilha, com o intuito de conhecer o mundo e a si próprio. Em suma,
a função da poesia é questionar a realidade e o sujeito. Vitorino Nemésio, na Última
Lição diz: "Da minha própria poesia, eu que sei? Aprendo com ela a
aprender-me".
De facto, n' O Bicho
Harmonioso evidencia-se a reflexão sobre o fazer poético. O próprio ato
de enunciação da poesia vai refletindo o seu fazer-se (metapoesia). Nesta obra,
o sujeito poético manifesta uma profunda consciência das suas limitações e
fraquezas, revelando-se numa constante autoavaliação. Assim, a preocupação com
o discurso poético desde logo se revela no primeiro poema d' O Bicho
Harmonioso: "Eu gostaria de ter um alto destino de poeta".
Ser em Português 12, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999
*
ARTE POÉTICA
A poesia do abstrato...
Talvez.
Mas um pouco de calor,
A exaltação de cada momento,
É melhor.
Quando sopra o vento
Há um corpo na lufada;
Quando o fogo alteou
A primeira fogueira,
Apagando-se fica alguma coisa queimada;
É melhor...
Uma ideia,
Só como sangue de problema;
No mais, não,
Não me interessa.
Uma ideia
Vale como promessa,
E prometer é arquear
A grande flecha.
O flanco das coisas só sangrando me comove,
E uma pergunta é dolorida
Quando abre brecha.
Abstrato!
O abstrato é sempre redução,
Secura.
Perde;
E diante de mim o mar que se levanta é verde:
Molha e amplia.
Por isso, não:
Nem o abstrato nem o concreto
São propriamente poesia.
Poesia é outra coisa.
Poesia e abstrato, não.
Vitorino Nemésio, O
Bicho Harmonioso (1938)
No poema «Arte Poética», a contestação da poesia do abstrato é contraposta ao calor, à exaltação de cada momento, ao corpo,
bafejado pela lufada de vento, ao
fogo que «alteou / A primeira fogueira».
A relativização do valor da ideia como
promessa, que acende a esperança na
transformação qualitativa da vida é expressa pela metáfora do arquear da grande flecha. A valorização da situação dramática da condição
humana («O flanco das coisas só sangrando me comove, / E uma pergunta é
dolorida / Quando abre a brecha») é reforçada pela desmistificação do abstrato
como «redução, / Secura», perda, em face da imagem do mar verde «que se levanta», «molha e amplia». É o apelo à Vida, à
apreciação da beleza do universo, da juventude. Quem ousa permanecer
indiferente a tal apelo?
António Moniz, “A harmonia da Palavra” in Para uma leitura de sete poetas
contemporâneos, Lisboa, Editorial Presença, 1997, pp. 70-71.
*
[…] Quero
pois voltar a certo passo ainda não comentado do CANÁRIO DE OIRO, que é o
seguinte:
“Que
sérias são estas coisinhas de soar,
Poetas que vos is,
Soldados
velhos,
Escolhendo na morte uma farda e um
lugar!
Somos aqueles imbecis
Desenvolvidos nos espelhos,
Ai, nos espelhos paralelos
Da sala onde um de nós é sozinho a
cantar!
Estamos fumados, amarelos,
De tanto ler e delirar.
Inúteis fôssemos, poetas,
Quero dizer: como as cascas cor de laranja ou alvas de ovo,
Que não são laranja nem ovo:
Ainda se havia de ver
Se as podridões quietas
Não são o sal e o renovo."
(vv.
23-38)
Aqui a
voz do poeta ora assume um tom displicente, ora se eleva até à solenidade. A
Poesia, afinal, é constituída, à superfície, por "coisinhas de soar" ‑
coisinhas aparentemente sem
importância, no fundo "sérias", pois são, por assim dizer, o corpo
do poema. Os poetas, como candidatos ao renome, são interpelados como seres
destinados à etiquetagem promovida pela crítica e pela história literária.
Arregimentados, depostos na morte como em cadeiras de Academia devidamente
numeradas, são, bem vistas as coisas, uns "imbecis". Mas, quando a voz
do poeta profere o termo pejorativo, já um "somos" inclui o
enunciante no rol desses mesmos imbecis. Afinal para quê tanto trabalho
"nas palavras", tanta absorção da poesia dos séculos, tanto produção
de poesia pela voz singular? Não será a Poesia só uma? Não dirão todos os
poetas a mesma coisa?...
Há uma
só Poesia, existe um só Poeta. A unidade é a realidade, a fragmentação um
efeito do delírio. Ou será o contrário?... Tudo é fragmentado, descontinuidade?
Tudo é voz singular e o coro das vozes é que é o delírio?... Tudo sim e tudo
não... porque nestes domínios nenhuma lógica tem peso decisivo. Creio manter
inteira atualidade ‑ e aplicar-se ao dilema que Nemésio transpôs para este
passo da sua metapoesia ‑ o pensamento de B. Croce: ''[…] si les oeuvres
poétiques s'engendraient l'une l'autre, elles formeraient, à y bien réfléchir, un
processus unique et il n'y aurait qu'une oeuvre poétique unique, qui d'
ailleurs ne serait jamais, car elle serai toujours en processus d' élaboration,
et jamais évocable et comprehensible dans sa totalité: c'est pourtant seulement
de cette façon que les oeuvres singulieres
sont aimées et comprises” (Benedetto Croce, La
Poésie. Introduction à la critique et à l’histoire de la poésie e de la
littératures, P.U.F., 1950, p. 124)
A
tensão entre a singularidade da voz e a sua inserção no ilimitado coletivo das
vozes ‑ eis o que leva Nemésio a apresentar-nos a imagem do poeta único entre
espelhos paralelos. A hipótese duma repetição teoricamente infinita leva-o, por
outro lado, a suspeitar da utilidade do poeta. "Inúteis fôssemos" -
exclama, agora que se sente seguro do lugar que lhe coube entre os poetas. Este
desejo de inutilidade não pode confundir-se, no entanto, com qualquer conceção
de "poesia pura" ou de "arte pela arte". Trata-se duma
cilada linguística, da projeção duma inutilidade que, por ser projeção,
acentua, no plano do implícito, a utilidade sui generis dos poetas: esvaziados
das suas vivências, porque empenhados no verbo criador, os poetas são resíduos,
os poetas são fermento de poesia, "sal e renovo". Cada voz singular,
sem perder a especificidade, é fonte de poesia e parte do Grande Todo. Assim um
texto poético, sendo criação, é ainda prolongamento ou complemento da Grande
Criação.
Pode
ser, como insinuou R. Wellek,
que o poeta-crítico seja muitas vezes "a house divided against
himself." Pode acontecer que o criador de metapoesia também seja um ser
dividido, em guerra consigo mesmo, um
questionador, por vezes abusivo, dos seus atos criativos; pode ser que
os casos de convívio pacífico de si consigo, quando de metapoesia se trata,
sejam tão raros como os merecedores de
canonização.
Contudo,
a metapoesia representa uma abordagem muito especial da poesia, uma abordagem
insubstituíveI, pois só o poeta pode atingir, elaborando poesia, esse tipo de
conhecimento que advém do seu posicionamento perante a sua própria criatura.
Vitorino Nemésio | ligações externas
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Universidade Aberta, [2001]. 1 prog. vídeo (30 min., 24 seg.). (Descrição: Vida e obra do poeta e escritor Vitorino Nemésio.
Entrevista a Fátima Freitas Morna, Professora da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa. Reportagem da exposição“ Vitorino Nemésio: Rotação da
Memória”, comemorativa do centenário do nascimento de Vitorino Nemésio
(1901-1978), organizada pela Biblioteca Nacional de Portugal.)
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ressonâncias (efeitos acústicos em Vitorino Nemésio)” Relâmpago revista
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2015
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PEREIRA, Luciano, “Vitorino
Nemésio: Poème dramatique Au soldat portugais inconnu mort à la guerre.
Contributos para a sua tradução”. In Atas/Anais
do 24.º Colóquio da Lusofonia, Santa Cruz da Graciosa, Açores (pp. 137-146).
Lomba da Maia: Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia.
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2017
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BROWN, Sonia Mara Ruiz, “Definições de Si Mesmo em O Bicho Harmonioso, de
Vitorino Nemésio”. In VERBUM, v.
6, n.º 2, p. 100-119, fevereiro de 2017. (ISSN 2316-3267)
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2018
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DUARTE, Luiz Fagundes (entrevistado) e
Tânia Pinto Ribeiro (entrevistadora), «Fico inquieto por saber que há poesia
e diários de Nemésio que não se podem consultar», https://imprensanacional.pt/,
2018-07-06.
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Fonte: LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO.Projeto concebido por José Carreiro.
1.ª edição: http://literaturaacoriana.com.sapo.pt/VitorinoNemesio.htm, 2012-08-22, 2014-11-12.
2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/acores/VitorinoNemesio.htm, 2016.
3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/europa-galiza-e-portugal-continental-e-ilhas/Lit-acoriana/vitorino-nemesio, 2021.
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